Bento XVI: Crise e exaustão conservadora
A Igreja, arejada por tempos novos na sociedade, seculares e republicanos, não poderá ficar à margem de um processo histórico contagiante. Talvez temas congelados – como a contracepção e o celibato obrigatório – terão que esperar futuros pontificados ou outros concílios, mas estarão cada vez mais presentes e incômodos, num horizonte que desafia os imobilismos. O artigo é de Luiz Alberto Gómez de Souza, diretor do Programa Ciência e Religião da Universidade Candido Mendes.
Luiz Alberto Gómez de Souza
Assim se proclamava, nas monarquias, quando um rei morria ou era deposto e o sucessor vinha saudado. Mais importante do que o panegírico do que partia, era hora de olhar para a frente, com esperança ou receios.
Eu estava numa reunião no palácio São Joaquim, aqui no Rio, em 2005, durante o último conclave, almoçando com os bispos auxiliares, quando foi anunciada a fumaça branca. Saímos da mesa e corremos à televisão.
Foi quando eu disse: “Não sei quem será, mas vai chamar-se Bento XVI”. Quando Ratzinger saiu no balcão, alguns me olharam como se eu tivesse feito uma adivinhação. Na verdade, foi uma aposta por eliminação. O novo papa certamente não retomaria a série dos Pios, não seria um seguimento de João ou de Paulo, nem do composto João Paulo.
Restava, no século XX, um papa, Bento XV, que ficara poucos anos, de 1914 a 1922, mas que interrompera a caça antimodernista de Pio X. Não saiu papa um reacionário como o secretário de Estado espanhol Merry Del Val (o Sodano ou o Bertone daquele momento).
Era um bispo de uma diocese importante, Bolonha, que fora pouco antes denunciado de modernista, em carta, a seu antecessor. O novo papa abriu a missiva, lacrada por ocasião da morte de Pio X e convocou o assustado acusador.
Uma lógica destas apontaria, indo um pouco mais atrás, na eleição de 1878, para um possível futuro Leão XIV. O papa anterior do mesmo nome também interrompera a prática de seus dois antecessores reacionários, Gregório XVI e Pio IX. E indicou que esperassem o próximo consistório, para verem seu novo estilo.
E foi então quando nomeou cardeal o grande teólogo John H. Newman, convertido da Igreja Anglicana, crítico do Vaticano I e mal visto pelo outro cardeal inglês, Henry Manning.
Aliás, o papa Bento XVI tinha Newman em grande admiração e o beatificou em 2010 (alguns historiadores, para incômodo de muitos, falaram de um companheiro de toda a vida, enterrado junto com ele, numa possível porém incerta relação homosexual, o que não diminuiria em nada seu enorme valor). Mas atenção, voltando ao presente, as lógicas não se repetem e o futuro é sempre inesperado.
Com o atual precedente, um papa pode (e até deve, em certos casos) deixar o poder ainda em vida, num movimento que passa dos poderes absolutos e pro vita, para uma visão com possíveis prazos para o exercício de um poder que aparecia nos últimos séculos como irrenunciável .
O importante agora é descobrir o que estará diante do futuro papa. Tudo parece indicar que João Paulo I morreu ao tomar consciência da dimensão dos problemas que o esperavam.
Carlo Martini (que tantos sonhamos como um possível “Papa bianco”), em 1999 lembrou temas estratégicos a serem enfrentados por possíveis futuros concílios: a posição da mulher na sociedade e na Igreja, a participação dos leigos em algumas responsabilidades ministeriais, a sexualidade, a disciplina do matrimônio, a prática do sacramento da penitência, a relação com as Igrejas irmãs da ortodoxia e, em um nível mais amplo, a necessidade de reavivar a esperança ecumênica. Poderíamos agora dizer que são temas colocados hoje diante do papa que vem aí.
Cada vez é mais importante desbloquear posições congeladas. Uma, urgente, seria superar o impasse criado por Paulo VI em 1968, no seu documento Humanae Vitae, sobre a contracepção. Tratar-se-ia de aceitar, ao nível do magistério, o que já é uma prática normal de um número enorme de fiéis: o uso dos contraceptivos.
Mas nos textos de teólogos espanhóis, sacerdotes alemães e austríacos, declarações de bispos australianos, estão outros pontos da agenda. Haveria que começar por superar a dualidade e uma hierarquia rígidas entre ministérios ordenados (dos padres) e não ordenados, abrindo para uma pluralidade de ministérios (serviços), como na Igreja dos primeiros séculos.
E aí se coloca o tema da ordenação das mulheres. No dia da ressurreição, as mulheres foram as primeiras a serem enviadas (ordenadas) a anunciar a Boa Nova (Mateus, 28,7; Marcos, 16,7:”Ide dizer aos discípulos e também a Pedro…”; Lucas, 24,9; João, 20,17).
Teria também que desaparecer o que é apenas próprio da Igreja latina desde o milênio passado: o celibato obrigatório. O celibato é próprio da vida religiosa em comunidade e não necessariamente dos presbíteros (sacerdotes). Os escândalos recentes de uma sexualidade reprimida e doentia estão exigindo uma severa revisão. Isso levaria a ordenar homens e mulheres casados.
Há que levar a sério a ideia da colegialidade do Vaticano II, sendo o bispo de Roma o primeiro entre todos no episcopado. Numa visão ecumênica, o segundo seria o Patriarca de Constantinopla, que vive no Fanar, um bairro grego pobre de Istambul, onde estive no ano passado. Os encontros fraternos e a oração em comum de João XXIII e de Paulo VI com o patriarca Atenágoras, foram abrindo caminho nessa direção.
Claro, são antes de tudo anseios, mais do que possibilidades certas. Mas a história é inexorável e, pouco a pouco, posições que pareciam petrificadas podem ir sendo revistas ou, pelo menos, vão crescendo pressões nesse sentido.
A Igreja, arejada por tempos novos na sociedade, seculares e republicanos, não poderá ficar à margem de um processo histórico contagiante. Talvez temas congelados terão que esperar futuros pontificados ou outros concílios, mas estarão cada vez mais presentes e incômodos, num horizonte que desafia os imobilismos.
*Luiz Alberto Gómez de Souza , sociólogo, é diretor do Programa Ciência e Religião da Universidade Candido Mendes (UCAM).
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