Poesia contra a Ditadura

Jeferson Garcia 1
Thiago Cervan 2

Companheira,
virão perguntar por mim.
Recorda o primeiro poema
que lhe deixei entre os dedos
e diz a eles
como quem acende fogueiras
num país ainda em sombras:
meu ofício sobre a terra
é ressuscitar os mortos
e apontar a cara dos assassinos
porque a noite não anoitece sozinha
há mãos armadas de açoite
[Pedro Tierra]

Pode a poesia ser contra algo? Puristas e liberais dirão que a poesia, a “autêntica poesia”, não deve ser política, engajada ou social. Então, quando colocamos a poesia em oposição a algo, devemos primeiramente explicar a sua função social para entendermos se realmente existem as grades que prendem a poesia sob o cárcere da palavra neutra.

Todo novo poeta se inspira em uma fonte, da qual se orienta. Em plena ditadura empresarial-militar no Brasil (1964-1985), o cárcere marcou a poesia de muitos nomes, como o de Pedro Tierra. Aqueles tempos, aquelas barras de ferro, aqueles instrumentos de tortura, deram o rosto de sua obra e, por isso, não é possível dissociar seus poemas dessa realidade. Nenhum poema pode, portanto, ser lido de forma dissociada das condições de vida de seu poeta.

Toda poesia nasce de um chão histórico, independentemente do seu tema, dos seus versos, da sua forma e conteúdo ou de seus poetas. A construção de imagens, movimentos, as rimas, a cadência, o som, o encantamento, a construção de ideias e sentidos, todos estes elementos, estão diretamente relacionados com a criação do poeta, que tenta fazer naquilo que rabisca o ritual proferido por Conceição Evaristo: “Quando eu morder/a palavra, / por favor, / não me apressem, / quero mascar, / rasgar entre os dentes, / a pele, os ossos, o tutano/ do verbo, / para assim versejar/ o âmago das coisas.”

A poesia é expressão poética de um tempo e de uma subjetividade. A obra poética é marcada decisivamente pelo cotidiano em que o poeta vive e como vivencia esse período histórico. Porém, não experimentamos o cotidiano da mesma maneira. Alguns poetas falam dos amores cercados de vinho num restaurante em Paris, outros falam do amor que sobrevive a falta de saneamento básico, trazendo metáforas das flores que nascem nos esgotos a céu aberto. O mar que representa transitoriedade da vida para alguns poetas é o mesmo mar que é cemitério de negros africanos jogados aos tubarões no Atlântico. Afinal, se é verdadeiro que a cabeça pensa conforme os pés pisam, em um mundo cada vez mais destroçado é tendencioso que o chão repleto de sangue e ossos de mortos também surja na poesia. Como também é comum que determinada classe busque uma suposta neutralidade poética, a fim de tirar toda a potência de mobilizar afetos em prol de um projeto de emancipação humana. A defesa da “arte neutra” nunca foi neutra.

E é claro, esses temas são comuns tanto a prosa quanto a poesia. Todavia, como dizia Ariano Suassuna, na poesia é a predominância da imagem, do ritmo e da metáfora que a caracteriza, no trabalho de versejar esse mundo doloroso. Um poema é imagem, som e significado. Na prosa, o que predomina é a precisão e a clareza. A linguagem muda, na dialética da predominância entre objetividade e subjetividade. Na poesia segue-se o que disse Jorge Luís Borges: usa-se palavras comuns e, de algum modo, as torna incomuns.

A poesia então nasce da imagem, da palavra, da lembrança, da memória, daquilo que diz respeito ao que o poeta dá significados em seu cotidiano. O poeta, diz Mauro Iasi, atravessa o mundo com uma subjetividade que lhe é, via de regra, um carma. Um poeta que vive uma vida farta, pode vir a falar da fartura da vida. Um poeta que vive no exílio, pode vir a falar das dores da separação. Toda poesia é, portanto, fruto de um modo de ser, de viver a vida, mas também uma decisão, ela também surge de uma escolha entre alternativas.

O poeta pode escolher representar a identidade do outro, como um poeta de Cabo Verde que prefere falar das mulheres de Paris, da linda vegetação europeia e, assim, se esquece da seca de sua terra, como denunciava Amílcar Cabral. É, assim, uma escolha, uma opção frente à realidade, estando o poeta mais ou menos esclarecido daquilo que faz. Ambas as posições são políticas. Isso não significa que um poeta oriundo da burguesia não possa vir a ter sensibilidade para versar sobre o mundo caduco capitalista e tentar captar o movimento da vida. Na poesia mundial há exemplos de poetas que traíram sua classe de origem e conseguiram produzir grandes obras. No caso brasileiro, Oswald de Andrade e Manoel de Barros são poetas emblemáticos neste sentido. Ambos eram filhos de fazendeiros. Mas isso não impediu que o poeta das “insignificâncias”, das “memórias inventadas”, dissesse que “o ser que na sociedade é chutado como uma Barata – cresce de importância para o meu Olho”.

O contrário também é verdadeiro: não é porque a tendência política de um poeta seja considerada a mais acertada, que ele necessariamente produzirá poesia de boa qualidade. Ferreira Gullar morreu maldizendo o socialismo ao final da vida, teceu comentários preconceituosos e racistas, mas seus posicionamentos não afetaram a boa qualidade de sua poesia. Isto demonstra que não há uma relação mecânica entre tendência política avançada e poética avançada.

Pois, tanto a poesia que fala quanto a que usa do silêncio seletivo são comprometidas com algo. Porque a vida é política e fugir dela é infrutífero, como nos ensinou Bertolt Brecht:

O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos.
Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio
depende das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo
que odeia a política. Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta, o menor abandonado,
e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo.

B. Brecht

O poeta muitas vezes se veste com as roupas do analfabeto político e tenta, munido da espada da justiça, dizer o que se pode ou não escrever, sob a pena de ser declarada a poesia de menor valor estético. Ou nem mesmo considerada como poesia. O poema nasce com essa relação direta com a realidade em que se vive. Às vezes, busca fugir dela. Às vezes, escancará-la.

É muito comum o uso da régua de “poesia engajada” para tentar desqualificar a qualidade poética de versos que não fogem da realidade, das dores do mundo nas costas daqueles que o sustentam. Quando não se falava das mulheres negras brasileiras, a poesia era autêntica. Quando Solano Trindade passou a poetizar mulheres negras, chamaram seus versos de poesia engajada. Um poema que narra as belas árvores e flores do outono é visto como um poema da mais alta qualidade. Todavia, um poema que narra o mormaço na floresta, a destruição das árvores da região amazônica, em prol do monopólio capitalista da madeira, é vista como uma poesia política. As duas expressões, na verdade, são expressões da realidade. Mas muitos poetas ainda não entenderam que a realidade é teimosa. Desta forma, toda poesia é engajada. A questão que fica é o tipo de engajamento. Para quem o poeta escreve? Quais sensações quer despertar? Qual a forma usada para seus fins? Quais os seus meios de difusão? As preocupações são distintas e o poeta expressa muitas vezes sua posição de classe no mundo em seus versos. O poema fala muito, inclusive quando não diz nada.

Durante e após a ditadura que corroeu o Brasil por 21 anos (1964-1985), a cultura (e a arte em geral) foi uma das formas de oposição aos militares e a tudo que eles representam em nossa história: tortura, cárcere, prisões, atraso político, dependência, apagamento e muito mais. A resistência ao golpe de 64 foi precária, comparada ao potencial do inimigo e seus aliados. Mas ela se deu pela luta armada, política e cultural, no teatro, na fábrica, na universidade, na guerrilha, pelo fuzil e por meio do poema. É a máxima do que já nos disse Leminski: na luta de classes, todas as armas são boas.

Não é estranho que no campo da música, do teatro e da literatura, tenham surgido tantos testemunhos desse tempo, quanto denúncias, a exemplo de músicas como “Cálice” de Chico Buarque, ou de livros como “O poema sujo” de Ferreira Gullar. Mais uma vez, a opção de escrever quando tudo é proibido é uma decisão do poeta. Às vezes, é seguir à risca o aviso, ou ameaça, de Golondrina Ferreira: “Proíbam e eu escreverei/ com as unhas/ na lataria das máquinas”. Não é essa escolha que faz a poesia ser panfletária ou não. Panfleto é entregue para se vender uma ideia, buscando que alguém compre. Para isso já existe a publicidade.

A poesia que fala da realidade não é panfletária, ela é, no entanto, a poesia que nasce com os olhos no espelho do mundo e se vê nele, fala dele e dele decide não se esconder. É o poema que ergue barricadas como um argelino, destruindo máscaras brancas e revelando seu o rosto negro. Vale pontuar que a pecha de panfletário caminha de mãos dadas com o anticomunismo que cada vez floresce mais em nossas terras. A poesia, dentre outras coisas, é um objeto artístico que interfere no mundo. Isto é um fato. A questão é qual tipo de intervenção o poeta se propõe a fazer. Nos parece que a falta de perspectiva organizativa dos artistas é um empecilho para pensarem suas produções.

As derrotas históricas da classe trabalhadora, o descrédito de formas organizativas tradicionais (como partidos e sindicatos), levaram o poeta a um isolamento maior. Porém, também há respostas para esse isolamento. Na última década, o boom do surgimento de saraus e slams nas periferias das cidades brasileiras é uma tentativa de organização de poetas e artistas que estão pensando a arte para além do fazer artístico. Ao criar um sarau não atrelado a estruturas estatais ou empresariais, os poetas estão questionando a circulação das obras de arte e, desta forma, adubando o terreno para outras formas de sociabilidade que também questionam a violência estatal herdada do aparato repressor da ditadura, por exemplo.

Neste ponto entra Pedro Tierra, um dos maiores poetas brasileiros e, também, um ilustre desconhecido. Pedro escreveu parte de seus poemas dentro da prisão, dos andares do DOPS. A sua poesia foi a voz de muitos que foram calados, ou daqueles que tiveram medo de sair às ruas. Se fez em Tierra aquilo que aponta Mauro Iasi:

“Há poetas que navegam pelo mundo em embarcações coletivas, galês ou caravelas, jangadas ou canoas, em que remam junto com seus camaradas, içam velas contra ventos assombrosos. Estes não têm muito tempo para autolamentações, veem sua dor nas costas cansadas de seus camaradas, juntos puxam a rede na dura labuta do mar, dividem seu alimento, bebem juntos o vinho e sorvem o fumo. Quando cantam, não é somente sua voz, mas a voz dos afogados, daqueles que tiveram suas línguas arrancadas pelo silêncio, daqueles que queriam gritar, mas não sabiam como”

Mauro Iasi

Assim como outros poetas do período e alguns de hoje, seus poemas percorreram os temas de repressão, resistência e esperança. Além de Tierra, Ana Montenegro, Pedro Casaldáliga, Ferreira Gullar, Alex Polari, Thiago de Mello, Cida Pedrosa, Alípio Freire também não se esquivaram da realidade do cárcere em seus versos. Na literatura mais geral, os escritos de Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Ana Maria Machado e Carmen Fische também fizeram críticas ao mundo militar(3).

A poesia pôde, assim, denunciar a vida sem sentido, como fez Ferreira Gullar: “Introduzo na poesia/ A palavra diarreia/Não pela palavra fria/Mas pelo que ela semeia./ Quem fala em flor não diz tudo./Quem me fala em dor diz demais […] Mais que palavra, diarreia/ é arma que fere e mata./Que mata mais do que faca,/mais que bala de fuzil,/homem, mulher e criança/no interior do Brasil.” Da mesma maneira que Gullar introduziu a palavra “Diarreia” na poesia, nomes como Alex Polari e Pedro Tierra introduziram a palavra “pau-de-arara”, trazendo ao verso toda a brutalidade da vida, dura e sanguinária, de um preso torturado.

E não foi a única palavra. Nos poemas foram costurados versos, como quem dava ponto nas próprias feridas e cicatrizes abertas, sobre os métodos de tortura, dos choques elétricos, da cadeira-do-dragão, das técnicas de afogamento, da desesperança, medo, prisão, censura, exílio, desaparecimento, tributos a militantes, das técnicas de assassinatos de pessoas e ideias, da vida em clandestinidade, da sensação de impotência, dos porões, das guerrilhas, como também foram escritas sátiras ao patriotismo subordinado, menções ao povo nas ruas em atos, movimentos políticos, críticas ao cultivo ao silêncio, ao plantio do medo, bem como foram testemunhadas as convocações à luta. Muitas dessas palavras e destes sentimentos apareceram pela primeira vez na poesia brasileira.

Tais aspectos representam muito bem a “poesia de testemunho” que Pedro Tierra definia em sua escrita. Podemos unificar essa característica desses poemas ao peso amargo do lema que Thiago de Mello trouxe para a sua escrita: “para quem não viveu, convém contar/ a quem já se esqueceu, quero lembrar”(4).

A produção literária de Tierra tem relação direta com as marcas da violência. O escritor, diz ele, “é chamado a dizer por meio da ficção a verdade que o relatório, o boletim, o depoimento não capturam. Por isso a criação literária adquire uma dimensão de testemunho histórico que os memorandos burocráticos não alcançam”.

No entanto, outros poetas e artistas das palavras, durante o mesmo período, cantaram para os ditadores canções de amor, enquanto os porões dos cárceres estavam cheios de sonhos e torturas. A poesia, sobretudo atrelada à música, foi uma arma de dominação cultural poderosa durante o período no Brasil. Não é por acaso que até hoje o cantor Roberto Carlos é chamado de rei pela Rede Globo de Televisão.

Se é correto dizer que diversos poetas (a maioria ligada às organizações da classe trabalhadora) sofreram com a ditadura e produziram uma tradição própria da poesia latino-americana, outros passaram sem ser incomodados. Há ainda os poetas do samba (ligados a outras formas organizativas como, por exemplo, as escolas de sambas), que também foram censurados durante o período ditatorial. Artistas como Paulinho da Viola, Candeia, Leci Brandão, Bezerra da Silva, Elton Medeiros, Nei Lopes, dentre outros, deixaram de gravar ou tiveram músicas alteradas pelos censores(5). Todos negros, oriundos das camadas populares.

Voltando a Tierra, podemos dizer que suas palavras comprovam que a arte é um complexo capaz de elevar a capacidade humana de sentir, de transformar a subjetividade pela elevação da sensibilidade. É pelos sentidos que o mundo chega à consciência de quem lê ou ouve uma poesia. O poema atua na emoção, na subjetividade e na individualidade. A poesia altera a nossa forma de ver a vida cotidiana – tarefa de toda arte.

Enquanto os militares usavam a tortura como ferramenta, alguns poetas usaram, além do fuzil, a poesia. Pois como disse Lila Ripoll: “Sou poeta. / Obrigatório / é para mim o sonho”. E os/as poetas prepararam a pólvora e o sonho(6). Mas às vezes a realidade era o pesadelo. Pedro Tierra conta que, em uma sessão de tortura, um dos objetivos do torturador é fazer com que o torturado perca a noção do tempo, para que não saiba o dia, a hora, nem onde está(7). A comida é entregue em horários sem sentido, as luzes sempre acesas fazem perder a sensação de dia e noite. Atordoar é uma técnica do massacre. Às vezes, a poesia era uma forma de resistir à brutalidade dos fardados.

Certa vez, o poeta comentou que foi a poesia que o ajudou a olhar no espelho e continuar se vendo. Ela salvaguardava sua humanidade, tão destruída nos momentos de tortura. Essa é a palavra que nasce contra o esquecimento e pela memória, é ela quem salva vidas e aponta o caminho quando se faz escuro e se acabaram as velas, pois há quem diga que essa é a função dos poetas: “acender as fogueiras dos acampamentos”(8). Revelar, em histórias de horror, os verdadeiros monstros e fantasmas, os diversos setores ligados à ditadura, como as associações industriais, os grupos financeiros, proprietários da terra e os religiosos. É a poesia que mostra, por meio de sua linguagem própria, a serpente que nasceu no subterrâneo das igrejas e que ainda hoje envenena os descalços.

Por mais que a censura tenha garantido o poder do discurso dominante, a resistência no campo da literatura permitiu que o proibido fosse escrito, seja em papéis de maço de cigarro ou nas paredes do cárcere. Os lápis roubados dos algozes ou o sangue na ponta dos dedos anotavam o nome dos amores nas paredes. Alguns poemas, duros e diretos, foram guardados na memória, sob o risco de causarem o apagamento definitivo do poeta. É verdade, em alguns casos só as palavras sobreviveram. Em outros, anos depois, a mão esmagada deitou a memória sobre o papel, para revelar que “há mundos/ submersos,/ que só o silêncio/ da poesia penetra”, como nos disse Conceição Evaristo.

Para Tierra, é esse o papel da palavra: “venho falar/ pela boca dos mortos/ sou poeta-testemunho”. E isso é fundamental, ainda mais nesse país, onde lidamos mal com nosso passado e o presente é carregado de manchas de outros tempos. Mas bem sabem os poetas: nada do que é escrito sobre a ditadura é suficiente. A crítica da palavra nunca substituiu a crítica das armas. A metáfora, sozinha, não dá conta da barbárie. Mas é papel da poesia, diz Tierra, resistir às tiranias.

Essa é uma característica da poesia latino-americana. As ditaduras que percorreram toda a América Latina [Bolívia (1964–1982), Brasil (1964-1985), Peru (1968-1980), Chile (1973–1990), Uruguai (1973-1985) e Argentina (1966-1973 e 1976-1983)] trouxeram aos poetas comprometidos com a classe trabalhadora uma vida em comum, sofrimentos em comum, dores em comum, que o poeta assumiu para si: “eu quero um poema-dor/ arrancado aos pedaços/da carne da vida”(9).

Nasce desse chão histórico uma poesia que contesta todo esse mundo militar. Segundo Vasques “o poema vem ao mundo não só pelas mãos do poeta, mas também pelas mãos da história”. É o caso de Pablo Neruda, Otto René Castillo, Lila Ripoll, Jacinta Passos, Roque Dalton e muitos outros nomes fizeram seus poemas florescerem sob o adubo mais doloroso, os ossos de seus camaradas. Ajudaram a resguardar a memória, a deixar seu testemunho, a denunciar o mundo, mas também deixaram mapas, construídos com versos, mostrando os caminhos que devemos evitar, pois quando percorridos levam ao fascismo.

Pedro é um destes poetas: um pássaro que, mesmo engaiolado, canta. Sua voz é uma voz coletiva. Seu poema é um hino, uma bandeira. Os materiais de onde brotam seu canto são os mais diversos, como a tristeza e a alegria, o cárcere e o amor: “guardo teu nome nas paredes da cela”. A alegria do encontro, a dor que fere, a esperança que nos move, a ferida que nos lembra. Se Eduardo Galeano estiver certo – e é bem provável que esteja – essa tradição de poetas, da qual Pedro Tierra faz parte, escreveram (e ainda o fazem) para denunciar o que dói e para compartilhar a alegria. Por isso, a poesia às vezes é tão machucada, uma pedra rachada. Mas, entendam, como diz Iasi, “não culpem o mensageiro, são os tempos que anoiteceram”(10).

Pedro foi preso de 1972-1977, sob a mão pesada de Médici. Ele foi um dos poetas que a tortura não dobrou: “prometi nunca render-me/ao verso fácil”(11). Se os versos nascem de imagens, palavras, lembranças e frases, as suas nascem regadas pelas lágrimas de seu peito e das mãos de seus camaradas. Ele escreveu como quem planta uma flor no esgoto, como quem deixa migalhas de pão no caminho, aos que virão depois. Alimentou seus versos com ódio, mas também com paixão e os colocou para dormir nos papéis velhos que conseguia na prisão, pois ele sabia: “pela palavra, lidam os poetas, com a memória e a paixão”(12).

A poesia contra a ditadura é, portanto, essa poesia que não foge da realidade, que se opõe às tiranias, que testemunha e denuncia. Não teme os rótulos de “política”, “social”, “engajada”, se preocupa mais com a miséria. É poesia escrita por lutadores e lutadoras de toda a América Latina. Ela contribui alimentando a consciência de quem a lê e, em muitos casos, revelando um mundo desconhecido. Ela acende o fósforo da denúncia, mas também da esperança. Carrega em seu peito a semente de um mundo novo, uma realidade diferente e possível. Em um país de senzalas, é normal que a poesia também seja rebelião.

Os poetas comprometidos com a classe trabalhadora oferecem o depoimento de seu momento histórico, a exemplo de toda uma tradição da literatura latino-americana e da poesia de luta. Escrevendo, dizia Galeano, é possível oferecer o testemunho de nosso tempo e da nossa gente, a nossa condição. Por isso, vários poetas advogam a poesia de negação, de denúncia, de testemunho, a que canta nossos mártires e nossos mortos, a que nega o que nos causa dor(13). Buscam a poesia que questiona a realidade, que a reflete e que provoca quem a encontra. Descobrem sentido nessa poesia que ergue bandeiras e barricadas, que se faz canivete ou pedra no peito de alguém.

Esse é o ofício do poeta, alargar os horizontes da língua. Abrir consciências com um machado feito de palavras. O compromisso do poeta é assumir seu ofício, em uma tentativa de encontro com quem deita os olhos no poema. É um diálogo. Se a função do torturador trazia consigo a necessidade de fazer o torturado perder a noção do tempo, o trabalho do poeta é recuperá-la. Pedro acredita que períodos de tirania trazem, inevitavelmente, uma literatura de resistência(14). Pois os poetas do povo recusam a paz sempre que ela significa aceitar a lógica da escravidão, ou a certeza do genocídio – como denunciou a poeta palestina Heba Abu Nada. Como denunciou, também, Castro Alves. Os quilombos são exemplos dessa negação. A poesia é um pé negro jogando capoeira com o pescoço de um senhor do engenho, mas também uma pedra que voa sem parada até a janela de Benjamim Netanyahu.

Por fim, não se enganem com o discurso da palavra neutra. Como nos ensina Jeff Vasques, toda arte, toda literatura é comprometida. Até mesmo aquela que diz não ser.

1. Jeferson Garcia é poeta, autor da obra teórica Racismo, capital e emancipação humana, publicada pelo Instituto Caio Prado Júnior (ICP) (2022), dos livros de poemas Dialeto das Senzalas, publicado pela editora Pedregulho, Nossas lágrimas são insubmissas, publicado pela Mondru Editora, ambos em 2023, e de “O fogo queima diferente abaixo da linha do Equador”, no prelo, pela Editora Folheando (2024).

2. Thiago Cervan é poeta, realizador audiovisual e educador popular. Publicou “Não existem rotas conciliatórias de fuga” (Ed. Urutau, 2016) e junto ao Coletivo Trunca a “Antologia de Poesia de Luta da América Latina” (2022).


Notas

3. Eurídice Figueiredo em “Mulheres contra a ditadura”: https://blogbvps.com/2024/03/31/mulheres-contra-a-ditadura-por-euridice-figueiredo/

4. Thiago de Mello, em Mormaço na Floresta, 2023.

5. https://oglobo.globo.com/cultura/musica/letras-originais-censuradas-de-candeia-paulinho-da-viola-outros-bambas-sao-reveladas-21115187#:~:text=Inspirado%20na%20sua%20indument%C3%A1ria%2C%20Paulinho,%2F%20inoxid%C3%A1vel%20(…)

6. Do poema “inventar o fogo”, de Pedro Tierra.

7. Pedro Tierra, “poemas do povo da noite”, 2009.

8. Pedro Tierra em “A estrela imperfeita”, 2014.

9. Pedro Tierra, “A razão do poema” em A palavra contra o muro, 2013.

10. Em Outros tempos e Florações.

11. Pedro Tierra, “A razão do poema”, em A palavra contra o muro, 2013.

12. Pedro Tierra em “A estrela imperfeita”, 2014.

13. Ver a entrevista de Golondrina Ferreira: http://centrovictormeyer.org.br/entrevista-com-a-operaria-poeta-e-militante-golondrina-ferreira/

14. Pedro Tierra, “poemas do povo da noite”, 2009.

15. Jeff Vasques, em Poesia de luta da América Latina, 2017.