Olimpíadas, estética e política

Por Mauro Luis Iasi
BLOG DA BOITEMPO

Se os que se dizem revolucionários não conseguem ver beleza em Bias, Anas, Dudas, Rebecas, Simones, Izaquias, Valdenices, Pios e tantos outros e outras… bom, a revolução está morta por dentro.

“Os melhores fascistas obedecem em silêncio e trabalham com disciplina.
Nós dizemos: primeiro os deveres, depois os direitos.”
Benito Mussolini

Adoro Olimpíadas, aguardo ansioso por quatro anos, assisto tudo que posso, torço e me emociono. Mesmo sabendo de todas as suas determinações na era do capital, da mercantilização e do fetiche. Gostar dos jogos não implica que, como todo chato, você resista a fazer análises e considerações.

São muitas as camadas que poderíamos aqui trazer à nossa reflexão. As Olimpíadas são a expressão clara da sociedade da livre concorrência e da meritocracia, na qual muitos disputam e poucos ganham. Em Paris, neste ano de 2024, foram 11.400 atletas em 48 modalidades, sendo que somente 144 chegaram ao pódio. Desde 1895, quando os jogos da era moderna começaram, foram distribuídas, no total, 15.683 medalhas, ou seja, um pouco mais do que o número de atletas neste ano. Caso consideremos as qualificatórias pré-olímpicas, o funil é ainda maior.

Os jogos são, ainda, uma metáfora perfeita da ordem jurídica, na qual pessoas diferentes são tratadas diante das mesmas regras, como se não houvesse fatores econômicos, sociais, políticos e culturais envolvidos. Todo mundo é igual diante do Comitê Olímpico, o que permite que Etiópia, Nigéria, Tajiquistão e países da América Latina voltem para casa orgulhosos de suas medalhas. No quadro final de medalhas, no entanto, o que resulta é o G7 na frente. Diante das regras e normas igualitárias, temos vencedores subindo ao pódio e um mar de perdedores do terceiro lugar para baixo.

Podemos lembrar, também, da ideologia da incrível superação de quem vem de baixo e galga os pícaros de ouro e prata do Olimpo. Saindo de cidades e bairros pobres, da miséria e das favelas, contra tudo e contra todos, abrindo com abnegação e força seu caminho até a glória.

No entanto, o que gostaria de destacar aqui é o aspecto estético. Aparentemente, as Olimpíadas são uma verdadeira democracia de corpos. Se você é baixinha ou baixinho, pode disputar a ginástica olímpica, se é alta demais e sofria bullying na escola, por exemplo, pode ir para o basquete ou vôlei. Pode ser muito magra e disputar as corridas ou mesmo gordinhos podem ser ótimos nos arremessos de disco e peso, ou se darem bem no judô. No entanto, como na democracia política, as aparências enganam e a virtuosa diversidade, aqui também, é base para preconceitos.

Nossas maravilhosas campeãs olímpicas no vôlei de praia sofreram muito com o ódio destilado pelos dedos covardes nos ágeis teclados das redes sociais, ao que parece, porque não eram bonitas e seus cabelos não eram apropriados ao Olimpo. Por algum tipo de norma não escrita, seguida à risca por estes imbecis, uma jogadora de vôlei feminino deve usar biquínis minúsculos para mostrar seu corpo escultural, suas majestosas pernas, sua barriguinha chapada, seios pequenos e nádegas firminhas, além de cabelos lisos e sedosos, de preferência louros, para esvoaçar ao vento.

Nem mesmo a maior atleta de nosso tempo, Simone Biles, escapou do juízo estético e das críticas severas ao seu cabelo. A primeira mulher negra dos EUA a conquistar uma medalha olímpica (em Londres, 2012), Gabrielle Douglas, foi duramente criticada porque seu cabelo não correspondia ao padrão das atletas loiras. Uma pessoa dá um salto numa altura improvável, faz um duplo mortal para trás com dupla pirueta e o cara vai direto olhar para o joanete no close do pé. Simone Biles, no excelente documentário de Katie Walsh (Netflix), nos diz daqueles que criticam seu cabelo com seu sorriso maravilhoso: “isso de um cara que não consegue nem dar uma cambalhota”.

Além do evidente preconceito estético e, neste caso, claramente racista, fica explícito o preconceito de classe. Duda é de São Cristóvão (SE) e Ana Patrícia de Espinosa (MG). Parece que não são pessoas de nossa melhor sociedade que circulam nas festas e clubes chiques da Barra, no Rio de Janeiro, e nas badaladas academias de São Paulo. Como se atrevem a desfilar seus corpos normais e cabelos duros entre as deusas e, pior, ganhar delas.

Entendo o desespero dos racistas ao ver um pódio da ginástica como três mulheres negras olhando lá de cima para eles afundados com seu ressentimento no sofá da sala. Deve ser parecido com o que sentiu Hitler diante da vitória de Jesse Owens nas Olimpíadas de 1936 na Berlim nazista.

No auge da Guerra Fria, quando nós de esquerda torcíamos para os soviéticos e os atletas do leste europeu, o discurso é que no mundo livre o esporte era a comprovação da liberdade, enquanto lá atrás da cortina de ferro as crianças eram sequestradas e afastadas de seus pais, submetidas a duríssimas condições de treinamento para que como robôs condicionados se transformassem em fábricas de medalhas assim com Alexei Stakhanov arrancava carvão da mina soviética.

Entretanto, no mesmo documentário aqui citado de Katie Walsh, ficamos sabendo que os EUA contrataram um casal de romenos, ex-treinadores de Nadia Comăneci, para que treinassem atletas em série com uma disciplina militar e produtivista, sem nenhuma consideração quanto à saúde mental, enquanto o médico da equipe, Larry Nasser, abusava sexualmente das meninas. Tudo isto sob as grades vermelhas e brancas de uma bandeira cheia de estrelas da liberdade. Entre as meninas estava a grande Simone Biles, que desistiu dos jogos de Tóquio porque seu corpore sanus se desencontrou de sua mente que sofria.

Mas, então, por que assistir aos jogos, ir às lágrimas com conquistas e chorar com derrotas? Por que perder seu tempo com bolinhas e bolas, petecas e pesos, flechas e dardos, quimonos e collants?

Vejam, como tudo nesta vida e no modo de produção capitalista, as Olimpíadas são contraditórias, isto é, da mesma forma que são a expressão desta sociedade desumana e cruel, também são expressão da vida que pulsa e resiste contra a ordem que a oprime. Devemos evitar a todo custo o risco do maniqueísmo. Diante da incrível vitória da maravilhosa Bia Souza, os dedos ágeis nos teclados das redes, desta vez de esquerda, se apressaram em reforçar a necessária denúncia contra o governo genocida de Netanyahu, como se a derrotada fosse o próprio sionismo. Certo, todos nós guardamos um pouco de bile no fígado e não nos conformamos com os russos fora das Olimpíadas enquanto ucranianos e israelenses disputam suas medalhas, mas daí a impor a uma atleta a responsabilidade do sionismo e do massacre aos palestinos vai uma grande distância.

Este é um bom exemplo da arquitetura do preconceito, do juízo prévio e burro das generalizações. Bia não lutou contra o sionismo, lutou contra Raz Hershko, atleta, medalhista de prata, muito simpática, que aceitou sua derrota com espírito olímpico, sorridente e olhando com admiração para a grande Bia. Em 1936, no episódio que lembramos quando Jesse Owens alcançou sua marca de ouro, seu principal adversário, Luz Long, alemão e loirinho, correu para abraçá-lo e dar a volta olímpica junto a Owens diante da desaprovação do nazista na tribuna de honra. Assim funciona o preconceito, eu apago o que estou vendo, uma atleta simpática, e colo nela a figura lamentável de sua nação. Odeio o nazismo e o sionismo genocida, mas gosto muito de um alemão de família judaica que me ensina há bastante tempo que as fronteiras não deveriam dividir os povos.

O que fazer diante dos atletas que nascem e lutam no seio de nossa classe e nas condições que o capitalismo lhes impôs de sofrimento e, muitas vezes, miséria, que furam a bolha e chegam ao pódio ou numa participação de superação incrível? Deveríamos criticá-los por servir de exemplo de meritocracia, acusá-los de não ficar entre os pobres lutando contra o capitalismo? Acredito que não.

Devemos abraçá-los com todo carinho e alegria, porque, como eles todos dizem, não chegaram ao pódio sozinhos, carregam seus pais e amigos, sua cidade, seu quilombo, sua cor e sua classe, com seus joanetes, lesões, cabelos e a alma repleta de cicatrizes.

Um jornalista esportivo, Marcelo Barreto, disse, com razão, que aquele que não se emociona com a Bia dizendo que “foi pela vó, mãe… foi pela vó”, está morto por dentro. Eu digo que, se os que se dizem revolucionários não conseguem ver beleza em Bias, Anas, Dudas, Rebecas, Simones, Izaquias, Valdenices, Pios e tantos outros e outras… bom, a revolução está morta por dentro.

Mauro Iasi é professor aposentado da Escola de Serviço Social da UFRJ, professor convidado do programa de pós-graduação em Serviço Social da PUC de São Paulo, educador popular e militante do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.

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