A cura

“Ó Crentes! não gabeis a vossa crença Como única; também cremos, como vós; Quem investiga não deixa que a herança Lhes roubem, que é de todos – e de nós” J. W. Goethe

A pesquisadora de neurociências da Universidade de Oxford, Kathleen Taylor, sugeriu em palestra recente que o fundamentalismo religioso pode ser tratado como doença mental. Como não conheço esta senhora e seus estudos, devemos (de forma prudente) supor que se trata de um infeliz comentário isolado. No entanto, como comentário é representativo da visão de mundo da autora.

A dita cientista afirmou que certas pessoas poderiam ser beneficiadas clinicamente de tratamento por serem portadores de uma crença que as leva a comportamentos radicais, e completa dizendo que, desta forma, “torna-se radical a uma ideologia de culto – nós podemos parar de ver isso como uma escolha pessoal resultado de puro livre-arbítrio e começar a tratá-lo como algum tipo de distúrbio mental”. Sua motivação seria, ainda segundo seu juízo, os evidentes danos que tais crenças trazem à “nossa sociedade”, pensando, por exemplo, como candidato “mais óbvio” o “fundamentalismo islâmico” (mas não apenas, a pesquisadora inclui práticas com potencial de cura o hábito de bater em crianças como algo natural).

Suas convicções não se reduzem ao estudo do cérebro, ela é autora de um livro sobre lavagem cerebral (Brainwashing: The Science of Thought Control) que procura os fundamentos da persuasão da Al Qaeda e sua eficiência em arregimentar adeptos.

Mesmo em tempos como os nossos, em que parecemos estar diante de um recrudescimento do pensamento religioso e de práticas sectárias, devemos rejeitar o caminho proposto por esta senhora. Primeiro pelo receio fundamentado que depois de curar a religiosidade radical de uns, esta suposta ciência se volte para buscar os caminhos que tentem curar nosso ateísmo, da mesma forma que busque um tratamento adequado ao comportamento radical (como quebrar vitrines em Ipanema e enfrentar a polícia ao invés de apenas se deixar espancar, como seria normal). Mas, de forma mais enfática, porque o caminho proposto nos parece ser, em poucas palavras, uma bobagem.

Já em 1929, o psicólogo soviético Lev S. Vigotski nos alertava, em seus manuscritos, que “a natureza psicológica da pessoa é o conjunto das relações sociais, transferidas para dentro e que se tornam funções da personalidade e formas de sua estrutura” e daí concluía que: “é ridículo procurar centros especiais para funções psicológicas superiores ou funções supremas do córtex”. Completa sua sentença argumentando que não se trata de “ligações internas orgânicas”, “não são estruturas naturais, mas construções” (VIGOTSKI, L. “Manuscrito de 1929”, in Educação e Sociedade, n. 71, p. 27, jul, 2000).

Freud, igualmente, ironizava aqueles que buscavam compreender processos psicológicos unicamente por suas fontes neurológicas afirmando que desta forma poderiam no máximo compreender onde ocorrem esses processos, mas não como.

Aparentemente na contra-mão desta linha, um determinado desenvolvimento da neurociência tem mapeado, com eficiência, o cérebro humano em áreas e logrado atribuir com certa precisão a localização de espaços “sentimentos” ou “comportamentos”, como a fome, o prazer sexual, o medo etc. Entre eles, uma área que parece estar vinculada à religiosidade. Ora, mesmo supondo tais avanços, estaríamos diante apenas das funções neurológicas que traduzem certos impulsos, mas nem de perto definiriam sua forma. Explico-me.

Norbert Elias, por exemplo, está convencido que não podemos falar em impulsos básicos em estado puro, pois todo impulso já é circunscrito em uma determinada cultura, ou (como o autor gosta de denominar) um momento civilizatório. Não sentimos “fome”, mas temos sempre fome de alguma coisa e em certas horas, e esta forma encobre o impulso de forma que é vã a tentativa de descascá-lo até chegar na fome em si. Seria estranho a um pitecantropo acordar no meio da noite em uma savana africana com vontade de comer brigadeiro ou um pedaço de pizza (espero que não haja cura nem para um, nem para outro).

Outro argumento que julgo importante vem da própria área da neurobiologia e de um de seus especialistas, o português Antônio Damásio, que critica impiedosamente a dualidade mecânica com que temos trabalhado a relação entre corpo e mente, assim como entre a emoção e a razão. Segundo o cientista lusitano – em sua obra O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano – tanto as emoções como a razão não dependeriam de um único centro cerebral, mas de uma complexa integração interna e externa (como se prova com os estudos de acidentes que alteram ou deslocam certas funções das áreas lesionadas para outras).

É possível que exista em nosso cérebro uma área responsável por um certo sentimento que milênios de civilização foram encobrindo com uma incrível multiplicidade de formas que chamamos religião, no entanto há entre este sentimento e o fenômeno religioso a mesma distância que separa o processo digestivo de uma boa refeição. A religião é um produto histórico do ser social, uma mediação de segunda ordem diria Lukács, isto é, uma mediação dos seres humanos entre si, um produto da cultura e não da natureza.

Freud falava de um sentimento “oceânico”, uma certa admiração e temor ao olharmos a imensidão e supor o que não vemos. Mas essa sensação que poderia ter primariamente a função de nos manter em alerta sobre potenciais ameaças pode ser acionada pela intuição de que um carnívoro nos espreita na selva densa, a possibilidade remota de existirem monstros embaixo de nossa cama ou, ainda, a mais improvável sensação de que aquele pensamento impuro pode me condenar a passar a eternidade vendo minha carne assar no fogo dos infernos.

A religião sobrevive no espaço da sombra, do não conhecido, das dúvidas essenciais sobre de onde viemos e para onde vamos. Sua função primordial é a construção de um sentimento de continuidade, daí a própria origem do termo em latim – religare – ligar as pontas soltas entre o passado, o presente e o futuro. Os seres humanos se sentem como joguetes ao sabor da aleatoriedade da natureza e procuram primeiro humanizá-la para poder chantageá-la, seduzi-la ou comprá-la com oferendas ou sacrifícios, só depois que, de maneira mais sofisticada, deslocam seu próprio ser em um Ser Supremo, uma Providência que por ser nosso criador tem para nós um plano.

Podemos sofrer as auguras da vida, mas seremos recompensados com uma salvação extra-mundana ou qualquer outro bem de salvação esperado, desde que respeitemos em nossa ação e pensamentos os limites estabelecidos, não causemos danos à propriedade, usemos nossos corpos de maneira aceitável (evitando orgasmos e produzindo mais valia, por exemplo). É eficiente, mas tem um efeito colateral. Como já nos esclareceu Feuerbach, os seres humanos antes de compreender o sol de sua existência em si mesmos o projetam para algo fora de si, se alienam. A religião é inseparável da alienação e do estranhamento que faz com que os produtos e as construções sociais da mente humana se voltem contra nós como força estranha que nos controla. Aristóteles dizia: os homens fazem os deuses a sua imagem e semelhança. Séculos de cristianismo inverteram a sentença: Deus fez os homens a sua imagem e semelhança. Não há cura clínica para a alienação.

Partilho com Marx seu otimismo ao acreditar (radicalmente) na possibilidade dos seres humanos superarem o estranhamento das relações reificadas e fetichizadas da ordem da mercadoria e do capital e estabelecer uma livre associação entre os produtores. No entanto, não sou tão otimista quanto ele no que diz respeito ao fenômeno religioso. O grande alemão estava convicto que o reflexo religioso podia desaparecer “quando as relações cotidianas da vida prática se apresentem diariamente para os próprios homens como relações transparentes e racionais que eles estabelecem entre si e com a natureza” (Marx, K. O Capital, livro I, p. 154, São Paulo, Boitempo, 2013). Lógico que isso implicaria uma série de mudanças nas condições materiais de existência que tornassem possível a livre associação entre os produtores, mas a própria emancipação política levada a termos pela revolução burguesa daria conta de parte deste processo, até pelo desenvolvimento da ciência.

Não parece haver dúvida que o desenvolvimento de uma sociabilidade que supere as bases do estranhamento diminui o espaço ocupado pelo comportamento religioso, mas arriscaria dizer que dificilmente o elimina como fenômeno social. Sempre haverá os espaços das sombras, o vazio da existência, o medo, a morte, ou ainda a mais simples sensação de fazer parte de algo maior que nós mesmos, que nos conecta, nos liga e permite nossa transcendência – como a religião ou a internet ou o compromisso político.

A doutora de Oxford argumentaria que não se trata de curar a religiosidade, mas de certa adesão fundamentalista e radical a uma crença. Mas aí a coisa fica pior ainda. Ela está em busca da cura da convicção (dos outros, não as dela). E se a ameaça que nos espreita não for um carnívoro assassino, e se o que pode nos matar não se esconde nas profundezas abissais dos oceanos para sair de repente e destruir uma Tóquio de isopor e papelão, ou um tsunami, ou um meteoro mirando a Terra, ou um deus vingativo e cruel e seu Armagedom? E se o que pode nos destruir for nós mesmos e a ridícula sociabilidade que construímos e que agora se volta contra nós como uma força estranha? Se em nossos estranhos cérebros amadurecer a convicção que é necessário destruir esta sociabilidade para garantir a nossa existência enquanto espécie e, coerentemente, rompermos a inércia e transformarmos esta certeza em ação, em práxis, em revolução?

Devo estar doente, me identifico muito mais com os jovens que nas ruas enfrentam a tropa de choque e se aquecem nas fogueiras da solidariedade que liga os que lutam, do que com peregrinos e seus kits coloridos sob o céu cinza (de chumbo, como já anunciou Benedetti) “com helicópteros e sem Deus”.

Lá em casa, escondido da chuva, escuto Silvio Rodriguez procurando por uma ovelha negra que se perdeu e canta: “Ahora es la maldición de mi rebaño, ahora es la incertidumbre de mis hijos, ahora es cuanto hay de triste en estos años (…) La mañana vendrá temprano, estaré para echarle mano, romperé con su malo ejemplo para el rebaño que manda dios, porque el pasto de mis ovejas lo siembro yo!”. Aí, precisamos encontrar rapidamente uma cura para a arte… estou doente de poesia!

Em tempos de Feliciano patrocinando a cura gay, da senhora Taylor preconizando a cura ao fundamentalismo religioso e o radicalismo, parece-me que por caminhos estranhos a forma da humanidade denuncia sua doença. Parece-me haver uma certa tendência contemporânea que estranhamente quer curar a humanidade… da humanidade.

Nosso caminho certamente é mais promissor, não se trata da humanidade, mas de uma certa forma particular da história humana submetida à mercadoria e ao capital que precisa ser superada, inclusive com suas formas caricaturais de religiosidade corporativa/comercial que lhe são tão adequadas. Rompê-la… com violência… preciso marcar uma hora com a Dra. Taylor… ou ir para a rua… e que Deus me perdoe… é, vou para a rua… foda-se!

Em tempo: os cientistas cubanos anunciam a vacina contra o câncer de pulmão. Tudo indica que todos poderão se beneficiar dela, tanto aqueles que acreditam em Deus, como os que não acreditam.

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