“A aposta do governo de Israel foi forçar a Turquia a reagir”

MASSACRE EM ALTO MAR Para o jornalista palestino-estadunidense Ramzy Baroud, ação israelense foi uma tentativa de provocar uma reação turca e, consequentemente, uma ação dos EUA em sua defesa

Igor Ojeda

da Redação

O ATAQUE israelense ao comboio internacional humanitário que se dirigia à Faixa de Gaza foi, na opinião do jornalista palestino-estadunidense Ramzy Baroud, uma tentativa de reverter seu mau momento político. “Esse é um clássico caso em que Israel põe fogo na região e fica na esperança de que, qualquer que seja o resultado que possa emergir depois que a fumaça se dispersar, ele seja melhor que o cenário vigente”, analisa.

Segundo ele, a tímida diminuição da ênfase em Israel na nova agenda nacional de segurança divulgada recentemente pelo governo Barack Obama e a tentativa dos EUA de “fazer Israel jogar de acordo com as regras” vêm deixando o governo israelense preocupado.

Assim, a ação do dia 31 de maio contra embarcações e cidadãos turcos teve o objetivo principal, na visão de Baroud, de forçar uma reação da Turquia e, como consequência, dos EUA, que seriam obrigados a defender Israel. “Claro que Obama teria que fazer isso, já que irritar as forças pró-israelenses em Washington poderia prejudicar uma vitória do Partido Democrata nas eleições legislativas de novembro”.

Brasil de Fato – O que significa esse ataque no atual contexto do conflito entre Israel e Palestina?

Ramzy Baroud – É um novo marco para esse conflito, que vem sendo constantemente descrito como árabe-israelense, palestino-israelense ou judeu-árabe. Por mais de 60 anos, esses têm sido os parâmetros geopolíticos do conflito em qualquer discurso relacionado a ele. O ataque israelense ao barco que levava ativistas humanitários, pacifistas, parlamentares etc. de muitos países empurrou, pela primeira vez, as fronteiras dessa guerra para um conflito entre Israel e muitos atores novos, incluindo pacifistas e sociedade civil. As consequências do ataque de Israel irão se mostrar muito significativo a longo prazo.

O que explica o fato de que Israel tenha chegado ao ponto de realizar um ataque dessa natureza?

Essa é a natureza do poder: quanto mais Israel se torna poderoso militarmente e quanto mais confiante cresce politicamente (contando com o apoio dos Estados Unidos e de outros países do Ocidente), mais beligerantemente ele age. No entanto, dentro dessa beligerância, há uma inerente falta de confiança e fraqueza. Ter força militar não significa necessariamente exercitá-la excessivamente e irrestritamente contra civis desarmados, especialmente ativistas pela paz. Israel se encontra, talvez, no mais alto nível de suas capacidades militares, mas também no menor nível de sua sabedoria política. Nenhum país, incluindo Israel, pode manter tão insensato paradigma por muito tempo.

Imagina que um ataque desse tipo tenha sido premeditado e uma ordem direta do governo israelense?

Sim, claro que foi premeditado. Israel vem se preparando para isso por muitos dias, como indicam as notícias na mídia israelense. Os oficiais militares israelenses prepararam a opinião pública no sentido de que algo terrível estava para acontecer. Para tal, enfatizaram alegações estranhas sobre conexões “terroristas” etc. Além disso, a insistência dos propagandistas israelenses de que esse era um assunto de “segurança nacional”, uma expressão muito perigosa para se usar nesse contexto, teve seus efeitos. Mais importante: o emprego de diversos navios e tropas do exército em uma operação muito sofisticada como essa não acontece impulsivamente.

Mas o que o senhor acha que motivou uma decisão como essa?

Israel não realiza suas operações militares baseado em uma única razão. Seus objetivos são, frequentemente, complicados e de longo alcance. Por trás desse ataque, há razões óbvias, como o objetivo de enviar uma dura mensagem de que Israel não pode ser intimidado ou constrangido a levantar o bloqueio imposto injustamente à Gaza, e de que nem a Turquia, com sua influência política, nem a sociedade civil, com suas conexões de base em todo o mundo, minarão os interesses de Israel.

Mas existem, também, as razões menos óbvias. Há alguns dias, os EUA estabeleceram uma nova agenda nacional de segurança. A doutrina anterior determinou um consenso Israel-neoconservadores-Washington que governou as ações estadunidenses por quase dez anos. De acordo com essa agenda, Israel era o componente central da política externa dos EUA. Já a nova agenda de Obama parece muito mais variada e apresenta muitos focos. Embora algumas de suas disposições parecem introduzir mudanças cosméticas, ela reduziu claramente a badalada ênfase em Israel do governo anterior. Agora, o que estamos vendo é um tímido foco na tentativa de fazer Israel jogar de acordo com as regras. Os EUA ainda não têm a força para impor sua agenda, mas, pelo menos, está se tornando claro que Israel é, agora, o “vilão”, enquanto o presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas, é o novo queridinho dos EUA.

Esse é um clássico caso em que Israel põe fogo na região e fi ca na esperança de que, qualquer que seja o resultado que possa emergir depois que a fumaça se dispersar, ele seja melhor que o cenário vigente. Também espera minar a tentativa dos EUA de se retirarem de uma região que lhe custa a perda de muito prestígio político e derrotas militares. Ao atacar um navio turco em particular, e matar muitos turcos, a aposta de Israel foi a de forçar a Turquia a reagir, assim como os EUA, que teriam que vir em defesa de Israel. Claro que Obama teria que fazer isso, já que irritar as forças pró-israelenses em Washington poderia prejudicar uma vitória do Partido Democrata nas eleições legislativas de novembro deste ano.

O ataque contra a frota humanitária aconteceu no mesmo período em que o jornal britânico The Sunday Times revelou a suposta intenção de Israel de estacionar um submarino nuclear no golfo Pérsico. Como podemos ligar esse dois fatos?

Essa é uma possível terceira dimensão. Não apenas o envio de submarinos nucleares ao golfo Pérsico é relevante, mas também todo o debate nuclear. Israel vem desesperadamente tentando fazer com que o Ocidente aja contra o Irã, e vem promovendo uma “opção militar” contra Teerã. Ao invés disso, o que vemos é que a posição política do Irã está ficando cada vez mais forte com o apoio de Brasil, Turquia e outros, e que na verdade é Israel quem está sob pressão por não revelar seu programa nuclear para a agência atômica da ONU. Essa não é, de maneira alguma, a forma como Israel encara isso. Israel precisou agir para criar o tipo de caos que poderia levar a região a uma confrontação e, posteriormente, ao envolvimento dos EUA, desencorajando atores de fora, como o Brasil, da tentativa de mediação.

Como o senhor vê a reação internacional até o momento? O senhor acredita que agora a comunidade internacional (EUA, União Europeia, ONU) agirá da maneira que se espera?

A reação internacional é calculada e muito previsível, e acabará por esgotar-se sem muita ação. Isso não importa no momento. O que importa é: uma vez que a tempestade se resolver, a Turquia terá que se reposicionar, e esse reposicionamento determinará a natureza da guerra fria e do conflito na região nos anos que estão para vir. A Turquia tem seus próprios cálculos, claro, e não podemos esperar que ela tome uma ou outra posição sem uma cuidadosa avaliação política, econômica e militar. Mas é razoável concluirmos que a Turquia não fará concessões e não se intimidará. Do contrário: provavelmente se aproximará mais de Irã e Síria, o que fortalecerá o posicionamento político que está sob pressão de Israel-EUA-Ocidente. É muito cedo para determinar o resultado completo desse fato, mas provavelmente irá atingir o próprio Estado de Israel.

O senhor acha que esse acontecimento poderá afetar a relação entre Israel e o governo Obama?

Não, pelo menos não agora. Obama não pode renegar Israel, embora seu governo deva estar espumando por causa da ação calculada de Israel. O ano eleitoral e o poderoso lobby pró-Israel tornam impossível aos EUA alterarem, na essência, sua posição em relação à questão. Essa é a triste realidade. A política externa dos EUA foi sequestrada, e terá que acontecer mais do que um ataque a um comboio naval humanitário para mudar isso.

Você acha que o ataque ao comboio naval pode afetar as recém iniciadas negociações indiretas entre Israel e Palestina?

Pode atrasá-las, e isso é o que o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu quer de qualquer maneira. Mas, apesar da liderança colaboracionista de Mahmoud Abbas na Cisjordânia, ele possui pouco controle ou interesse em interromper ou retomar as conversações. Ele colhe sua força relativa no apoio dos EUA, que é essencialmente pró-Israel. Além disso, essas “conversações de aproximação” são uma farsa.

Israel impõe, há vários meses, um bloqueio total à Faixa de Gaza, o que, inclusive, levou à organização do comboio militar que foi atacado. Como o senhor analisa o bloqueio no atual contexto e como ele permanece depois de tanto tempo?

Embora tenha resultado numa catástrofe humanitária sem precedentes, o bloqueio é, predominantemente, político. Israel quer manter o bloqueio até enquanto a decisão por trás dessa imposição existir. Levantar agora o bloqueio significaria a vitória do Hamas e uma derrota do Fatah, e forçaria Israel a reconsiderar todas suas políticas em relação à Palestina. Tal ação também criaria um problema para o principal aliado árabe de Israel, o Egito, que nunca conseguiu vencer a oposição islâmica, nem por vias democráticas. Há um consenso de que Gaza deve continuar aprisionada até o Hamas ceder. Dito isso, o movimento de solidariedade internacional está tornando muito mais duro o trabalho de Israel. Israel gostaria que todo esse assunto fosse esquecido ou sepultado, como muitas outras atrocidades cometidas contra os palestinos no passado. Entretanto, o que a Frota da Liberdade fez foi trazer o foco da atenção internacional novamente para a tragédia de Gaza. Se a pressão para o levantamento do cerco continuar crescendo, Israel e seu parceiro menor, o governo egípcio, não conseguirão manter os sufocantes isolamento e cerco a 1,5 milhão de pessoas.

Quem é

O jornalista palestino-estadunidense Ramzy Baroud é escritor e ex-produtor do canal de televisão Al-Jazeera. Foi professor de comunicação na Curtin University of Technology, na Austrália e, atualmente, é editor-chefe da publicação The Palestine Chronicle.