Organização popular e eleitoralismo

A vitória do Syriza, enquanto facto político, vale muito pouco. Mas vale enquanto elemento de um processo. Dificilmente sairá uma transformação assinalável da política grega – e tanto menos da correlação de forças à escala europeia – desta vitória eleitoral: mas ela, e a reacção a ela, elucidarão com rapidez aqueles que, infundadamente, acreditam na possibilidade de uma União Europeia ao serviço dos trabalhadores e dos povos, contanto que refundada no seu projecto, ou devolvida a uma mítica pureza inicial.

Tenho escrito amiúde sobre a euro-esquerda e a perniciosidade da sua tese de que a União Europeia é um instrumento que pode, igualmente, ser utilizado a favor dos povos ou a favor dos capitalistas, dependendo os beneficiários das suas políticas da boa vontade ou falta dela de quem dirige a instituição [1] . Tal teoria, que escamoteia a existência de uma sociedade de classes e uma permanente luta de classes, ou que imagina que a política, os Estados, e as organizações inter-estatais são neutrais e não estão nem ao serviço do capital nem ao serviço dos trabalhadores, é o retomar na íntegra dos postulados oportunistas da Segunda Internacional às portas da I Grande Guerra, contra os quais Lenine se bateu com todas as forças. Retomada essa que, de resto, tem motivos em muito similares: se naquela época, como Lenine escrevia, “[o] caráter relativamente “pacifico” do período de 1871 a 1914 alimentou o oportunismo primeiro como estado de espírito, depois como tendência e finalmente como grupo ou camada da burocracia operária e dos companheiros de jornada pequeno-burgueses. Estes elementos só podiam submeter o movimento operário reconhecendo em palavras os objetivos revolucionários e a tática revolucionária. Eles só podiam conquistar a confiança das massas através da afirmação solene de que todo o trabalho “pacifico” constitui apenas uma preparação para a revolução proletária. Esta contradição era um abcesso que alguma vez haveria de rebentar, e rebentou.” [2] , hoje vivemos novamente o fim de um período ainda maior de relativa paz social na Europa, datando, com excepção de episódios de irrupção violenta nos anos 60 e 70 sempre derrotados pela burguesia, de 1945 até agora. Paz social, convém esclarecer, mantida com férrea solidez por uma mesma “camada da burocracia operária”, empenhada num verbalismo pretensamente revolucionário acompanhado de uma prática política complacente com a exploração e adaptada a ele. Essa camada, aliás, conseguiu inclusivamente transformar a sua complacência e subjugação numa “via pacífica para o socialismo” [sic], crismando-a com o nome de eurocomunsimo e inutilizando sem remédio diversos partidos comunistas. Os “companheiros de viagem pequeno-burgueses” não tardaram a juntar-se-lhes, mesmo se vinham, como o Bloco de Esquerda em Portugal e algumas fracções do Syriza na Grécia, de uma crítica pela esquerda ao movimento comunista internacional. A natureza de classe de um movimento aflora, mais tarde ou mais cedo, no seu posicionamento. Ou, como diz o ditado, “quem se quer bem, sempre se encontra”.

O que pretende esta tal camada da burocracia operária? Essencialmente, na medida em que isso seja possível, conter os aspectos mais repulsivos do capitalismo, sem comprometer a vigência desse mesmo capitalismo. A sua função, a sua pulsão essencial, é para negociar, e não para impor pela força da classe trabalhadora organizada. Em razão disso, quando se vê numa posição em que chegou ao poder com um programa que busca pateticamente propor à burguesia que não revolucione permanentemente os meios de produção, e permita à mal designada classe média não ir parar ao salário mínimo, e ao merceeiro não bater com a porta da loja para ir suplicar emprego ao dono do hipermercado com que não pode competir que lhe dê trabalho, esta camada conciliatória da burocracia operária e da pequena burguesia vê-se perante um dilema: ou aplicar o programa que a burguesia já tinha, ou aplicar o programa do proletariado revolucionário. E cederá sempre à classe que tiver mais força para lho ditar.

A compreensão deste fenómeno é absoluta por parte da burguesia e do imperialismo. Deram provas claras disso mesmo nos últimos dias. Mesmo perante um Governo que só quer negociar, que promete honrar todos os compromissos com o BCE e o FMI, que assegura querer ficar no euro, que faz juras de amor eterno à União Europeia, e se aliou à direita conservadora em busca de uma plataforma governativa cujo ponto de unidade seja a reestruturação da dívida [3] , a reacção foi inclemente: Schäuble e Merkel dizem que a Alemanha não se deixa chantagear; Vítor Constâncio ameaçou fechar a torneira do BCE; o ataque especulativo à bolsa ateniense, a fuga de capitais, as invectivas, as pressões, tudo, numa reacção absolutamente destemperada a duas ou três medidas que em nada comprometem o essencial das políticas prosseguidas pelos governos anteriores (cessação das privatizações em curso sem qualquer nacionalização, aumento gradual do salário mínimo, fornecimento gratuito de electricidade a famílias carenciadas), atestam que o que se passou efectivamente não é o que realmente importa nas contas da burguesia, mas sim o que está revelado no que se passou: o crescente descontentamento, ainda desordenado, ainda desorganizado, ainda inconsciente das suas tarefas históricas e do modo de as concretizar, que amplas camadas das classes populares demonstraram ao votar expressivamente no Syriza. Na medida em que o proletariado grego souber transformar o exaspero que esta votação expressou em força material organizada, no plano da organização sindical, das organizações de moradores, das organizações de juventude, etc., conseguir fazê-lo (o Syriza, prova-o o evidente eleitoralismo das suas proposta e a irrelevância das suas posições na organização popular, não o fará), o Governo pequeno-burguês, hesitante, tremebundo, agora eleito, pode ser tentado a assumir de forma consequente a causa do proletariado, com tudo o que isso comporta de ruptura anti-imperialista com a UE e o euro. A burguesia percebe isso. O Partido Comunista da Grécia, cuja linha de organização de movimentos populares aparece bem expressa no seu Programa Político [4] , também percebe isso. Aquele que conseguir, primeiro, concretizar as suas tarefas,sairá vitorioso.

Retira-se uma importante lição desta circunstância em que, para pasmo de alguns, o partido vencedor de uma eleição se vê ensanduíchado entre a necessidade de aplicar o programa ou de um ou de outro dos partidos derrotados numa eleição [NR] . Como se revela descarnadamente como a aplicação de qualquer dos dois programas depende de tudo menos da vontade desse mesmo Governo. O plano político expressa e auxilia a luta de uma classe contra outra. O Estado é o instrumento da dominação de uma classe por outra. E o Estado burguês da Grécia está montado para dominar o proletariado em nome da burguesia, e não para fazer o contrário: o que torna ainda mais determinante que a organização de massas dos trabalhadores e das classes populares da Grécia redobre esforços se quer empurrar o Governo Syriza um milímetro que seja. Porque a única arma que o proletariado tem, teve, e algum dia terá, é a sua organização. O voto, o protesto, a manifestação, a petição, a greve, seja que forma de luta for, sem a organização de massas, serve-lhe de coisa nenhuma. Organização voltada para a revolução, e nunca, jamais, em tempo algum, apenas para a vitória eleitoral, a qual, como vemos, nunca garante, por si só, a aplicação de programa político nenhum. Um programa é um conjunto de ideias, e as ideias quando são separadas das condições materiais em vez de serem retiradas delas servem talvez para a literatura, mas não têm nenhuma utilidade política.

01/Fevereiro/2015

(1) Conferir, por exemplo aqui: conscienciavisceral.wordpress.com/…

(2) Lenine, O Oportunismo e a Falência da II Internacional . Disponível aqui: www.marxists.org/portugues/lenin/1916/01/falencia.htm

(3) Muito à semelhança, de resto, ao que por cá foi feito com o manifesto dos 70: é bastante curioso verificar como, separados pelo binómio do conservadorismo e do progressismo, diferentes representantes de diferentes fracções da pequena burguesia se associam quando o interesse objectivo da mesma classe é descarnadamente posto em cima da mesa.

(4) “The labour movement, the movements of the urban self-employed and farmers and the form that their alliance takes on (the People’s Alliance) with anti-monopoly and anti-capitalist goals, with the vanguard activity of the KKE’s forces, in non-revolutionary conditions, constitute the first form for the creation of the revolutionary workers’ and people’s front in revolutionary conditions. The working class and popular masses, through the experience of their participation in the organization of the struggle in a direction of confrontation with capital’s strategy, will be persuaded of the need for their organization and confrontation to take on the character of a full and multi-facetted confrontation with the economic and political dominance of capital.”. Tradução: “O movimento dos trabalhadores, o movimento dos auto-empregados urbanos e do campesinato, e a forma que toma a sua aliança (a Aliança Popular), com objectivos antimonopolistas e anticapitalistas, com a actividade de vanguarda das forças do PC Grego, em condições não-revolucionárias, constitui a primeira forma da criação da frente revolucionária e popular em condições revolucionárias. A classe operária e as massas trabalhadoras, através da experiência da sua participação nas organizações da luta numa direcção de confronto com a estratégia do capital ficarão persuadidas da necessidade de a sua organização e confrontação tomarem o carácter de uma confrontação multifacetada com a dominação política e económica do capital”. Ver aqui, em inglês: inter.kke.gr/en/articles/Programme-of-the-KKE/

[NR] O programa do próprio Syriza, traduzido para francês, pode ser visto em www.legrandsoir.info/…

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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