As mentiras de Israel: sem olhos em Gaza
“Israel’s Deceptions: Eyeless in Gaza”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Um incidente no fim de semana – a noticiada captura, pelo Hamás, de um soldado israelense na 6ª-feira (1/8/2014), servindo-se de um dos túneis – serviu para ilustrar de modo notável as camadas de mentiras que Israel tem conseguido lançar sobre os fatos do ataque contra Gaza.
No domingo, com o exército dando sinais de que iniciaria retirada limitada, Israel declarou que Hadar Goldin estava morto, possivelmente soterrado num dos túneis que teria desabado sob bombardeio naquela área. A família do soldado disse que o exército o abandonara.
Nem os funcionários do governo de Israel nem a imprensa viram de modo objetivo a operação do Hamás. Goldin não teria sido “capturado”, mas sequestrado – como se estivesse passeando e tivesse sido atacado por ladrões de rua.
Como acontece frequentemente, muitos jornalistas ocidentais acompanharam a versão dos israelenses. O London Times gritava na primeira página: “Sequestrado em Gaza”. O Boston Globe trazia matéria sobre “soldado israelense apanhado”.
Pelas reações ocidentais, era claro, também, que a captura do soldado era considerad
o notícia mais importante que qualquer dos massacres de civis palestinos ao longo de semanas.
O cálculo cínico de Israel – um soldado valeria mais que grande número de civis palestinos mortos – ecoou pelos corredores da diplomacia e das redações em Washington, Londres e Paris.
Foi posta em circulação também a falsa “notícia” segundo a qual, ao atacar um grupo de soldados em Rafah e capturar o soldado Goldin, o Hamás teria violado os primeiros minutos de um cessar-fogo humanitário de 72 horas.
O Washington Post noticiou as circunstâncias em que um suicida-bomba do Hamás teria emergido de um túnel para explodir-se, o que teria matado dois soldados e Goldin foi puxado para dentro do túnel:
Na manhã de 6ª-feira (1/8/2014), soldados israelenses trabalhavam no sul da Faixa de Gaza, preparando-se para destruir um túnel do Hamás, como informaram oficiais militares israelenses. De repente, militantes palestinos emergiram de um buraco.
O repórter da CBS, Charlie D’Agata papagueou o mesmo briefing distribuído aos jornalistas pelos israelenses; e, como tampouco o WPost, não percebeu que estava expondo a grande mentira geral.
O soldado teria sido “sequestrado durante operação para limpar os túneis. E o sequestro teria acontecido depois de o cessar-fogo ter sido declarado” – como os israelenses e seus jornalistas de serviço não se cansavam de repetir. Mas… se o cessar-fogo já estava vigente, o que faziam naquela área o soldado Goldin e seus companheiros, explodindo túneis? Caberia talvez aos combatentes do Hamás entrar nos túneis e esperar para serem explodidos durante o cessar-fogo? Ou quem violava o cessar-fogo era, isso sim, Israel?
Então, veio a explosão de fúria dos militares israelenses, quando perceberam que faltava um soldado. Os correspondentes israelenses admitiram que foi invocado o “procedimento Hannibal”: usar de todos os meios possíveis para impedir que qualquer soldado seja capturado vivo; inclusive matá-lo. A ideia é impedir que o inimigo tenha uma vantagem psicológica na negociação.
A furiosa massa de fogo parece ter sido ordenada para garantir que nem Goldin nem seus captores jamais saíssem vivos daquele túnel; mas, nesse processo, Israel matou dúzias de palestinos.
Foi mais uma ilustração de que Israel absolutamente não se preocupa com a segurança de civis. Pelo menos ¾ dos mais de 1.700 palestinos assassinados até agora são não-combatentes; e praticamente todas as baixas israelenses são soldados. Esse tem sido o padrão em todos os recentes confrontos em que Israel esteve envolvida.
Também as justificativas dos israelenses para levar a luta para dentro de Gaza vieram recheadas com camadas e camadas de mentiras.
O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu disse que Israel teria sido arrastada para uma guerra de necessidade. Barack Obama imediatamente lhe fez eco: Israel teria pleno direito de defender-se de uma barragem de foguetes lançados de Gaza. Na sequência o pretexto passou a ser “destruir os túneis do terror”. A lógica, aí, é profundamente viciada.
Israel está ocupando e sitiando Gaza, o que confere aos gazenses o direito, nos termos da lei internacional, de lutar pela própria liberdade. Como seria admissível que o violador das leis, o opressor, o ocupante, mantivesse algum direito de autodefesa? Se Israel tem objeções a ser atacada e agredida, Israel que pare de fazer, da vida de suas vítimas, um inferno sem fim.
O grau no qual a narrativa da “autodefesa” de Israel passou a dominar toda a cobertura “jornalística” e todas as declarações “diplomáticas” apareceu muito claramente numa entrevista na CNN. A âncora Carol Costello perguntou com ar muito sério, a um entrevistado com ar de susto ante a imbecilidade da pergunta: “Por que o Hamás não mostra a Israel onde estão aqueles túneis?”.
Também significativamente, Israel também ocultou a verdade de que se serviu de um acontecimento exterior, para essa nova rodada de ataques contra o Hamás – e de que o fez calculadamente.
Uma repórter da BBC confirmou recentemente com um porta-voz da polícia israelense um boato que circulava entre os correspondentes militares já há semanas. Já se sabia que o grupo que sequestrou os três israelenses na Cisjordânia – evento que teria motivado a campanha de Israel contra o Hamás – agira sozinho, por conta própria.
Netanyahu mentiu que teria provas abundantes de que o Hamás teria sido responsável; foi o que bastou para que o exército se pusesse a prender centenas de membros do Hamás e a bombardear as instituições do partido na Cisjordânia.
O ataque foi a provocação necessária: o Hamás autorizou os seus grupos ativistas a lançar os primeiros foguetes, ainda em número limitado. O analista Nathan Thrall observou recentemente que o Hamás havia impressionado o exército israelense até ali, porque havia feito valer o cessar-fogo acordado com Israel 18 meses antes; e, isso apesar de Israel ter violado os termos do mesmo acordo e mantido o cerco de Gaza.
Afinal, com os foguetes, Netanyahu encontrou a desculpa de que precisava para atacar Gaza.
Mas qual foi a razão real de Netanyahu para atacar Gaza dessa vez? Para que se serviu de tantas mentiras e encenações? Para esconder o quê?
Parece que Netanyahu quis pôr fim a uma ameaça estratégica: não os foguetes nem os túneis do Hamás, mas o governo de unidade entre os dois partidos políticos e antigos rivais, Hamás e Fatah. A unidade palestina criava o risco de aumentar a pressão sobre Netanyahu para negociar; ou, talvez, de fazer ressurgir uma campanha mais crível, dessa vez, pelo reconhecimento da soberania do estado palestino na ONU.
Mas o impressionante aparelho de guerra do Hamás, surpreendente, de fato, dessa vez, contra Israel – Israel perdeu dúzias de soldados; e os foguetes, agora, de longo alcance contra Israel (o Hamás conseguiu manter fechado o único aeroporto internacional de Israel por alguns poucos dias), e o tempo de resistência, que causou perdas de mais de US$4 bilhões para a economia israelense – obrigaram Netanyahu a retroceder e a mudar seus planos.
Por hora, Netanyahu parece estar preferindo retirar os soldados israelenses, em vez de ser empurrado, por pressão internacional, a negociar com o Hamás. Ele sabe que a principal demanda será que Israel ponha fim ao cerco de Gaza.
Mas, no longo prazo, é possível que Netanyahu venha a precisar da unidade palestina, pelo menos nos seus próprios termos, como meio para “controlar” o poder e os ganhos do Hamás.
Quando Israel estava começando seu ataque contra Gaza, Netanyahu virou-se na direção da Cisjordânia. Alertou que “jamais poderá haver qualquer acordo pelo qual descuidemos do controle da segurança” na Cisjordânia, de medo de que, dado o tamanho muito maior da Cisjordânia, o Hamás venha a criar ali “outras 20 Gazas”.
Estava dizendo que jamais haverá estado palestino. Alguma espécie de entidade “desmilitarizada”, circunscrita e absolutamente dependente de Israel e dos EUA, é o máximo que Israel jamais aceitará discutir.
Permitir que Mahmoud Abbas e o Fatah passem a governar também Gaza, sim, justificaria aliviar o cerco. Mas se, e somente se, Abbas assumir a tarefa de pôr fim à infraestrutura militar do Hamás e concordar em exportar para Gaza o modelo que estabeleceu na Cisjordânia – de acomodação incondicional e infindável com Israel e EUA e com o que lhe ordenem.
[*] Jonathan Cook (nascido em 1965) é escritor e jornalista freelance baseado em Nazaré, Israel, que escreve sobre o Oriente Médio e, mais especificamente, sobre o conflito israelense-palestino. Cook nasceu e cresceu em Buckinghamshire, Inglaterra. Recebeu o bacharelado em Filosofia e Política na Southampton University, em 1987, diplomou-se já com pós-graduação em jornalismo na Cardiff University, em 1989 com mestrado em Oriente Médio com estudos na School of Oriental and African Studies, em 2000. A carreira de foca no jornalismo começou em 1988 como repórter e editor para jornais regionais de anúncios em Southampton no Southampton Evening Echo. Foi sub-editor freelance de vários jornais nacionais no período de 1994 até 1996 como jornalista da equipe do The Guardian e entre 1996 e 2001 do The Observer.
Desde setembro de 2001 Cook, como free lance, está baseado em Nazaré, Israel. Continuou a escrever colunas para o The Guardian até 2007, uma publicação ele abandonou em 2011 em represália ao comportamento do Guardian sobre Gilad Atzmon, Julian Assange, Noam Chomsky e outros escritores e jornalistas. Artigos de Cook também foram publicados no The International Herald Tribune, Le Monde Diplomatique, Al-Ahram Weekly, Al Jazeera, The National (Abu Dhabi), antiwar.com , CounterPunch, Dissident Voice, The Electronic Intifada, Mondoweiss, AlterNet e Mídia Lens entre outros. Em 2011, Cook recebeu um prêmio especial Martha Gellhorn de jornalismo por seu trabalho sobre o Oriente Médio. Escreveu 3 livros “solo” e vários outros em coparticipação