Acerca de negociações: lições do caso Syriza
Quando se abre a caixa de Pandora da finança liberalizada é impossível fechá-la pela metade.
CédricDurand, Le capital fictif , Ed. Lesprairiesordinaires, 2014.
“Partidos ou movimentos políticos sem referências ideológicas anticapitalistas expressas e evidenciadas na prática resvalam para o oportunismo, rendendo-se ao neoliberalismo”.
1 – Negociações não antagónicas
Um governo progressista em Portugal será confrontado com as imposições da UE. As negociações do Syriza, representando uma indisfarçável capitulação, encerram lições sobre o que deve ser feito na defesa dos interesses nacionais.
Dizem os psicólogos que tudo na vida é negociação. Os sexólogos confirmam. Questão de bom senso. Há no entanto negociações antagónicas e não antagónicas. Vamos primeiro tratar destas sem as quais não se entendem plenamente as outras.
Nas negociações não antagónicas, é possível estabelecer situações de ganho mútuo, ditas “win-win”,em que os oponentes se podem considerar parceiros. De qualquer forma, em qualquer negociação há sempre uma parte mais fraca e uma mais forte. A parte mais fraca deve colocar-se na posição de poder desencadear a negociação e apresentar o que pretende.
Em que se pode basear a parte mais fraca? Basicamente, em cumprir as regras preestabelecidas, mostrando que a outra parte não as cumpre ou não as cumpriu. Num contrato entre empresas, a parte mais fraca (o fornecedor, o empreiteiro) terá de argumentar baseada no clausulado contratual que cumpriu ou se não cumpriu tal foi devido a circunstâncias que não podia controlar, ou por alteração das circunstâncias contratualmente previstas, ou por incumprimento da outra parte.
Há aqui a considerar dois pontos fundamentais: o momento em que é desencadeada a negociação e a aceitação dos interlocutores. O momento em que é desencadeada a negociação tem de ser escolhido numa altura crítica para o sucesso do contrato, no qual a outra parte está obviamente interessada, até por razões pessoais, e que por isso também depende da ação da parte mais fraca.
A típica situação “win-win” estabelece-se no reconhecimento que num possível litígio, a parte mais forte teria mais a perder do que aquilo que a parte mais fraca solicita ou está disposta a aceitar.
Quanto aos interlocutores é evidente que não há negociação possível com técnicos ou burocratas sem poder de decisão, devendo exigir-se à partida elementos com procuração suficiente para comprometer as entidades que representam. O facto da negociação poder ser conduzida para arbitragem em moldes mutuamente aceites não a torna antagónica.
Note-se que muitos contratos consistem em clausulados preestabelecidos aos quais não são admissíveis alterações. Compete à parte mais fraca descobrir os pontos que constituem obrigações da outra parte e focar-se nesses pontos na realização do contrato. Se o contrato não contiver estes pontos então pode dizer-se de carácter leonino, ilegítimo e terá de ser recusado, pois não estabelece condições aceitáveis para a sua concretização.
Estas condições poderão ser contudo incluídas no planeamento, definindo circunstâncias limitativas das responsabilidades da parte mais fraca e a sua precedência sobre outro clausulado. A gestão de um contrato deve desde o primeiro momento ser feita de forma a um eventual litígio poder ser ganho. É a melhor maneira de o evitar.
2 – Negociações antagónicas
Nas negociações antagónicas pode acontecer que não haja um contrato mutuamente acordado ou que uma das partes deixe de o reconhecer ou aplicá-lo. É o caso de uma agressão ou da violação de tratados internacionais ou do contrato social preexistente. Neste caso, não existem parceiros, mas sim adversários.
O ponto de partida terá de ser a parte mais fraca a mostrar à mais forte que ela pode perder mais do que a mais fraca está disposta a suportar se não se chegar a acordo. É uma situação de “I loose – youloose”. As negociações antagónicas ocorrem por incompetência, falta de honestidade ou má-fé de uma ou ambas as partes, mas são sempre o resultado de relações antagónicas irresolúveis.
O objetivo da parte mais fraca é chegar à negociação, o da mais forte que não exista negociação, que a parte mais fraca se conforme com as suas decisões e critérios. Valem as relações de força, poder, ameaças, diversas formas de chantagem, agressão psicológica.
Nas relações entre Estados o típico destas situações é a agressão, que pode não ser militar. A parte agredida, tem de se colocar numa posição de força para motivar negociações. A posição de força passa por estabelecer uma estratégia para mostrar que controlo ou domínio da outra parte se tornou irrealizável. Como exemplos deste tipo de situações podemos mencionar o fim da guerra do Vietname, as lutas de libertação nacional, a resistência do povo cubano perante os EUA, as negociações das FARC com o governo colombiano. Escusado será dizer que a resolução de relações antagónicas, implica esforços, determinação, sacrifícios.
Refiram-se ainda as questões laborais. Se a lei protege a parte mais fraca – os trabalhadores, o movimento sindical – as negociações podem ser do tipo não antagónico, apesar do desenvolvimento de greves. Caso a lei consagre a “flexibilidade laboral” então as relações laborais são sempre de natureza antagónica. Os trabalhadores terão de considerar como seu objetivo estratégico a derrube do sistema que origina tais relações.
3 – O “memorando de entendimento” em Portugal [1]
Existem contratos em que são definidos objetivos a atingir, mas a escolha e gestão dos processos são da responsabilidade do contratado. Noutros a gestão e procedimentos são da responsabilidade do contratante, competindo ao contratado apenas o seu cumprimento com qualidade e diligência, embora os objetivos a atingir não sejam de sua responsabilidade.
O que se passou com a troika foi que estes definiram os procedimentos, um calendário de ações e os objetivos a atingir. Em termos contratuais isto é simplesmente inconcebível: ser responsável por atingir determinados resultados, ser penalizado se tal não for conseguido, mas não ser livre de decidir sobre os procedimentos para lá chegar. Numa empresa, havia razões para os responsáveis por tal situação serem alvo de um processo disciplinar.
Em Portugal estas posições foram qualificadas de “ajuda” dos “nossos amigos”. Propagandistas esmeraram-se em elogiar a troika e a nossa perda de soberania, roçando a boçalidade fascizante: “se não fosse atroika deitávamo-nos à sombra e não fazíamos nada” ou “felizmente que estamos sob intervenção da troika”. De facto, o colonizado torna-se desprezível quando elogia e se coloca do lado do colonizador.
O “memorando” representa na realidade um pacto de agressão e ocupação do país e, como a ministra das Finanças não se cansa de lembrar, continua em vigor. O vice-ministro Portas diz o contrário, no papel de tartufo político. Marcelo, comentador funâmbulo, elogia-o. Porém, excetuando 1580 e 1890 nunca houve um ataque tão grave à soberania nacional como este.
O PSD e CDS mostraram o que pretendiam ao exigirem em apoio da finança a vinda troika, participando com o PS na aceitação do chamado “memorando”. Ao tornarem-se governo foram “para além da troika” nas medidas antipopulares, mas não no que dizia respeito às rendas do sector energético e PPP. Um secretário de Estado foi levado à demissão ao dizer que havia mais de 3 000 M€ de rendas energéticas.
O governo PSD-CDS governou à margem da lei e da Constituição, oferecendo aos oligarcas um exército de reserva do trabalho no limite da subsistência. Um PR digno desse nome deveria ter desde logo convocado novas eleições face ao não cumprimento das promessas eleitorais e à fraude implícita no “memorando”.
Um governo patriótico teria de imediato denunciado o “memorando” evidenciando que os objetivos exigidos não eram alcançáveis com as medidas impostas. E para a troika não dizer que havia incumprimento da parte portuguesa tratar de imediato de resolver a questão das rendas energéticas e nas PPP. Esta posição levar-nos-ia de imediato á mesa das negociações, de acordo com o que atrás dissemos, obviamente antagónicas.
4 – As negociações do Syriza
As propostas eleitorais do Syriza configuravam um partido da social-democracia tradicional com laivos nacionalistas. Só a deformação ideológica prevalecente na UE podia considerá-lo de extrema-esquerda. O PS, inicialmente nervoso, embrulhava-se em contradições ridículas como: “apoiamos as negociações da Grécia, devendo ser encontrada uma solução dentro das regras europeias” (A. Costa). Como se causa maior dos problemas da Grécia (e de Portugal…) não fossem as “regras da UE”.
O facto de o Syriza querer negociar com as entidades da troika não era em si mesmo criticável. Não vamos aqui detalhar o acordo com o Eurogrupo, dado este site disponibilizar relevante informação. O Syriza cedeu em toda a linha, passando de inimigo público dos oligarcas, a ser tolerado e mesmo elogiado pela direita, apesar desta o olhar com desprezo, saboreando a humilhação infligida e a vitória do neoliberalismo.
A imprensa alemã deu o tom com a arrogância de se considerarem “herrenvolk”. A seguir às negociações do dia 20 de fevereiro, o BildZeitung falava em êxito de Schauble: “os gregos cedem, esperemos que desta vez cumpram. Há o perigo de Tsipras burlar com novos truques as decisões de Bruxelas”. O FrankfurterAllgemeine dizia “é necessário verificar se os planos de reformas se tornam realidade ou ficam no papel”. O SüddeutsheZeitung, insistia. “a linha dura é importante, pois não se trata só de dinheiro, mas de luta entre as forças populistas e as forças moderadas da Europa”.
Por “forças moderadas”, devem certamente incluir os nazi-fascistas de Kiev que promoveram e apoiam. O FMI e a CE alinham no tom da imprensa alemã acima referida. Ora, a direita que respira aliviada, mostra o seu revanchismo e acaba por desmascarar o Syriza e as ilusões dos “europeístas”.
No entanto, antes de se iniciarem as negociações, Varoufakis punha a hipótese de sair do euro e tinham sido encetadas conversações em Moscou, alegadamente para serem consideradas fontes de financiamento alternativas. Rapidamente, Varoufakis desdisse-se e o Syriza não passa hoje de um Pasok recauchutado. Obviamente, a última palavra pertence ao povo grego.
Do ponto de vista de negociação, vejamos alguns erros do governo grego. Primeiro, não querer ver que negociações com a troika – as “instituições” – serão sempre de natureza antagónica. Logo no início o Syriza falou em “parceiros”. Iludia-se e iludia o povo grego iniciando a negociação com uma estratégia totalmente errada nas circunstâncias prevalecentes.
Segundo, apesar de serem públicas as ameaças e a chantagem sobre a Grécia, o governo grego sentou-se à mesa sem nenhum plano alternativo, foi pedir esmola. Estava derrotado à partida, restava-lhe fazer como os partidos do sistema e tentar ir enganando o povo grego.
5 – Algumas conclusões
A Alemanha assume-se como gendarme político, económico e social na UE. Uma negociação sobre austeridade com a UE é uma negociação antagónica. Falar em parceiros e ajuda evidencia-se, face ao que ocorre, como uma desprezível mentira.
Não se pode iniciar uma negociação deste tipo sem um plano alternativo para enfrentar o confronto, designadamente: a saída do euro, o não pagamento da dívida até acordo sobre a sua renegociação, a obtenção de financiamento alternativo através do sistema financeiro criado pelos BRICS e a SCO (Shanghai CooperationOrganization). [2]
O Syriza “esqueceu-se” de uma medida fundamental, evidenciando o seu carácter social-democrata, como o controlo público da banca implicando o fim da livre transferência de capitais. A contravenção à lei, posta em prática de imediato, implicaria a penhora de bens e um processo de pagamento de juros. [3] Deveria também ser prevista a instauração de processos contra atos anteriores à posse do governo que configurassem ilegalidades ou sabotagem económica.
A capitulação do Syriza levou a que a CE insistisse na ofensiva contra os povos. O comissário dos assuntos económicos deu uma conferência de imprensa para denunciar (é o termo) cinco países – França, Itália, Bélgica, Bulgária, Croácia, Portugal – em situação de déficit excessivo “que requer ações políticas decisivas e monitorização específica”.
A UE tem os povos presos nas grilhetas do endividamento e do euro. Esta situação só será alterada pela resistência popular. O caso grego mostrou que esta resistência amadureceu na consciência dos povos. Quando o governo grego parecia querer afrontar a troika o seu apoio subiu para mais de 70%, e realizaram-se grandes manifestações de apoio ao governo. Face às pressões da troika, o governo grego teria de imediato efetuar um referendo sobre as suas propostas eleitorais e a eventual saída do euro.
Por último, é importante verificar que partidos ou movimentos políticos sem referências ideológicas anticapitalistas expressas e evidenciadas na prática resvalam para o oportunismo rendendo-se ao neoliberalismo. Não queremos com isto dizer que para se defender a soberania nacional e políticas progressistas é necessário ser marxista. O que não se pode é ser antimarxista e não procurar a unidade com estes sectores.
Notas
[1] Ver “Representantes do Império em inspeção a uma Província: “IMF Country Report Nº 12/77”, www.odiario.info/?p=2458
[2] Trata-se do Novo Banco de Desenvolvimento que desafia o domínio do BM e do FMI, com um capital inicial de 100 mil milhões de dólares. Seria curioso saber que percentagem de cidadãos da UE tem conhecimento desta realidade.
[3] Note-se que penalizações deste tipo são aplicadas em Portugal ao não pagamento de portagens nas ex-SCUT, transformando dívidas de alguns euros em centenas e múltiplos processos. O dinheiro obtido vai quase integralmente para os privados. Um escândalo.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .