Contra a criminalização da arte urbana

Por Laylon Morais e Gustavo (CNMO e PCB Curitiba); Marco Peri (Associação Reação Periférica e Os Mais Idoso); Gil Vandal (Nois por Nois); Mangaba (Conexão Ocaida

“O graffiti na parede já defende algum direito”, já dizia Helião com Sabotage — uma verdade que muitos se recusam a enxergar. E talvez poucos expressem esse desprezo tão abertamente quanto Luciano Hang, o bilionário das lojas Havan. Na cruzada que vem travando contra o graffiti, primeiro em Brusque (SC) e agora também em Araucária (PR), Hang expõe em alto e bom som aquilo que muitos dos poderosos ainda cochicham: o medo da cidade viva, da arte que vem de baixo, da periferia que pinta seus próprios muros e não pede permissão para existir.

Sem compreender toda a história e cultura que o graffiti carrega — enquanto um dos quatro elementos fundadores do movimento Hip-Hop — figuras públicas e parlamentares buscam criminalizar mais uma vez a cultura periférica. E o fazem de forma grosseira. Luciano Hang, por exemplo, publicou vídeos atacando obras feitas com autorização — como o trabalho de Gil Vandal, Nois por Nois e do “Os Mais Idosos“, coletivo que traz no nome a referência aos pioneiros do graffiti em Araucária e que ainda estão na ativa, pintando e passando a cultura adiante — para sustentar seu projeto de criminalização da arte urbana. Não por ignorância apenas, mas por conveniência. Afinal, como exigir que Hang e seus aliados, como o vereador Leandro (SOLIDARIEDADE) e seus assessores, saibam diferenciar graffiti de pixação se o objetivo nunca foi compreender, mas sim reprimir?

Esse tipo de repressão não é novidade. Desde muito antes de Hang, a elite brasileira já tentava apagar aquilo que não controla. João Dória, ainda prefeito de São Paulo, também promoveu o silenciamento estético da cidade ao apagar murais históricos com sua famigerada “tinta cinza da ordem”. Hang apenas repete esse script — em versão mais caricata e histriônica — pressionando vereadores, convocando reuniões políticas dentro de sua empresa e apresentando PowerPoints absurdos que associam graffiti a Che Guevara, beijos entre homens e pessoas negras, como se isso fosse o prenúncio do apocalipse. Chega a afirmar, sem pudor, que uma lei de regulamentação do graffiti abriria “as portas do inferno”.

Mas o que realmente apavora Luciano Hang é aquilo que ele não pode embrulhar e vender: o artista que grita com cor o que os jornais silenciam, o trabalhador que deixa sua marca na fachada do prédio que ergueu com o próprio suor, a juventude preta, periférica, dissidente, que não cabe na estética padronizada da vitrine de shopping.

A pixação é uma facada no concreto cinza da cidade, um grito de quem foi empurrado para as margens mas se recusa a ficar invisível. Enquanto a elite enche os muros de anúncios e prédios vazios, a pixação corta o cenário como um lembrete: “a cidade também é nossa”. Não é sobre “embelezar”, é sobre ocupar – porque quando o acesso à cultura e ao centro é negado, a quebrada responde riscando o cartão postal da hipocrisia. E aí vem a contradição escancarada: a mesma mão branca que paga milhares de reais por uma foto de pixação (como a obra do artista negro João França do Coletivo MIA, vendida sem autorização e nem remuneração na 15° SP-Arte) é a que assina projetos de lei pra prender o pixador.

A elite consome a estética da rebeldia como moda, mas persegue quem cria essa rebeldia na quebrada. Enquanto um pixador vira alvo da PM, a galeria gourmetiza a pixação e lucra em cima – é o apartheid cultural em ação: o negro pode até virar decoração de parede, mas não pode ter voz nem direito à cidade.

E não é só sobre tinta no muro – é sobre quem tem o direito de ditar o que é “arte” ou “crime”. A foto da pixação vendida em uma galeria de arte enquanto o próprio artista segue na luta é um dos exemplos que a burguesia adora a cultura negra desde que esteja emoldurada, descontextualizada e – principalmente – sem dividir os lucros. Querem a estética da periferia, mas não os corpos que a produzem.

Enquanto isso, o pixador que ousa marcar um prédio abandonado no centro vira caso de polícia, porque a ordem é clara: pobre pode até servir de inspiração pro café com prosa de galeria, mas não pode se apropriar do espaço que lhe foi negado. A pixação é luta de classes na parede e a elite só enxerga vandalismo porque não consegue ler a mensagem: “enquanto a cidade for um apartheid, a tinta vai continuar escorrendo”.

Não estamos falando apenas de tinta no muro, mas de uma disputa real por sentidos, territórios e poder. O graffiti é um discurso visual que subverte a estética da ordem e a substitui por uma ética da visibilidade, da inconformidade e da resistência. Ele desafia a suposta neutralidade dos espaços urbanos, denuncia desigualdades e transforma muros em trincheiras simbólicas. É, antes de tudo, uma forma de presença. Uma prática que torna visível o que o projeto de cidade dominante deseja esconder.

Diante disso, quando Luciano Hang tenta apagar murais consentidos ou legislar sobre o que é arte e o que é crime, ele não age apenas como empresário, mas como um censor moral, tentando impor sua visão de mundo sobre a pluralidade urbana. E o faz mesmo estando envolvido em acusações de sonegação fiscal, fraude, abuso de poder econômico, assédio a trabalhadores e uso ilegal de recursos empresariais em campanhas eleitorais. O “Véio da Havan”, envolvido em tantas práticas condenáveis, quer se tornar referência para criminalizar manifestações culturais legítimas? A incoerência grita mais alto do que qualquer tinta.

Essa repressão à arte periférica revela, com nitidez, o velho funcionamento do Estado burguês: leis que se moldam conforme os interesses dos donos do poder. Pau que bate em grafiteiro não bate em sonegador. O enfrentamento a essa lógica não pode ser passivo. Precisa ser coletivo, ofensivo, criativo e urgente. E é por isso que a resposta da cultura precisa vir das ruas, das praças, dos becos, das quebradas — dos lugares onde mais se reprime e menos se investe.

Convidamos você, leitor, a conhecer, apoiar e divulgar as oficinas de graffiti, de áudio e vídeo, de MCs, de artes marciais e de cultura Hip-Hop que florescem na periferia com o suor e a esperança de quem luta por outro futuro. Já pensou que mundo diferente viveríamos se, ao invés de repassar bilhões em isenções fiscais para redes como a Havan, cada prefeitura investisse R$10 mil por oficina cultural e R$1.000 por jovem participante? Esse investimento, tão simples quanto justo, teria o potencial de transformar a juventude marginalizada em protagonista cultural, social e política da cidade.

É por isso que o graffiti resiste. Porque ele pinta o que o poder quer apagar. Porque ele escreve o nome de quem nunca teve lugar no letreiro da cidade. E se apagarem de novo, como disse o grafiteiro, “eu faço de novo”. A cidade não é showroom de bilionário — ela é feita de corpo, cor, suor e voz. E enquanto houver um muro e uma lata de spray, haverá quem pinte a cidade que a elite insiste em silenciar.