Resenha: PCB 100 anos de histórias e lutas

Foto: Lutas Anticapital

UM SÉCULO DE LUTAS DOS TRABALHADORES
O CENTENÁRIO DO PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO

Por Leonardo Silva Andrada

Jornal O MOMENTO – PCB BAHIA

Resenha do livro: PINHEIRO, Milton (org.) Partido Comunista Brasileiro – 100 Anos de História e Lutas. Marília: Editora Lutas Anticapital, 2023

Condensar um século de história não é um empreendimento trivial. Sintetizar a caminhada centenária de um partido, cujo propósito é organizar a classe trabalhadora para sua revolução, passando longo período na clandestinidade, resistindo a duas ditaduras, vendo seus quadros sendo perseguidos, torturados e eliminados, enfrentando tentativas de liquidação e rachas históricos, é uma tarefa hercúlea. É diante de desafios de tamanho fôlego, diria um autor russo, que assim se forjou o aço.

No livro dedicado a avaliar os homens e coisas do Partido Comunista Brasileiro em seus cem anos, um conjunto de autores executa essa tarefa com a categoria que a formação bolchevique inspira. Organizado por Milton Pinheiro, Partido Comunista Brasileiro – 100 Anos de História e Lutas dá conta da trajetória do PCB dividindo sua história em períodos relacionados à atribulada história da modernização conservadora brasileira, com seus reflexos na classe que o Partido foi fundado para ser a vanguarda.

Já no prefácio, Mauro Iasi situa a gênese do Partido como mais uma das expressões de uma sociedade na aurora de sua modernização, enquanto politicamente ainda era submetida ao controle oligárquico em sua luta para impedir a chegada do novo que, inevitavelmente, sempre vem. É nesse contexto que emerge uma proposta avançada de ruptura com o passado, embalada pela vitória bolchevique na Rússia, tratando de transplantar para a Latinoamérica tropical, o operador político capaz de entregar ao proletariado o timão da superação do atraso. Como nos preparando para as etapas que virão nos capítulos, aponta como esse partido seguiu firme pelo século, órgão de luta de uma classe contra exploradores que, em distintas apresentações, realizou sua própria revolução em um ritmo lento, nunca se completando, sempre carregando o passado que prevenia contra a participação política dos produtores que nada são em tal mundo.

O período de fundação e primeiros passos é tratado no capítulo de Antônio Mazzeo, partindo de um quadro histórico do Brasil que apenas lançava as bases de sua industrialização. Desponta um movimento operário em larga medida composto por imigrantes, expressão dos subalternos em uma modernização de caráter prussiano-colonial que se pretende liberal burguesa – na estrutura institucional, na produção ideológica, na vida artística – mas que não se desvencilhava da herança de um passado escravista muito próximo. Uma breve síntese da formação nacional esclarece que tipo de capitalismo estava posto ao nascente
proletariado brasileiro. Um elemento relevante, do ponto de vista político, considerando os traços autocráticos que nossa modalidade de objetivação histórica legou. Como aponta Mazzeo, nessas condições, foi o movimento operário o pioneiro, na denúncia de ausência de espaços democráticos para a incorporação política dos setores que não possuíam fazendas.

Na aurora do novo século, uma miríade de organizações canalizava a luta proletária. É nesse ambiente efervescente que atuava Astrojildo Pereira, jornalista que não se furtou à militância operária, figura de destaque entre os fundadores. A combinação de aceleração capitalista com os desdobramentos da I Guerra, trazem para o contexto brasileiro o desenvolvimento em novas bases do movimento operário, com a fundação do Partido Comunista em 1922. Ao ser reconhecido pela Internacional Comunista dois anos depois, incorpora sua tese da revolução por etapas, que incide sobre sua linha política por décadas adiante. Mesmo no escopo desse marco importado, o Partido procura elaborar uma concepção de ação partidária condizente com uma leitura própria da realidade nacional, cuja súmula teórica, com todas suas limitações, é o opúsculo Agrarismo e Industrialismo, de Octávio Brandão. Uma tentativa pioneira de interpretar o Brasil sob o prisma marxista, que define o caráter da revolução como democrático-pequeno-burguesa, avançando a proposição do país como palco periférico de uma disputa inter-imperialista. Esse momento testemunha ainda os primeiros contatos com Luís Carlos Prestes e a formação da ANL, com grande impacto no evento que marca o início do período seguinte.

O Terceiro Período é objeto do capítulo de Muniz Ferreira, abarcando o período entre a derrota do levante de 1935 e a cassação do registro do Partido em 1947, ou seja, das vésperas do golpe do Estado Novo aos primeiros momentos de vigência da República de 46. Um período caracterizado por forte sectarismo, que incide diretamente sobre a política de alianças. Muniz interpreta o caráter do Levante de 35, localizado na longa linhagem dos alçamentos militares que nascem com a própria República. No caso aliancista, com a peculiaridade de seus traços anti-imperialistas, anti-oligárquicos e antifascistas. A derrota orienta uma nova guinada na linha política, que se assenta na crítica aos desvios esquerdistas, redefinição de objetivos táticos e ampliação da política de alianças, que se condensam na estratégia de consolidação de um regime de liberdades democráticas.

Articulando a pauta dos movimentos de massa, o PCB alcança posição de relevo como ator político da transição pós-Estado Novo. Tratando de reorganizar o Partido, é convocada a Conferência da Mantiqueira em 1943, responsável por ratificar a política de União Nacional, orientação que favorece a penetração popular de massa e a direção dos movimentos populares no “intervalo democrático”. A legalidade conquistada nessa conjuntura o fez uma potência política, com grande interlocução na vida cultural brasileira e uma vigorosa imprensa própria. Alcança expressiva votação, valendo-se da inserção institucional para avançar projetos de importância para a classe trabalhadora, na Constituinte de 46. A combinação entre início da guerra “fria” e interesse de governo e do PTB em neutralizar seu mais formidável adversário no movimento sindical concorrem para a cassação do registro legal do Partido, que entra em nova fase.

O período do “intervalo democrático”, entre 1947 e 1964, é perscrutado por Milton Pinheiro e Sofia Manzano, que destacam dois eixos de ação no período – a reafirmação da democracia formal como espaço político para melhor organizar a luta política dos trabalhadores, a par de uma ação que estimulava rupturas com o autoritarismo burguês. Os autores identificam as raízes da política desse período nas vicissitudes do período anterior, de forte repressão, que interferem nas escolhas de 1945/46. É um período genético em que a política foi orientada por esforços de segurança institucional, pautados na política de União Nacional que desarmou o Partido, com consequências profundas e duradouras.

Por seu decisivo impacto no caminho que o PCB seguirá a partir de então, Pinheiro e Manzano se dedicam a interpretar de onde veio essa política, e para onde ela apontou. Uma orientação que não passou sem questionamentos da militância, atenta às possibilidades de realização de seus objetivos, bem como seu papel no desarme do Partido para atuar no movimento de massas e resistir aos ataques de uma conjuntura de acirramento das contradições. Como questão de fundo deste capítulo, figura a pergunta: qual o papel do PCB na luta de massas e no movimento operário, se a democracia formal era a centralidade? A chave interpretativa passa pelos anos de clandestinidade e o ineditismo da participação formal na institucionalidade.

O Partido foi desarmado pela ruptura com sua forma histórica de atuação, para o que contribuiu a decisão por participar da ordem burguesa. É essa a dualidade que acompanha a atuação nesses termos, luta de massas e democracia formal, conflito x integração. As derrotas impostas no alvorecer desse período reclamam a autocrítica, que identifica a necessidade de uma compreensão mais qualificada da formação nacional. Tem início a produção de análises teoricamente mais consistentes, e a ação é redirecionada para a luta popular e sindical, decisiva para o papel desempenhado nos anos 50 e 60. No período de aceleração da modernização com JK, vigia a orientação do Manifesto de Agosto, com foco na autonomia das massas. Ao mesmo tempo, a práxis partidária se dará em desacordo com essa linha, tida como isolacionista; é a disjuntiva conflito x integração operada na prática.

O partido está, na prática, sem orientação definida, quando é atropelado pelo Relatório Kruschev, que força o debate interno, avançando a deterioração da linha política do Manifesto e dá fôlego ao polo da integração. É nesse ambiente que vem à luz a Declaração de Março de 1958, que partindo da análise da formação nacional, o desenvolvimento econômico e a estrutura de classes, afirma a via pacífica para a Revolução Brasileira, firmando compromisso com a Frente Única Nacionalista e democrática. O V Congresso, em 1960, ratifica essa linha, consolidando o desarme dos comunistas para enfrentar a etapa seguinte.

A vigência da ditadura burgo-militar corresponde ao período avaliado no capítulo de Ricardo da Gama Rosa e Marta Barçante Pires. Em meio à efervescência cultural que refletia a intensificação da modernização conservadora e o aumento da participação política dos trabalhadores, as referências teóricas e empíricas adotadas dificultam ao PCB vislumbrar a conspiração burguesa que desemboca no golpe de 1º de abril. O Partido apostou na aliança com uma burguesia que optara por estreitar laços com o imperialismo. Como já apontaram os autores do capítulo anterior, essa linha desarmou os comunistas. Após idas e vindas, o Partido se reaproxima de Jango em fins de 63, quando não se discutia mais se haveria um golpe, mas quando seria, e sob comando de que forças. Nesse clima de tensão política e conspiração, a imprensa operária estampava manchetes triunfalistas descoladas da realidade.

Consumado o golpe, o trabalho de reorganização tem início já em 64. A partir da autocrítica provocada por derrota tão amarga, desponta a opção tática que caracterizou a atuação do Partido durante toda a vigência do regime: isolar e derrotar a ditadura por
meio de amplo trabalho de massas. Seja na caracterização como ditadura policial fascistizante, seja como militar fascista, o PCB não sucumbe à sedução da via armada, tão inadequada quanto deletéria para o avanço da luta popular naquele momento. Quando a brutalidade repressiva destroçou as organizações que fizeram essa opção, houve balanço generalizado em favor da via de massas, antecipada pelos comunistas desde o primeiro momento. Os movimentos táticos elaborados serão muito relevantes na ocupação dos espaços abertos durante o período de abertura dos dois últimos governos de generais. O período final da ditadura permite o retorno do Comitê Central ao exílio, que traz consigo as contradições que se desenrolavam com os dirigentes no exterior. Divergências que desaguam nos duros embates que caracterizam toda a década seguinte, e têm seu ápice simplesmente em uma tentativa de liquidação do PCB – e dessa vez, não por uma ditadura.

É complicado hierarquizar momentos mais duros que outros, na história de um Partido como o PCB. É também um tanto estranho encontrar maiores dificuldades em período de relativa tranquilidade, como a transição democrática, após ter sobrevivido (e atuado de forma decisiva) em duas ditaduras. O capítulo de Heitor Ribeiro ressalta uma modalidade de problemas que é particularmente insidiosa: a disputa interna que aponta para o liquidacionismo, ao longo da década de 1980. Não um inimigo declarado tentando aniquilar os revolucionários, mas “camaradas” tentando desmantelar o Partido por vias escusas. Por outro lado, se assumimos que o novo, para sua plena realização, depende do deslocamento do velho, esse é o momento de recuperação de um projeto revolucionário, que conduz à reconstrução.

É relevante manter em tela que se trata do mesmo período em que ocorre o desmantelamento da URSS e o bloco socialista, com todas as consequências que impôs ao Movimento Comunista Internacional. O Partido se consumia em disputas intestinas, com a preponderância de um grupo atrelado a uma interpretação política míope, aferrada às deliberações de um VII Congresso realizado antes do AI-5, da “Abertura” e da Anistia. Assumia uma defesa obstinada da unidade na frente ampla, na conciliação com setores burgueses e no refreamento do movimento de massas, postura responsável por uma progressiva perda de conexão com as massas e as lutas da classe trabalhadora.

Entre os três campos que se formam nas disputas internas, a maioria de um Comitê Central envelhecido busca alcançar maioria se aliando com o grupo eurocomunista, que, na prática, abdicara dos fundamentos do marxismo-leninismo e seus desdobramentos estratégicos e táticos, vistos como ultrapassados na realidade histórica. É dessa aliança espúria que partem os movimentos golpistas que tentaram mudar o nome do Partido, abandonar seus símbolos históricos, se desvencilhar do marxismo-leninismo, superar (por decreto) a luta de classes. A tentativa, contudo, esbarra na resistência decidida do grupo que mobiliza esforços para garantir a preservação do PCB, e de cujo balanço crítico das opções e ações que levaram àquela situação, retiram lições e forças para empreender a reconstrução revolucionária do período seguinte.

O capítulo final, dando conta do período de reconstrução revolucionária que cobre os últimos trinta, entre os cem anos de história, fica a cargo de Edmilson Costa. É a busca pela recuperação de uma linha classista, superando os equívocos e vacilos da linha constituída nos estertores da ditadura. Foi uma linha conciliatória que domesticou o Partido e neutralizou sua intervenção, a partir de uma leitura engessada da realidade brasileira que o afastava das lutas e demandas da classe que pretendia e deveria organizar, resultando na perda de capilaridade e organicidade. O período pós-92 é de lutas, esforço e dedicação de valorosos militantes, empenhados na reestruturação do Partido em novas bases, procurando, na recuperação de seus propósitos revolucionários, construir uma linha política efetiva na aplicação tática da estratégia socialista para o Brasil. Luta que se desenrola em período de extrema adversidade, com o avanço do neoliberalismo e seus efeitos na classe, implicando recuo do movimento popular e sindical para posições defensivas.

A reconstrução opera a reinserção no movimento sindical e, ao mesmo tempo, empreende uma leitura atualizada das formas de expressão da luta popular hoje. Contra as reiteradas tentativas de desmantelamento do PCB, em gesto de resistência ao oportunismo e à traição, 500 delegados no Colégio Roosevelt mantiveram o compromisso de preservar o partido histórico do proletariado, redefiniram suas bases, estabeleceram um plano de lutas e reafirmaram a linha socialista da revolução brasileira, em uma formulação contemporânea. O paciente trabalho reinseriu o Partido nas lutas populares, o espraiou por todo o território nacional e busca permanente renovação da interpretação da realidade, para não se descolar das lutas da classe trabalhadora.

A trajetória mostra como, em meio a erros e acertos, propostas e autocríticas, o centenário Partido da classe operária buscou, mediante referencial teórico e análise de conjuntura, a conexão com o cotidiano e as questões concretas, organizar a classe em um potente movimento de massas que tomasse a história nas mãos. Lutou para responder às necessidades políticas derivadas das questões estruturais e conjunturais de uma classe submetida à superexploração e exclusão política sob a dominação da autocracia burguesa constituída em um país dependente “imperializado”.

Não importam as posições assumidas por Ferreira Gullar em seus últimos anos; durante um período foi um importante militante comunista, e não há absurdo que tenha pronunciado, capaz de suplantar a verdade dessa frase: “quem contar a história do nosso povo e de seus heróis, tem que falar do PCB, ou estará mentindo”.