A Revolução dos Cravos

Por Lincoln Secco e Osvaldo Coggiola

JORNAL O MOMENTO – PCB BAHIA

A Revolução dos Cravos começou como um golpe militar no interior de uma ditadura fascista, que abriu passo para uma mobilização popular sem precedentes na Europa do pós-guerra. A partir de abril de 1974, no meio de um início de revolução social que abalou os cimentos do Estado, Portugal sofreu os abalos das lutas políticas pela renda nacional e pelo controle das empresas. O produto nacional diminuiu, a participação dos salários aumentou e o país viveu o impasse: superar a crise via desenvolvimento autônomo e socialista ou integrar-se à Europa e restaurar o despotismo de fábrica capitalista.

Entre as ações típicas que afirmaram a autonomia das bases da revolução podemos indicar três principais: o movimento popular que já no 25 de abril ocupou casas, creches e presídios políticos; o movimento organizado de trabalhadores rurais e urbanos que muitas vezes superou os limites impostos por suas representações sindicais e associativas; o próprio MFA, movimento das Forças Armadas, cujos soldados e oficiais de baixa patente colocaram em risco a unidade do Exército como garantidor da ordem burguesa em Portugal. O número de greves superou as expectativas do Partido Comunista Português, totalizando 734 entre o 25 de abril e a tentativa de golpe de 28 de setembro. As lutas nas empresas e os conselhos de fábrica levaram socialistas e comunistas e o próprio MFA a tentar controlar o movimento sindical.

O III governo provisório, iniciado em outubro, foi marcado pela ascensão das lutas populares. As comissões de trabalhadores iniciaram experiências autogestionárias em algumas empresas e várias greves foram convocadas, novas ocupações de casas em Lisboa, a exigência da reforma agrária… no fim de 1975 eram 25% da superfície arável de Portugal geridos por unidades cooperativas de produção. Aprovou-se ainda a lei da unicidade sindical a 13 de janeiro de 1975, propugnada pelo PCP, e que reconhecia na Intersindical, dominada pelos comunistas, a única central de trabalhadores legítima – o MFA buscava no PCP (que entre junho e setembro havia dobrado de tamanho e então contava cem mil filiados) o instrumento de manutenção da ordem no efervescente “mundo do trabalho”, tão propício a reivindicações salariais reprimidas. A participação salarial no rendimento nacional saltou de 34,2% no ano imediatamente anterior à revolução para 68,7% ao seu final. (1)

Os objetivos fundamentais do MFA se resumiram aos chamados três “D”: Descolonização, Desenvolvimento e Democracia. A descolonização era a principal reivindicação dos militares. Tratava-se de acabar com o império e resgatar a legitimidade das Forças Armadas. Para tanto, elas precisavam mudar de função: deixar de ser o esteio do império e se tornar a base da passagem do colonialismo em África para algum novo papel político “europeu”. Os objetivos nacionais entraram em conflito com os “imperiais”, já que a principal instituição nacional, o exército, precisava manter sua integridade corporativa sem perder a guerra.

Ora, a guerra já estava estrategicamente perdida. Por isso, o MFA propunha vagamente algum tipo de desenvolvimento econômico (e social) que fosse o sucedâneo da economia que se tornara elo de transmissão entre as colônias e os países centrais (Europa e EUA). Ainda que aquela economia fosse cada vez mais de interesse de apenas um punhado de colonialistas que lucravam diretamente como donos de terras e investimentos na África ou como “transportadores” ou concessores de exploração das riquezas africanas, a maioria da nação não encontrava salvaguarda naquela estrutura.

O desenvolvimento das escassas forças produtivas de um capitalismo semiperiférico tendia a encontrar na Europa (e não em África) suas possibilidades de expansão subalterna. Aos países centrais e às próprias colônias (cujo comércio exterior prescindia cada vez mais de Portugal como mercado de destino) parecia muito mais lícito retirar o véu colonialista que encobria a real exploração da África Portuguesa pelo capital oligopolista internacional de modo a deixar duas saídas claras: a revolução social anticolonial ou a adaptação nos marcos de um capitalismo dependente e associado.

A democracia era o corolário inevitável do fim do império. Ela era o antípoda da ditadura fascista. Como a superestrutura política era o entrave a outra forma de expansão das relações de produção capitalistas (fosse ela dependente da Europa ou de transição socialista), a democracia era o aríete que derrubaria o império colonial como um todo. Mas qual democracia? Em torno do seu significado, se moveram as peças do jogo de xadrez no processo revolucionário em curso. Uma democracia popular (a la Leste Europeu) sob liderança do PCP; uma democracia de conselhos; a convivência de formas diretas e indiretas de atuação (como propugnou no início do século XX o austromarxista Max Adler); uma democracia representativa liberal (com maior ou menor conteúdo social) etc.

Os três “D” impuseram o quadro estratégico da atuação revolucionária. Dentro dele é que as forças político-militares poderiam estabelecer suas manobras táticas. Mas o quadro estratégico não impõe só limites, abre também novas possibilidades. São as manobras no campo de batalha que determinam o quanto a revolução avança ou recua. A revolução foi possível no quadro geral da descolonização; do confronto indireto entre URSS e EUA; do recuo dos EUA diante da ascensão das lutas de classes desde os anos sessenta (especialmente pela sua derrota à vista no Vietnã). Mas foi limitada pelas estruturas seculares da economia portuguesa, pela sua distribuição demográfica, arranjo agrário, limites ideológicos de suas elites políticas e, sobretudo, pelo fato de ser dirigida por um Exército regular incapaz de se transmutar num órgão decididamente revolucionário.

Depois de três anos de mobilização intensa, a revolução operária e popular arrefeceu. Com a adesão à União Europeia em 1985, Portugal sacrificou a autonomia do seu desenvolvimento endógeno das forças produtivas, particularmente depois da criação do Euro. No século XXI o país teve uma taxa de crescimento do PIB abaixo da média da União Europeia, recessão e aumento do desemprego. Mais recentemente, a própria democracia tem sido ameaçada pela ascensão de grupos fascistas.

Notas
(1) Cf. Secco, Lincoln. A Revolução dos Cravos: economias, espaços e tomadas de consciência. 2ª ed. São Paulo: Ateliê, 2024 (no prelo)