Gaza: Não há bomba “não intencional”

Nothing Unintentional

Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu

Já são mais de mil mortos palestinos, com mais de 5 mil feridos. Mais de 70% das baixas são civis, mais de 200, crianças. Famílias inteiras foram dizimadas. Meninos que jogavam bola numa praia foram mortos por barcos de guerra de Israel. Mais de 2 mil residências foram danificadas ou destruídas. Segundo um porta-voz do exército de Israel, 120 bombas de uma tonelada foram lançadas só contra os arredores de Shaja’yya. Mesmo assim, porque morreram três civis israelenses e 40 soldados, os israelenses e seus aliados nos EUA insistem em descrever a carnificina como guerra de autodefesa.

Dizem também que o exército de Israel guerreia moralmente. Que não mira civis. Que jamais os mata intencionalmente. Que até alerta os gazenses sobre futuros ataques, para que possam escafeder-se da área.

A matança “não intencional” de civis não é ilegal, nos termos da lei internacional. Se os civis não são deliberadamente “mirados”, se são mortos na tentativa de alcançar objetivo militar legítimo e o número de mortos é “proporcional” àquele objetivo, nesse caso as baixas civis são definidas como “dano colateral”. Contudo, como ensina Neta Crawford em Accountability for Killing, [1] vale a pena pensar mais criticamente sobre a categoria das mortes não intencionais de civis. Muitas mortes de civis em guerra de guerrilha urbana podem ser “não intencionais”, mas são também previsíveis.

Gaza é território densamente povoado cercado por terra, mar e ar, do qual não há saída possível. O exército israelense está fazendo chover bombas naquele território com poder de fogo suficiente para demolirem prédio de apartamentos de oito andares; para fazerem voar pelos ares enormes portões de ferro. Hádrones que disparam contra áreas onde se acumulam dezenas de milhares de pessoas, contra, até, abrigos; e contra, também pontos em que se aglomeram pessoas que tentam fugir.

O exército de Israel está bombardeando áreas densamente povoadas e campos de refugiados usando tanques Merkava e a respectiva munição, e mísseis disparados de helicópteros Apache, inclusive em áreas que, antes, o exército israelense indicara como local para onde os civis poderiam deslocar-se.

Não há lugar seguro em Gaza. Não há para onde fugir. E nada há de “não intencional”, muito menos há algo de moral, se o que se vê são civis mortos em circunstâncias nas quais se pode prever com 100% de probabilidade que serão mortos; se se ataca à bala de canhão um campo de refugiados superlotado ou uma área superlotada de qualquer cidade, ou rua superlotada, não há dúvida alguma de que haverá mortes de civis em massa. Nessas circunstâncias, a distinção entre assassinato premeditado e morte não intencional já perdeu completamente qualquer significado.

E se as mortes de civis ali não forem ‘não intencionais’? O estado israelense é hábil na arte de mostrar-se sempre alinhado com os interesses e valores proclamados dos EUA.

Depois do 11/9/2001, Ariel Sharon trabalhou muito para igualar a guerra dos EUA contra “terroristas muçulmanos” no Afeganistão e no Iraque, com a luta de Israel contra o povo palestino. Mas a guerra de Israel é absolutamente diferente da guerra dos EUA. Não porque os militares norte-americanos sejam mais morais, ou mais sensíveis às leis da guerra, mas porque os EUA operam com uma fantasia ideológica diferente.

Os militares dos EUA foram libertar iraquianos e afegãos de regimes dos quais esses povos queriam libertar-se – ou, pelo menos, acreditaram que queriam, quando lhes foi dito que queriam. Sempre seria preciso conquistar corações e mentes, mas os civis iraquianos e afegãos facilmente abraçariam a causa dos EUA e sua missão “libertadora”.

A guerra de Israel contra Gaza não é guerra que visa a conquistar corações e mentes palestinos. Israel não se apresenta como protetora ou libertadora dos gazenses, de algum governo opressor. Em vez disso, as táticas do exército de Israel fazem lembrar a lógica dos bombardeios de britânicos e norte-americanos contra cidades alemãs e japonesas durante a IIª Guerra Mundial: atirar para matar contra a população civil. Que sofram além do imaginável. Então, os próprios civis levantar-se-ão contra o governo deles.

Quando Israel ataca hospitais em Gaza, quando assassina famílias inteiras, quando reduz a pedaços irreconhecíveis quatro meninos que jogavam bola numa praia, todos esses são assassinatos premeditados e cuidadosamente planejados. A guerra é uma extensão do castigo coletivo aplicado aos palestinos da Cisjordânia depois que três jovens colonos israelenses foram sequestrados e mortos em junho/2014. É resposta proporcional?

Comparem-se essa resposta e a reação israelense contra os três israelenses que queimaram vivo um adolescente palestino, como vingança pela morte dos três colonos. Imaginem o exército israelense pondo-se a bombardear as colônias nas quais vivessem os colonos assassinos, responsabilizando colônias israelenses inteiras, pelo crime dos três assassinos; imaginem o exército israelense a demolir colônias de israelenses, a tiros de canhão.

Ou imaginem se o Hamás tivesse acesso a foguetes melhores, que pudessem ser mais eficazmente dirigidos contra os seus alvos. Imaginem se o Hamás começasse a atacar exatamente os pontos onde estivessem os altos comandantes e governantes israelenses, as casas deles, que matassem mulher e filhos deles, sobrinhos, sobrinhas, junto com a família, também dos vizinhos deles, da casa ao lado, numa explosão só. Imaginem que essas mortes fossem apresentadas ao mundo como “danos colaterais” pelas quais o Hamás não seria responsável nem legal nem moralmente!

Os ataques a bomba, pelo exército de Israel, contra casas, escolas e hospitais palestinos, tudo indiscriminadamente posto no chão, reduzido a escombros, matando sem parar o povo de Gaza, tem de ser chamado pelo que é: CRIME DE GUERRA.

Nota dos tradutores

[1] CRAWFORD, Neta C., Accountability for Killing. Moral Responsibility for Collateral Damage in America’s Post-9/11 Wars [Da prestação e da cobrança de contas e responsabilidades por matar. Responsabilidade moral por dano colateral, nas guerras pós-11/9 dos EUA], Oxford University Press, 2013, 513 pp.


*Nadia Abu El Haj (nasceu em 1962) é uma acadêmica americana com PhD em Antropologia pela Duke University. É professora associada de antropologia da Faculdade Barnard.Autora de Facts on the Ground: Archaeological Practice and Territorial Self-Fashioning in Israeli Society (2001) eThe Genealogical Science: The Search for Jewish Origins and the Politics of Epistemology (2012). Abu El Haj nasceu em Nova Iorque, segunda filha de mãe protestante e pai palestino e muçulmano. Seu avô materno era francês e avó materna norueguêsa-americana. Sua educação religiosa limitou-se a frequentar igreja duas vezes por ano. Passou alguns anos em escolas particulares em Teerã e Beirute quanto seu pai, como funcionário da ONU, foi transferido para aquelas cidades. Retornou aos Estados Unidos para seus estudos de nível universitário, frequentando o Bryn Mawr College obtendo título de Bacharel em Ciência Política e recebeu seu diploma de doutorado na Duke University. Entre 1993 e 1995 fez trabalhos de pós-doutorado com bolsa da Harvard University Academy na área de Estudos Internacionais, com foco no Oriente Médio. Também recebeu bolsas daUniversity of Pennsylvania, Mellon Program, e do Institute for Advanced Study emPrinceton. Abu El Haj fala inglês, árabe, francês, persa e hebraico.