O PCB e o cinema brasileiro (2)

Edmilson Costa é poeta, doutor em economia pela Unicamp e secretário geral do PCB

Neste ensaio, a partir de agora, vamos combinar nossa análise sobre os principais aspectos que caracterizaram o cinema brasileiro com a participação efetiva de militantes comunistas na área do cinema, daqueles que militaram apenas por algum tempo ou ainda daqueles que não eram militantes organizados, mas eram simpatizantes e trabalhavam na área do cinema de acordo com as orientações políticas do Partido. Buscaremos resgatar assim um importante elemento da história do PCB na área do cinema, fato que é essencialmente silenciado pela política anticomunista que caracteriza as classes dominantes brasileiras e seus representantes na institucionalidade. Prova dessa truculência da burguesia é o fato de que, de 1922 a 1985, o PCB funcionou apenas pouco mais de dois anos na legalidade; nas outras mais de seis décadas, foi forçado a operar na clandestinidade. Mesmo certa intelectualidade pós-moderna que atua nas universidades busca invisibilizar a presença do PCB na construção da cultura e do cinema brasileiro. Entretanto, com todas essas restrições, o PCB teve enorme influência na construção do cinema brasileiro. Por isso, a necessidade de resgatar essa história.

Ruy Santos, pioneiro do cinema comunista

Ao contrário do que muitos imaginam, o cinema engajado e militante não começou com o Cinema Novo, mas com um jovem militante do PCB, Ruy Santos, em meados dos anos 40, que combinava o cinema militante de esquerda com a ideologia. Oriundo de uma família de comunistas e empolgado com os novos ventos do pós-guerra, Ruy Santos, em sociedade com Oscar Niemeyer e João Tinoco de Freitas, já em 1945, fundaram a produtora Liberdade Filmes, buscando autonomia para a realização de seus filmes e a Tabajara Filmes, especializada na distribuição de filmes soviéticos, mas que também distribuía filmes nacionais. Esta produtora realizou na década de 40 pelo menos três documentários que entraram para a história do cinema brasileiro. São eles, Comício: São Paulo a Luís Carlos Prestes, com depoimentos de Pablo Neruda e Jorge Amado, Marcha Para a Democracia, sobre os comícios de Prestes em várias regiões do país e 24 Anos de Luta, sobre a história do PCB até 1947, todos dirigidos por Ruy Santos. Mas a Liberdade Filmes não resistiu à cassação do registro do PCB e teve que encerrar suas atividades.

“Esses três documentários registram o momento em que o PCB se voltava para a mística de Prestes, quanto ele passou a ser uma referência para a multidão que comparecia aos comícios. Essas imagens são representativas de um momento particular da história do PCB … que permaneceu mais tempo na ilegalidade do que com plenos direitos políticos. As imagens retratam, através do olhar peculiar de Ruy Santos, um dos momentos da legalidade do Partido … E mais, as imagens de Rui Santos registram o PCB de Luís Carlos Prestes no momento que ele desponta para o futuro como o “cavaleiro da esperança” e grande liderança do povo”, dizem Bastos e Ramos.

Merece destaque especial o documentário 24 anos de Lutas pelo esforço para sua realização, a trajetória rocambolesca e seu destino trágico. Para sua realização, foi mobilizada a militância do Partido, numa campanha financeira popular liderada por Oscar Niemeyer e Jorge Amado, visando arrecadar recursos para sua realização. O documentário foi roteirizado por Astrojildo Pereira, dirigido e fotografado por Ruy Santos e narrado por Amarildo Vasconcelos, com música de Gustavo Mahler. Com 1,20 horas de duração, contém depoimentos de Astrojildo, Prestes, Jorge Amado, entre outros, e reconstituição da fundação do PCB e da Conferência da Mantiqueira, respectivamente no Rio Grande do Sul e na Estação Barão de Mauá, da Leopoldina. O filme recupera ainda imagens de comícios de outros documentários de Ruy Santos e termina com as bandeiras vermelhas agitadas num ato público.

O documentário 24 Anos de Lutas estreou em 1947 na Associação Brasileira de Imprensa, no Rio de Janeiro e depois em São Paulo. Como era exigido no período, o filme foi enviado para a Censura Federal para que fosse exibido em todo o país, mas a cópia foi apreendida pelo DOPS. Com a cassação do registro do Partido, mesmo com a solicitação de explicações do deputado Jorge Amado, a cópia ficou apreendida e até hoje encontra-se desaparecida. Uma das cópias desse filme foi perdida na Tchecoslováquia e outra que existia na Cinédia foi queimada por Ademar Gonzaga em função do golpe militar. Rubim, em nota de rodapé, fala de um escrito de Paulo Roberto Ferreira, no qual afirma que uma cópia desse documentário era utilizada pela repressão, após o golpe, para verificar se os comunistas que apareciam no filme ainda estavam vivos. Em outra nota de rodapé, Rubim reproduz informação de Armênio Guedes de que existe uma cópia desse documentário em mãos particulares em São Paulo. Deste filme resta apenas o roteiro, preservado no Arquivo Público do Rio de Janeiro.

Com o filme sobre o comício de Prestes, Ruy Santos foi convidado a representar o Brasil no Festival de Cinema da República Democrática Alemã, onde foi eleito para a diretoria da União Mundial dos Documentaristas. Mas não foi só de vitórias a trajetória de Ruy Santos: em 1948 foi preso pela polícia política, quando parte do seu acervo foi apreendida. “Ruy Santos fez de tudo um pouco no cinema e reúne em sua bagagem quase uma centena de filmes, entre curta, média e longa metragem dos mais variados gostos e tendências. Ficou famoso por suas filmagens em exteriores. Seu olhar era impregnado de paixão e lirismo, um verdadeiro poeta da imagem. Mas se nos atermos ao trabalho de Ruy Santos, atuante já há duas gerações antes do cinema novo, não compreendemos porque seu nome não frequentou as produções de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, entre outros … Apesar de ser um dos primeiros a anunciar questões políticas no cinema, não teve seu nome associado aos grandes nomes do cinema novo”, dizem Bastos e Ramos.

Ainda em 1944, o jovem comunista Carlos Scliar dirigiu o filme Escadas, com fotografia de Ruy Santos. Outro filme realizado por comunistas foi Estrela da Manhã, produzido entre 1948 e 1950, com argumento de Jorge Amado, roteiro de Ruy Santos, direção de Jonald (pseudônimo do médico Oswaldo Marques de Oliveira), música de Radamés Gnattali e canções de Dorival Caymmi. “Logo em seguida Ruy Santos dirige seu primeiro longa metragem, Aglaia, tendo como roteiristas e assistentes Jorge Ileli e Alex Viany, com argumento de Oswaldo Alves e tendo no elenco as atrizes Ruth de Souza e Roberta Gnattali, filha de Radamés. Mas, estranhamente, o filme foi abandonado quando estava quase pronto. Em 1948, o PCB lançou a revista Fundamentos, mais um canal de comunicação entre os intelectuais e o Partido, na qual existia uma coluna permanente de cinema e onde vários críticos e diretores escreviam sobre o cinema nacional.

Alinor Azevedo e a renovação do roteiro

Alinor Azevedo foi um dos fundadores da Atlântida junto com Moacyr Fenelon e os irmãos Paulo e José Carlos Burle. Membro do PCB desde a década de 30, foi também jornalista e trabalhou no jornal A Manhã, porta-voz da Aliança Nacional Libertadora, fechado após a insurreição de 1935. Posteriormente, trabalhou ainda na Agência Meridional e em O Jornal, ambos de propriedade dos Diários Associados. Alinor foi uma espécie de ícone para a geração que se contrapunha aos projetos da Vera Cruz porque foi um dos subscritores do Manifesto Nacionalista da Atlântida, documento que causou grande impacto na época. Na Atlântida, Alinor foi o responsável pelo cinejornal da empresa, Atualidades Atlântida, muito famoso na época, e foi um dos primeiros a colocar a questão do racismo e do nacionalismo como temas no cinema, além do fato de ter renovado a linguagem do roteiro.

Sua primeira experiência com cinema foi a direção do documentário Cais em Revista, de 1939, financiado com recursos próprios. Mas Alinor se tornou mais conhecido e admirado como roteirista, argumentista e autor dos diálogos. Como roteirista, foi autor, entre outros, de Asas do Brasil, Carnaval de Fogo, Não é Nada Disso, Aviso aos Navegantes, Milagre de Amor, Maior que o Ódio, É fogo na Roupa, Com o Diabo no Corpo, Balança Mas Não Cai, A Família Lero-Lero, Na Corda Bamba e Um Ramo para Luiza. Como argumentista e roteirista assinou, entre outros, os seguintes filmes: Moleque Tião, Luz dos Meus Olhos, Terra Violenta, Também Somos Irmãos, Na Senda do Crime e Depois Eu Conto. Como argumentista, assinou ainda os seguintes filmes: Não Adianta Chorar, Cidade Ameaçada, Colégio de Brotos, Assalto ao Trem Pagador. Como autor de diálogos, assinou as seguintes películas: Um Caçula do Barulho e Carnaval em Marte. “A criação de um texto solto … pode ter sido uma das maiores novidades trazidas por ele”, diz Melo Souza.

Anos 50, a construção das bases do cinema brasileiro

A década de 50 pode ser considerada o momento de tomada de consciência e construção das bases do cinema brasileiro, tanto em termos teóricos, legais, de linguagem, bem como da consolidação de um cinema de caráter nacional. A década de 50 pode ser considerada um dos momentos mais significativos em que o PCB exerceu sua influência sobre a formulação de uma política cultural para o cinema brasileiro, tanto no que se refere às diretrizes em termos de produção e distribuição, criação de entidades, realização de seminários, debates, congressos sobre os destinos do cinema, além das linhas gerais aprovadas nos dois principais congressos do cinema brasileiro realizados no início dos anos 50.

No final dos anos 40 e início dos anos 50, os militantes do PCB de São Paulo e também do Rio começaram a desenvolver um intenso trabalho para consolidar instrumentos que possibilitassem avançar no sentido de um cinema autenticamente nacional. Para tanto, os jovens militantes Carlos Ortiz, Rodolfo Nanni, Alex Viany e Walter da Silveira procuraram criar cineclubes, fundaram o Centro de Estudos Cinematográficos e realizaram seminários sobre cinema. “Era o primeiro curso sistemático de história do cinema, de técnica e estética cinematográfica que aparecia no Brasil. O corpo docente era constituído sobretudo de críticos cinematográficos, estudiosos de cinema e cineamadores prata de casa”. Em 1951, sob a orientação dos militantes do PCB, foi fundada a Associação Paulista de Cinema (APC), que mais adiante teria um papel determinante nos destinos do cinema brasileiro. Enquanto criavam instrumentos de popularização do cinema através dos cineclubes pelo Brasil afora, realizavam um intenso debate através da revista Fundamentos, que se tornaria um posto avançado da discussão sobre o cinema nacional.

O objetivo da APC era buscar a unidade de todos os envolvidos com o cinema, de forma a agregar produtores, críticos, cronistas, cineastas, cineamadores, sócios de cineclubes, num amplo movimento de defesa do cinema nacional. Através de mesas redondas e textos produzidos por esses militantes que eram discutidos internamente, colocava-se para o debate um conjunto de questões sobre o futuro do cinema no Brasil. Esse conjunto de iniciativas desaguou no I Congresso Paulista de Cinema Brasileiro, realizado em abril de 1952, “cujas resoluções deixaram marcas na vida associativa e na consciência cinematográfica brasileira”, enfatiza Ortiz. Nesse encontro, do qual Ortiz foi um dos organizadores, foram apresentadas teses sobre legislação, produção, comercialização, profissionalização e problemas relativos a questões culturais. Essas iniciativas criaram as bases para a realização de dois congressos nacionais e para o aparecimento da Comissão Federal de Cinema e de comissões estaduais e municipais.

Nessa conjuntura, logo depois, foi realizado o histórico I Congresso Nacional do Cinema Brasileiro, após debates preparatórios realizados em São Paulo e no Rio de Janeiro. “Foi um acontecimento inédito na história do cinema, nas Américas e até mesmo na Europa. Ouve-se falar com frequência em festivais de cinema … mas nunca se ouvira falar num congresso nacional de homens de cinema, reunidos durante uma semana para debaterem teses e votarem resoluções sobre problemas econômicos e profissionais, técnicos, estéticos e culturais da indústria de filmes. O I Congresso Nacional de Cinema Brasileiro é, por conseguinte, fato virgem nos 57 anos de história da sétima arte. Não se apagarão tão cedo as ressonâncias desse magnífico espetáculo de unidade, de amplitude e de civismo, cujas resoluções servirão de roteiro para o cinema nacional”, diz um empolgado Carlos Ortiz, um dos organizadores do Congresso em artigo para a revista Fundamentos.

Entre as 29 resoluções do Congresso, de acordo com Geraldo Santos Pereira, em seu livro Plano Geral do Cinema Brasileiro, os delegados se comprometeram a tudo fazer para que o cinema brasileiro refletisse de fato a cultura nacional e se baseasse em histórias brasileiras; o congresso definiu também que só poderia gozar dos benefícios das leis de proteção ao cinema brasileiro os filmes com as seguintes características: a) capital 100% brasileiro; b) realizado em estúdio e laboratório brasileiros; c) argumento cinematográfico, diálogos e roteiro feito por brasileiros ou estrangeiros radicados no Brasil; d) falado em português; e) equipes técnicas e artísticas que obedeçam a lei dos 2/3. Afirmava ainda que os órgãos competentes deviam estudar os meios de financiamento de filmes, através de bancos e entidades de crédito, tendo como base de garantia a própria renda a ser aferida pela exibição do filme.

Além disso, o Congresso recomendou ainda às autoridades a necessidade da urgente criação de uma Escola Nacional de Cinema; condenou a distribuição de filmes brasileiros, dentro do Brasil, por empresas estrangeiras e reivindicou ainda que os clubes de cinema criassem uma federação de clubes e uma filmoteca central, além de considerar justas e necessárias as reivindicações de trabalhadores e técnicos do cinema. O Congresso também instituiu uma Comissão Permanente de Defesa do Cinema Brasileiro composta por 17 pessoas ligadas ao cinema, entre as quais os comunistas Ruy Santos, Alex Viana, Carlos Ortiz, Nelson Pereira dos Santos, Salomão Scliar e Walter da Silveira. Um ano depois foi realizado em São Paulo o II Congresso, que basicamente incorporou as resoluções do primeiro e recomendou alguns ajustes para aperfeiçoar as reivindicações do cinema brasileiro.

Walter da Silveira, pioneiro dos cineclubes

Um dos aspectos mais importantes no que se refere à democratização das exibições cinematográficas e aproximação do cinema com o grande público foi o movimento de criação de cineclubes pelo Brasil afora. Nesse processo, Walter da Silveira, advogado comunista desde 1934, foi uma figura icônica no contexto do cineclubismo brasileiro, especialmente na Bahia. Ele foi o principal articulador da criação de uma cultura cinematográfica crítica, formadora e engajada em um país que até então necessitava de instrumentos e estrutura sólida para apreciação e debate sobre o cinema brasileiro. Foi o fundador do Cineclube da Bahia, nos anos 50, que se tornou referência para uma nova geração de cineastas, críticos e espectadores do cinema como uma arte transformadora e instrumento de reflexão sobre os problemas sociais brasileiros.

O Cineclube da Bahia, sob a liderança de Silveira, foi também um espaço de formação intelectual, onde a exibição de filmes era acompanhada por debates sobre estética, linguagem cinematográfica e, especialmente, sobre o contexto em que essas obras estavam inseridas. Uma verdadeira escola de formação, que compreendia o cinema como uma arte capaz de reunir literatura, música, artes plásticas, fotografia e, principalmente, ousadia com o objetivo de educar e formar consciência crítica dos cineclubistas. Silveira via no cinema uma ferramenta política e cultural, que deveria servir à emancipação do pensamento, resistência cultural, formação de uma nova geração de cineastas e debate sobre a arte cinematográfica e a realidade brasileira.

Foi nesse ambiente do cineclube baiano que muitos dos principais nomes do Cinema Novo, que viviam nessa época na Bahia, foram influenciados pelos debates e aprofundaram a consciência da necessidade de um cinema nacional de expressão própria, com uma linguagem nova, desvinculados dos moldes do cinema hollywoodiano. Essa conjuntura pavimentou o caminho para que o Cinema Novo emergisse com identidade forte, marcado por sua inquietação social e estática. “O Clube de Cinema da Bahia … desempenhou importante papel na formação inclusive de cineastas como Glauber Rocha, Orlando Sena, Paulo Gil Soares, Guido Araújo, Roberto Pires, Rex Schindler durante boa parte em que sua existência girou em torno de Walter da Silveira”, diz Rubim.

Alguns historiadores do cinema também classificam esse momento como a construção do “cinema independente”, composto por realizadores e críticos em sua grande maioria ligados ao Partido Comunista Brasileiro. “Os independentes questionaram, no calor da hora, o modelo ‘industrial’ importado pelos grandes estúdios paulistas, associando tal modelo, direta ou indiretamente, à ação imperialista do cinema estrangeiro – notadamente norte-americano – em um processo conjunto de dominação econômica e cultural. Por outro lado, defendiam a procura por uma forma ‘brasileira’ e ‘realista’ de fazer cinema, essencialmente popular e comunicativa, expressa sobretudo pelo ‘conteúdo’, isto é, pelos temas e histórias levados à tela … tais como o folclore, a música popular, o campo, a favela, o universo do trabalhador e do “homem comum, etc”, ressalta Rocha Melo.

Alex Viany, um pioneiro e um guerreiro do cinema

Alex Viany era o pseudônimo de Almiro Viviani Filho. Em 1945, viajou para Hollywood, onde foi correspondente da revista O Cruzeiro, ao mesmo tempo em que aproveitou sua estadia nos Estados Unidos para aprofundar seus conhecimentos cinematográficos através de contatos com os estúdios locais, além de cursos sobre cinema com renomado roteiristas e diretores como Edward Dmytryk e Herbert Biberman. Quando voltou ao Brasil, em 1948, desenvolveu intensa atividade em relação ao cinema, como o projeto da revista Filme, além de colaboração em jornais e um programa semanal de cinema na rádio MEC. Ao se mudar para São Paulo, já como militante comunista, conheceu outros personagens envolvidos com o cinema e com a revista Fundamentos, como os também comunistas Carlos Ortiz, Geraldo Santos Pereira, Roberto Santos, Nelson Pereira dos Santos. Foi um dos articuladores do I Congresso Paulista de Cinema e do I e II Congresso Nacional do Cinema Brasileiro.

Quando voltou ao Rio de Janeiro em 1952, dirigiu o icônico longa-metragem Agulha no Palheiro (cujo assistente de direção foi Nelson Pereira dos Santos). Este filme, ao retratar um drama urbano com o cotidiano e a simplicidade do povo, é considerado um dos precursores do Cinema Novo. Posteriormente, dirigiu Rua Sem Sol e foi diretor de produção de O Saci, de Rodolfo Nanni e de Balança Mais Não Cai, de Paulo Vanderley. Dirigiu em 1955 Ana, uma história de Jorge Amado para o episódio A Rosa dos Ventos, produzido pela Alemanha Oriental. Com a emergência do Cinema Novo, Viany encontrava-se umbilicalmente ligado ao movimento e nessa época dirigiu o longa-metragem Sol Sobre a Lama. Já em 1974, dirigiu outro longa-metragem, A Máquina e o Sonho, além de vários curtas.

Profundamente ligado ao cinema, Viany escreveu o clássico e pioneiro livro Introdução ao Cinema Brasileiro, hoje material obrigatório em todas as escolas de cinema do Brasil. Atuou também como educador, influenciando várias gerações de cineastas e críticos brasileiros, desempenhando um papel central na transição do cinema brasileiro para uma fase mais madura, consciente, crítica e autenticamente nacional. Pode-se dizer tranquilamente que Alex Viany ajudou a criar as bases de um cinema brasileiro que fosse verdadeiramente nacional em sua forma e conteúdo. Morreu em 1992 e deixou um grande arquivo, hoje depositado no Museu da Arte Moderna, no Rio de Janeiro. Postumamente, os amigos organizaram um livro, O Processo do Cinema Novo, que reúne artigos e entrevistas que Viany realizou com os principais diretores do cinema brasileiro.

Nelson Pereira dos Santos

Em termos de construção de uma nova geração de cineastas, com um estilo novo de fazer cinema, os militantes do PCB nessa área deram uma enorme contribuição para o que é o cinema brasileiro hoje, tanto em termos dos filmes propriamente ditos quanto na crítica cinematográfica, nos argumentos, roteiros, fotografia e formulação teórica. Entre os cineastas pioneiros, que depois se tornariam ícones do Cinema Novo, está Nelson Pereira dos Santos, militante comunista desde os 15 anos, quando ainda era secundarista. Ele começou sua carreira quando o cinema brasileiro estava em busca de uma identidade própria. Estreou no cinema em 1950 com os documentários Atividades Políticas em São Paulo e Juventude, este último destinado a participar do Festival Mundial da Juventude, na Alemanha Oriental, cujo negativo está perdido até hoje. Um ano depois escreveu, na revista Fundamentos, o que viria a ser o mote do Cinema Novo, uma arte que refletisse “na tela a vida, as histórias, as lutas e as aspirações do povo brasileiro”.

Mas o que efetivamente marcou uma virada no cinema brasileiro foi o seu longa-metragem Rio, 40 Graus, feito em regime de cooperativa, condições monetárias precárias e com uma câmera emprestada, filme que se tornaria um marco na história do cinema brasileiro. Filmado com baixo orçamento e utilizando também atores não profissionais, o filme capturou a vida nas favelas do Rio de Janeiro com uma realidade que era rara no cinema brasileiro e estabeleceu as bases para o Cinema Novo. Mesmo considerado “a mais humana e a mais brasileira das películas realizadas em nossa terra”, o filme foi proibido pelas autoridades policiais, que consideraram ser o filme depreciativo, pois apresentava muita miséria e a imagem negativa do Brasil, o que gerou uma onda de solidariedade em todo o país e terminou sendo aclamado como revolucionário por sua inovação estética e compromisso social com o povo brasileiro.

Nelson Pereira dos Santos, ao longo de sua carreira, fez dezenas de documentário e filmes clássicos, entre os quais, Memórias do Cárcere, Boca de Ouro, Amuleto de Ogum, Tenda dos Milagres, Como Era Gostoso o Meu Francês, mas sua obra prima é considerada Vidas Secas, baseada no romance do também comunista Graciliano Ramos. O filme ficou conhecido por expor a dureza da vida no sertão nordestino, lidando com a seca e a pobreza, mas com uma abordagem humanista que dá dignidade aos personagens. Este é considerado um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Além de diretor, Nelson Pereira dos Santos contribuiu para a produção cinematográfica brasileira e sua obra transcendeu as fronteiras brasileiras, influenciando ainda cineastas em várias partes do mundo.

Outros cineastas comunistas da década de 50

Carlos Ortiz, um pioneiro

Primeiro presidente da histórica Associação Paulista de Cinema (APC) e um dos organizadores dos principais congressos do cinema brasileiro, o militante comunista Carlos Ortiz também foi responsável pela formação de vários cineastas e técnicos no curso do Seminário do Cinema, no Museu da Arte de São Paulo. Além de crítico cinematográfico e defensor da construção de um cinema nacional, Ortiz escreveu vários livros sobre o cinema, como Cartilha do Cinema, Argumento cinematográfico e sua técnica, Dicionário do Cinema Brasileiro, Montagem na Arte do Filme, O roteiro e sua técnica e, especialmente, a primeira tentativa de contar a história do cinema – O romance do gato preto: breve história do cinema.

Foi crítico de cinema na Folha da Manhã, Notícias de Hoje e Fundamentos. Além disso, Carlos Ortiz dirigiu dois filmes: Alameda da Saudade 113 e Luzes nas Sombras. Ortiz emergiu num momento em que o cinema brasileiro passava por intensas transformações, tanto estéticas quanto políticas, o que permitiu que ele se colocasse no centro das discussões sobre o papel do cinema como instrumento de mudança e influenciasse várias gerações de cineastas. Como homenagem ao conjunto de sua obra, a Secretaria Municipal da Cultura de São Paulo reuniu seus trabalhos, entre críticas, entrevistas e roteiros, no livro intitulado Carlos Ortiz e o Cinema Brasileiro da Década de 50.

Geraldo Santos Pereira, teoria e prática do cinema

Geraldo Santos Pereira, militante do PCB, foi um cineasta que atuou no Brasil num período de grandes transformações e desafios para o cinema nacional. Ficou conhecido tanto por sua obra cinematográfica quanto por seus escritos sobre a história do cinema. Escreveu Ciranda Barroca, história para o cinema e o clássico Plano Geral do Cinema Brasileiro, uma visão abrangente das diversas fases do cinema brasileiro, analisando tanto os aspectos técnicos, quanto estéticos, além de questões de legislação, produção e distribuição. Utilizou sua experiência como diretor para proporcionar uma análise detalhada das dificuldades e conquistas da indústria cinematográfica no Brasil.

Além de oferecer um importante registro da evolução do cinema brasileiro, destacando a importância de se criar uma indústria nacional que dialogasse com a cultura e a sociedade brasileira, Pereira também foi crítico cinematográfico e dirigiu uma série de filmes tais como Rebelião em Vila, com seu irmão Renato Pereira; Grande Sertão; Balada dos Infiéis; Aleijadinho, Paixão e Glória; O Sol dos Amantes, entre outros. Essa dimensão de Geraldo Santos Pereira consolidou seu trabalho não apenas como realizador de filmes, mas também como um intelectual engajado, com uma reflexão profunda sobre a arte do cinema e seu papel na sociedade brasileira.

Salomão Scliar, artista multifuncional

O gaúcho Salomão Scliar, também militante do PCB, fez praticamente de tudo na arte da cultura e principalmente no cinema. Foi cineasta, roteirista, fotógrafo de cinema e de revista e jornal, produtor musical, editor de mais de 10 livros sobre artes plásticas, futebol e documentos históricos. Trabalhou como fotógrafo na revista do Globo e Realidade, produziu dois LPs, um de capoeira e outro de candomblé. Uma das músicas desse último disco foi utilizada no filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, e Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, muito embora não creditada pelos dois cineastas.

Salomão Scliar entrou para a Atlântida em 1943, sendo assistente de Moleque Tião, Tristezas Não Pagam Dívidas e É proibido sonhar, muito embora também não creditado. Em 1951 lançou Vento Norte, um filme sobre os trabalhadores do mar. Depois dirigiu em Porto Alegre dois documentários: Esperança das multidões, sobre o II Congresso Gaúcho da Paz e Congresso, sobre o IV Congresso Brasileiro dos Escritores. Em 1956 dirigiu outro documentário, Bolívia e, em 1957, dirigiu e fotografou Verdes Mares Bravios, sobre o porto dos jangadeiros em Fortaleza. Em 1958 dirigiu O jangadeiro e seu último filme foi História de um povo – A formação do Paraná.

Rodolfo Nanni e o cinema infantil

Nanni estudou na França e militou no Partido Comunista Francês antes de se ligar ao PCB. Também foi um dos fundadores da histórica Associação Paulista de Cinema, roteirizou e dirigiu O Saci, a partir da obra de Monteiro Lobato, premiado filme de estreia e considerado o primeiro filme infantil brasileiro, no qual Nelson Pereira dos Santos trabalhou como assistente e Alex Viany como diretor de produção. Em 1958 dirigiu Drama das Secas, documentário patrocinado pela Associação Mundial de Luta Contra a Fome. Sobre esse filme, Nanni diz que os recursos foram conseguidos através de Josué de Castro: “Não perdi tempo. Com o dinheiro comprei umas latas de negativo 35 mm … uma câmera e convidei o Ruy Santos e o José Canizares para a aventura … O resultado da viagem acabou se transformando no documentário Drama das Secas”.

Nanni fez posteriormente outros filmes como o documentário Cordélia, Cordélia; Finlândia, País Quente e, nos anos 80, A Travessia. Nanni voltou ao Nordeste em 2008 e realizou o longa-metragem O Retorno, onde refez a trajetória do seu documentário anterior 50 anos depois. Produziu ainda uma série de documentários sobre São Paulo, como Avenida Paulista, São Paulo Centro e Bela Vista e Percurso da Arte Moderna Brasileira – Tarsila do Amaral, além de filmes para a TV Cultura. Nanni também foi fundador e professor do curso de cinema da Faculdade de Comunicação da Fundação Armando Alvares Penteado.

Roberto Santos, cineasta angustiado

Roberto Santos, apesar de ter militado por pouco tempo no PCB, teve grande parte de sua filmografia influenciada pelas ideias do Partido. Ele se interessou pelo cinema em 1952, quando cursou o Seminário de Cinema e logo depois quando participou do II Congresso do Cinema Nacional e sua estreia na área foi como assistente de direção de Nelson Pereira dos Santos em Rio 40 Graus. Seu primeiro filme foi O Grande Momento, em 1957, protagonizado por Gianfrancesco Guarnieri, outro comunista. Com a emergência do Cinema Novo, fez o clássico filme A Hora e a Vez de Augusto Matraga, adaptação do livro Sagarana, de Guimarães Rosa. Santos, ao longo de sua carreira, dirigiu 11 longa-metragens e 18 curtas, além de documentário para a TV.

Além de cineasta, Roberto Santos foi professor da Escola de Comunicações e Artes. “Nos últimos anos, angustiado com a desumanização do homem pela técnica e pelo mercado, assumiu, na vida … uma atitude quase quixotesca. Uma imagem eloquente e definitiva dessa sua postura saiu na primeira página dos principais jornais: ao ver que a Prefeitura derrubava uma velha tipuana em frente à sua casa, na Bela Vista, subiu na árvore e ficou lá, para impedir a derrubada.” Morreu de infarto no aeroporto de Congonhas quando voltava do Festival de Gramado, onde competiu com o filme Quincas Borba.

Galileu Garcia e o Cara de Fogo

Galileu Garcia, também militante comunista, teve uma longa trajetória no cinema brasileiro como jornalista, produtor, assistente de direção, diretor e crítico de cinema. Começou atuando no setor de publicidade da Vera Cruz, foi assistente de direção de Lima Barreto no filme O Cangaceiro e outros filmes da Vera Cruz, além de ter roteirizado As Aventuras de Malasartes, de Mazzaropi e escreveu o livro Mazzaropi, o caipira mais caipira do Brasil. Como cineasta, foi diretor de Cara de Fogo, baseado no livro A carantonha, de Afonso Schmidt, que ganhou vários prêmios e participou do Festival Internacional do Cinema de Moscou. Antes de morrer, Galileu Garcia fez o longa-metragem em homenagem a Lima Barreto, diretor do premiadíssimo filme O Cangaceiro. Esse filme se chama LB (Lima Barreto, EC) Persona e significou não só a volta de Galileu Garcia ao cinema, mas também uma homenagem a um clássico do cinema brasileiro e ao seu diretor, cujo filme foi premiado em Cannes.

(Continua)