O PCB e o golpe civil-militar de 31/3/1964 : por que as esquerdas foram derrotadas?

Tornou-se um truísmo, a partir de 1/4/1964, a crítica ao PCB por não ter resistido ao golpe civil-militar, assim como a acusação de que tal posicionamento seria decorrência de sua política pacifista, do despreparo para a resistência aos golpistas e de ilusões na burguesia e no “esquema militar” do presidente João Goulart.

O PCB contava com importantes lideranças sindicais à frente do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e de numerosos sindicatos, com inúmeros aliados tanto no movimento sindical urbano quanto rural, com a presença significativa de seus militantes na União Nacional dos Estudantes (UNE) e junto ao movimento estudantil universitário e secundarista. Da mesma forma, o PCB exercia influência em múltiplos setores do mundo social e político brasileiro, em particular, junto a personalidades e a agrupamentos com posições democráticas e nacionalistas, que se pronunciavam contra a ingerência imperialista no país e pela reforma agrária.

Diante disso, como explicar a vitória dos golpistas e a derrota das esquerdas?

É necessário retroceder no tempo e verificar qual era a perspectiva política e organizacional do PCB. Após a prisão dos membros da direção nacional do PCB em 1940 e o consequente esfacelamento da organização partidária, vários grupos tentaram sua reorganização. Afinal, a reconstrução do PCB teve sucesso com a iniciativa da Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP) de convocar a II Conferência Nacional do PCB – conhecida como Conferência da Mantiqueira, porque se realizou clandestinamente, em algum lugar do Vale do Paraíba, em agosto de 1943, reunindo 48 militantes. (Prestes, 2001: cap.IX)[2]

O exame das concepções político-ideológicas norteadoras da Conferência é essencial para o esclarecimento das condições em que se formou o novo grupo dirigente eleito nessa oportunidade e que assumiu a direção do PCB, tratando de reunificá-lo. Vale lembrar a importância que Antônio Gramsci atribuía à formação do grupo dirigente do Partido Comunista. O líder comunista e teórico marxista escrevia que “todos os problemas de organização são problemas políticos” (Gramsci, 2004, v. 2: 348) e, preocupado com a construção do PC italiano, afirmava: “É preciso criar no interior do Partido um núcleo (…) de companheiros que tenham o máximo de homogeneidade ideológica e, portanto, consigam imprimir à ação partidária um máximo de unidade de orientação” (idem: 129-130). Para Gramsci, a formação do grupo dirigente ou núcleo dirigente do PC era condição indispensável para que o partido pudesse cumprir seus objetivos políticos. A tal grupo caberia o papel de garantir a “formação de uma vanguarda proletária homogênea e ligada às massas” (idem: 351)[3]. Em outras palavras, para Gramsci, a formação do grupo dirigente constituía um ponto de partida fundamental para a construção do Partido Comunista e, consequentemente, as características de tal grupo dirigente iriam definir o perfil da organização partidária em questão.

Cabe assinalar que a tática de “União Nacional” adotada pelos comunistas a partir de 1938, levou seus dirigentes e militantes a se inserirem de maneira espontânea e pouco crítica no movimento generalizado de repúdio às ameaças expansionistas e agressoras do nazifascismo europeu, secundado pelos integralistas, seus agentes internos em nosso país. Tal movimento empolgou setores muito amplos do espectro político brasileiro, incluindo numerosas camadas populares. A análise da atuação do PCB nesse período nos revela que, após os acontecimentos de novembro de 1935, os comunistas, profundamente golpeados e desarticulados, com grandes dificuldades para restabelecer os contatos com a Internacional Comunista (IC), não tiveram condições de manter uma postura ideologicamente independente. (Prestes, 2001)

A ausência, por parte do PCB, de uma justa compreensão da realidade do país contribuiu para que a direção do partido tivesse dificuldade de formular uma orientação política capaz de articular adequadamente a luta pela democracia no plano internacional, ou seja, o combate ao nazifascismo e aos seus agentes internos, com a luta pela democratização do país – contra o regime ditatorial do Estado Novo – e o empenho necessário para a construção das forças sociais e políticas capazes de levar adiante um projeto voltado para a emancipação econômica e social do país – um projeto que apontasse para uma efetiva transformação socialista, conforme constava dos documentos programáticos do PCB. (Idem)

Tais impasses na trajetória do movimento comunista no Brasil teriam como consequência a transformação do PCB num partido nacional-libertador, sob a influência das ideias nacionalistas presentes na sociedade brasileira. Um partido progressista em que, entretanto, o conflito entre trabalho e capital ficaria relegado a um segundo plano. (Idem)

A partir da Conferência da Mantiqueira, a orientação oficial do PCB, baseada na defesa da “União Nacional”, não só deixava transparecer uma postura nacionalista, de defesa da soberania nacional diante do expansionismo nazifascista, mas também certo adesismo ao governo Vargas, o que se evidenciava nas páginas da revista Continental, que, na prática, se tornou o órgão oficioso do partido. (Prestes, 2010: 51-52).

Na Conferência da Mantiqueira ficaram consagradas a hegemonia e a vitória das posições defendidas pela CNOP. Na ocasião foi nomeado um Comitê Central provisório, que se consolidaria com o apoio de Prestes, eleito secretário-geral in absentia, pela primeira vez desde seu ingresso no PCB. Segundo E. Carone, “é em agosto de 1945, na reunião legal do Comitê Nacional do PCB, denominado Pleno da Vitória, que os recalcitrantes irão aceitar a situação hegemônica do CNOP” (Carone, 1982: 3-4). Dessa forma, constituía-se o novo grupo dirigente do PCB, que proclamava a liderança de Prestes e incluía entre seus membros nomes que figurariam à frente do PCB durante muitos anos, como Diógenes de Arruda Câmara, João Amazonas, Maurício Grabois, Pedro Pomar, Mário Alves, Amarílio Vasconcelos, Ivan Ramos Ribeiro, Giocondo Dias, Álvaro Ventura, etc.

Tal grupo dirigente sofreria algumas modificações no decorrer do tempo, mas foram seus elementos mais destacados que orientaram a reconstrução do PCB e o dotaram de um tipo de organização que correspondia aos objetivos políticos traçados na Conferência da Mantiqueira, o qual teria o caráter nacional-libertador da política partidária como sua marca registrada. As características desse novo grupo dirigente iriam definir o perfil da organização partidária que viria a existir daí por diante. O berço do novo PCB, reconstruído após o desastre de 1940, seria a Conferência da Mantiqueira, e o seu novo perfil foi determinado pelo núcleo dirigente constituído nesse conclave.

O PCB, ao renascer dos violentos golpes desfechados pelo governo no início dos anos 1940, surgia como um partido marcado pela ideologia nacional-libertadora, com um grupo dirigente praticamente desconhecido, mas prestigiado pela presença de Luiz Carlos Prestes, cujo aval fora decisivo para a consolidação desse grupo, assim como da organização partidária. Tal núcleo dirigente empenhou-se na construção de uma estrutura partidária que correspondesse aos objetivos políticos traçados, ou seja, à defesa da soberania nacional, entendida como fruto do desenvolvimento de um capitalismo autônomo no Brasil.(Prestes, 2010)

A análise do curto período de legalidade do PCB, nos anos 1945-1947, nos revela que, não obstante os esforços desenvolvidos pelos comunistas visando consolidar o processo de democratização no país e alcançar a tão almejada “União Nacional”, o partido teve seu registro cancelado e os mandatos dos seus parlamentares cassados. “União Nacional” tornou-se uma quimera inatingível. Embora vitórias parciais tivessem sido conquistadas – algumas de grande importância -, a política levada adiante pelo PCB foi derrotada.

A diretriz de “União Nacional”, durante o ano de 1945, contribuiu inquestionavelmente para um significativo avanço do processo de democratização do país. Já em 1946, com o início da chamada Guerra Fria, a tendência predominante na política nacional acabou sendo a de um crescente anticomunismo. Medidas repressoras, cada vez mais intensas, foram adotadas, por parte do governo Dutra, contra os comunistas e as forças democráticas e progressistas.

Os dirigentes do PCB não perceberam com clareza a profundidade de tal virada e a gravidade de suas consequências para o partido e para seus aliados. A hipotética “burguesia progressista”, definida pelos comunistas como importante setor, com o qual seria possível contar na luta por “União Nacional”, capitulara diante dos interesses do grande capital, expressos na Doutrina Truman (Vizentini, 2000, v. II: 195-225; Munhoz, 2004: 273). Embora lutando com grande empenho e entusiasmo pelos objetivos traçados, os comunistas ficaram isolados, o que explica sua derrota política.

Na realidade, mais uma vez, na história do PCB predominara a tendência nacional-libertadora e sua aposta no “papel progressista” de um setor da burguesia industrial, que seria capaz de aliar-se ao proletariado para alcançar um capitalismo autônomo no Brasil, livre do domínio do imperialismo, principalmente dos interesses dos capitais norte-americanos. Mais uma vez, o conflito de classes seria deixado de lado pelos comunistas, sendo privilegiada a luta nacional-libertadora.

O exame do período histórico que se estende até o golpe civil-militar de março de 1964 nos mostra que, apesar das mudanças táticas havidas na política do PCB, a estratégia nacional-libertadora da revolução brasileira permaneceu intacta, marcando de maneira indelével a trajetória dos comunistas. (Prestes, 1980, 2010, 2012) Uma concepção estratégica falsa, uma vez que inadequada à realidade que os comunistas pretendiam transformar. O capitalismo implantado no país surgira na época do domínio imperialista mundial exercido pelas potências centrais desse sistema, o que determinou sua posição subordinada, ou seja, a dependência a que ficou submetido. Não havia condições para a conquista de um desenvolvimento livre e independente do capitalismo brasileiro, meta que era perseguida pelos comunistas.

Em sua política de organização, consoante com a concepção estratégica adotada pelo seu grupo dirigente criado ainda à época da Conferência da Mantiqueira, o PCB desenvolveu ingentes esforços no sentido da formação de uma estrutura partidária adequada à aplicação pela sua militância das diretrizes condizentes com tal estratégia. Foi construído um partido conforme tal orientação política, um partido empenhado numa aliança com uma suposta burguesia nacional progressista, para realizar reformas que pudessem garantir o advento de um desenvolvimento capitalista autônomo do país. O objetivo socialista era deixado para uma etapa posterior. Dessa maneira, não se investia na formação da força social e política, unificada por ideais comuns e voltada para a preparação das condições necessárias à revolução socialista.

Na realidade, tentava-se a criação de uma aliança de classes e setores sociais supostamente possuidores de interesses e reivindicações comuns na luta contra o imperialismo e o latifúndio e pela democracia. Mas, não se levava em conta algo que o conceito de bloco histórico, proposto por A. Gramsci – ou, em outras palavras, do sujeito-povo[4] – pressupõe: o momento político dessa aliança. “Sua constituição está assentada em classes ou grupos concretos definidos pela sua situação na sociedade, mas as ideias cumprem um papel fundamental no que se refere à sua coesão.” No bloco histórico há “uma estrutura social – as classes e grupos sociais – que depende diretamente das relações entre as forças produtivas; mas também há uma superestrutura ideológica e política” (Bignami, s.d.: 27). Gramsci escrevia nos Cadernos do cárcere que, segundo Marx, “uma persuasão popular tem, com frequência, a mesma energia de uma força material”. Tal afirmação, segundo o filósofo italiano,

conduz ao fortalecimento da concepção de “bloco histórico”, no qual precisamente, as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma, distinção entre forma e conteúdo puramente didática, já que as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma e as ideologias seriam fantasias individuais sem as forças materiais (Gramsci, 2001, v. 1: 238).

Os elementos citados da concepção gramsciana de bloco histórico permitem perceber o frequente empobrecimento de tal conceito no âmbito dos partidos comunistas, pois esse fenômeno marcou, de uma maneira geral, grande parte do movimento comunista mundial. Nas fileiras do PCB, semelhante postura teria como resultado a subestimação pelo trabalho ideológico de formação teórica e política não só dos seus quadros, como também de lideranças populares. A incompreensão da necessidade de criar um bloco histórico contra-hegemônico, capaz de conduzir o processo revolucionário à vitória, condicionou o desarmamento ideológico e político dos comunistas diante do bloco histórico dominante e a inevitável capitulação frente ao reformismo burguês (Prestes, 2010a).

Durante o período histórico que antecedeu a deposição do presidente Goulart, a atividade prática da militância do PCB evidenciou as limitações provenientes da incompreensão citada. A atuação dos comunistas no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, no período 1945/1964, é nesse sentido exemplar. Conforme é mostrado por Santana (Santana, 2012), diferentemente do que sempre se afirmou, “no plano organizacional os comunistas vão ser incansáveis na atuação nos locais de trabalho e na constituição de comissões sindicais de empresa, alterando, na prática, a perspectiva de ação dos sindicatos” (idem: 237; grifos meus). Os comunistas chegaram, em muitos momentos, a ter importante participação e indiscutível liderança nas lutas dos trabalhadores nas fábricas, conseguindo alcançar sucesso na organização dos trabalhadores. (Idem, 2012) Entretanto, quais eram as propostas em torno das quais se dava esse trabalho de organização?

A pesquisa da atuação da militância comunista no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro revela que a orientação política do PCB, marcada pela concepção estratégica nacional-libertadora, levou a que, no âmbito do referido setor metalúrgico, os comunistas priorizassem a aliança com o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), fundado por Vargas em 1945. Na prática, tratava-se da aliança com Benedito Cerqueira, importante liderança desse partido no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro. (Idem) “O crescimento de poder de fogo dos comunistas no interior da categoria e da direção sindical, que atingiu o maior índice da história, acabou sendo diluído devido à política de unidade que, contraditoriamente, o havia possibilitado” (idem: 213). Em nome da unidade com os trabalhistas, os militantes comunistas foram levados a seguir uma orientação reformista, de caráter nacionalista burguês. Tanto as diretrizes do PCB quanto as que eram adotadas pelo PTB tinham a marca da ideologia do nacional-desenvolvimentismo, corrente, que, a partir dos anos 1950, teve ampla aceitação, por parte de expressivos setores do pensamento brasileiro, inclusive, tacitamente, por parte dos comunistas. (Prestes, 2010: 55-59)

A ausência de uma efetiva autonomia política e organizacional – resultante de uma concepção estratégica inadequada às condições brasileiras – condicionou a atuação dos comunistas, impedindo-os de avançar no sentido da formação do bloco histórico – ou do sujeito-povo – ou, em outras palavras, das forças sociais e políticas capazes de impulsionar a realização das Reformas de Base, colocadas em pauta naqueles anos e, nesse processo, preparar as condições para avançar rumo às transformações de caráter revolucionário, que apontassem para a conquista do poder político e a transição para o socialismo.

A análise do desenrolar dos acontecimentos que tiveram como desfecho o golpe de 31/3/1964 e a deposição do governo de João Goulart justifica plenamente a opinião de Waldir Pires, então consultor-geral da República, emitida 20 anos mais tarde: “Havia muito mais a retórica dos discursos do que propriamente uma ação organizada para preservar o processo democrático” (Moraes, 1989: 198).

As concepções nacional-libertadoras, presentes tanto na estratégia política do PCB quanto em grande parte do discurso das forças nacionalistas e de esquerda, sob a influência dominante da ideologia nacional-desenvolvimentista, alimentaram as ilusões num hipotético anti-imperialismo de uma suposta burguesia nacional[5] e na possibilidade de – sob a pressão das manifestações das forças nacionalistas e democráticas e, em particular, do movimento sindical – levar o presidente João Goulart a realizar reforma ministerial que permitisse o estabelecimento de um governo nacionalista e democrático e a implementação das Reformas de Base. Cogitava-se ainda de uma reforma constitucional, mesmo que para tal fosse necessário passar por cima do Congresso Nacional.

As consequências práticas da presença de uma concepção reformista da revolução por etapas, ou seja, da idéia de alcançar um governo nacionalista e democrático dentro dos marcos do regime capitalista – etapa que seria necessária para prosseguir na luta pela realização da revolução socialista – pouco diferiam das consequências oriundas do voluntarismo, da impaciência e da pressa dos adeptos das concepções esquerdistas, típicas dos setores pequeno-burgueses. Ambas as concepções – a reformista de direita e a do radicalismo esquerdista – dificultaram a organização e a conscientização das massas trabalhadoras, premissa necessária para a conquista do poder e a realização das reformas necessárias para iniciar outro tipo de desenvolvimento, livre e independente e voltado, portanto, para uma transformação de caráter socialista, mesmo que não fosse de imediato.

Uma abordagem autocrítica da estratégia dos processos revolucionários em duas etapas, adotada pelos comunistas latino-americanos, foi feita com grande clarividência pelo líder revolucionário e dirigente do Partido Comunista Salvadorenho Schafik Handal:

(…) Não pode haver revolução sem resolver a fundo o problema do poder.(…) Nosso partido, e me parece que muitos outros partidos comunistas da América Latina, temos trabalhado durante decênios com a idéia de duas revoluções (…).Reagimos tantas e tantas vezes contra a colocação esquerdista da luta pela implantação direta, sem estágios, do socialismo e chegamos a nos convencer de que a revolução democrática não é necessariamente uma tarefa a ser organizada e promovida principalmente por nós. Que poderíamos nos limitar e nos conformarmos em ser força de apoio e assegurar a amplitude do leque das forças democráticas participante. Assim, a revolução democrática anti-imperialista se nos apresentava como uma “via de aproximação”, que pode alcançar-se deixando na dianteira da ação setores “progressistas”, “anti-imperialistas”, das camadas médias (da intelectualidade, dos militares, etc.) e até da burguesia. (…) O que surge de tal conduta não é nem pode ser o partido da revolução mas sim o partido das reformas.(…)[6]

A seguir Handal escrevia:

Se aceitamos que a revolução democrática e anti-imperialista é parte inseparável da revolução socialista, não se pode realizar a revolução tomando pacificamente o poder por partes, será indispensável sob uma ou outra foram, desmantelar a máquina estatal dos capitalistas e seus amos imperialistas, erigir um novo poder e um novo estado. (Idem)

Embora Jango tivesse avançado no intento de realizar as reformas – e isso ficou patente no comício de 13 de março de 1964 -, o golpe militar, com amplo apoio civil, foi arquitetado para garantir o sucesso do seu desfecho. Jango ficara isolado, sem contar com bases organizadas que o sustentassem, pois nas próprias Forças Armadas a correlação de forças deixara de lhe ser favorável, diferentemente do que tivera lugar quando da renúncia de Jânio Quadros, revelando que setores ponderáveis dos militares nacionalistas haviam sido influenciados pela intensa campanha anticomunista desencadeada pelos golpistas. A ameaça de Jango romper com a legalidade constitucional ajudou a desarticular seu “dispositivo militar”[7].

Cabe registrar que, para o isolamento do presidente João Goulart, tiveram influência as pressões sobre ele exercidas de setores radicalizados, portadores de uma retórica esquerdizante, sem o respaldo, contudo, de um movimento popular capaz de lhe oferecer  sustentação real. Logo após o comício de 13 de março, Darcy Ribeiro, Chefe da Casa Civil, transmitiu à direção do PCB cópia de documento intitulado Projeto Brasil, de caráter bastante radical, que Jango não desejava encaminhar ao Congresso sem o apoio dos comunistas. Prestes, contrário ao documento,[8]conta que o assunto foi discutido na Comissão Executiva, que o aprovou, considerando que deveria ser ainda mais radical. Esta era a posição de Carlos Marighella e Mário Alves. Darcy Ribeiro teria ficado radiante com o apoio do PCB. Na opinião de Prestes, sua postura era evidentemente esquerdista. O Projeto Brasil, encaminhado ao Congresso Nacional, não chegou a ser discutido.[9]

Diante do isolamento de Goulart e das forças nacionalistas e democráticas, seria suicídio para o PCB tentar reagir ao golpe através da luta armada. Naquele momento, a única alternativa viável foi o recuo para a clandestinidade, tentando manter, na medida do possível, a estrutura partidária. Na ausência de condições reais para a vitória de um movimento revolucionário, a história mundial da luta de classes ensina que a solução correta é recuar. Em outubro de 1923, a direção do Partido Comunista Alemão, ao tomar conhecimento de que a maioria dos delegados operários, que eram socialistas de esquerda, rejeitara a proposta comunista de deflagrar insurreição armada na Alemanha, agiu com acerto suspendendo a decisão adotada anteriormente. Em Hamburgo, onde a determinação de recuar não chegou a tempo, durante três dias travou-se uma encarniçada luta contra a polícia e o exército, sem que as massas proletárias da cidade apoiassem ativamente os insurretos, demonstrando que o proletariado alemão, naquele momento, não estava disposto a pegar em armas (Claudin, 1970: 106-107).

A trágica experiência das organizações de esquerda, que recorreram a diferentes formas de luta armada no combate à ditadura, demonstrou na prática que inexistiam condições para tal no Brasil de então. Durante o período de relativas liberdades anterior ao golpe reacionário de março de 1964, as esquerdas haviam subestimado tanto a necessidade de elaboração programática quanto o trabalho de organização e de conscientização das forças populares para levar adiante o processo revolucionário no país. Com o estabelecimento da ditadura, o esforço de organização e conscientização das massas ficaria muito mais demorado e difícil.

A derrota das esquerdas em 1964 traz ensinamentos que continuam válidos na atualidade: o caminho da revolução, cuja estratégia hoje deve ser socialista, passa pela construção do bloco histórico contra-hegemônico, que represente a unidade de amplas forças sociais e políticas em torno de um projeto revolucionário condizente com a realidade atual do País. Tal projeto deverá resultar das lutas dos trabalhadores e da sua organização para alcançar objetivos parciais que possam contribuir para acumulação de forças e a criação de condições – inclusive a formação de partidos políticos revolucionários – para a conquista do poder político, objetivo sem o qual o processo revolucionário ficaria inconcluso e sujeito a novas derrotas.

*Anita Leocadia Prestes é professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes (www.ilcp.org.br).

Referências bibliográficas

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CLAUDIN, Fernando. La crisis del movimiento comunista. Tomo 1. França, Ediciones Ruedo Ibérico, 1970.

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_____________. Escritos Políticos. 2 volumes. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 2004.

MORAES, Denis. A Esquerda e o golpe de 64: vinte e cinco anos depois, as forças populares repensam seus mitos, sonhos e ilusões. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, 1989.

MUNHOZ, Sidnei. “Guerra Fria: um debate interpretativo”. In: Da Silva, Francisco Carlos Teixeira (org.). O século sombrio: guerras e revoluções do século XX. Rio de Janeiro, Elsevier, p. 239 a 259, 2004.

PRESTES, Anita Leocadia. “A que herança devem os comunistas renunciar?” Oitenta, Porto Alegre, LP&M, n.4, 1980, p. 197-223.

_____________. Da insurreição armada (1935) à “União Nacional” (1938-1945): a virada tática na política do PCB. São Paulo, Paz e Terra, 2001.

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SANTANA, Marco Aurélio. Bravos companheiros: comunistas e metalúrgicos no Rio de Janeiro (1945/1964). Rio de Janeiro, 7 Letras, 2012,

VIZENTINI, Paulo G. Fagundes. “A Guerra Fria”. In: REIS FILHO, Daniel Aarão et alii (org.). O século XX. V.2. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p. 195 a 225, 2000.


[1] O golpe teve início no dia 31/3, embora a deposição de João Goulart só tenha ocorrido na noite de 1º para 2 de abril.

[2] Tribuna Popular, RJ, 27/6/1946, p. 1.

[3] Cf. GRAMSCI (2004, v.2: 129-402).

[4] Sujeito-povo: categoria empregada por alguns intelectuais latino-americanos, relacionada com o conceito gramsciano de bloco histórico, ou seja, sujeito-povo expressa não só a soma numérica de diversos setores sociais, mas também é portador de novos valores culturais e constitui uma alternativa de poder (cf., por exemplo, BIGNAMI, 2009: 23, 26, 28 e 107).

[5] As ilusões no “dispositivo militar” de Jango faziam parte de tal concepção nacional-libertadora.

[6] HANDAL, Schafik. “O poder, o caráter, a vida da revolução e a unidade da esquerda”, FMNL, início da década de 1980, 15 páginas (acessado via Internet); grifos meus.

[7] “Dispositivo militar” – denominação atribuída à época aos setores militares que supostamente dariam sustentação ao governo João Goulart, impedindo sua deposição.

[8] L. C. Prestes, naquele período, ainda apoiava a estratégia nacional-libertadora do PCB, da qual iria afastar-se posteriormente.

[9] LCP (entrevistas concedidas por Luiz Carlos Prestes a Anita Leocadia Prestes e Marly de Almeida Gomes Vianna, gravadas em fita magnética e transcritas; RJ, 1981-83). LCP, fita nº XV.

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