A operação em curso – nome de código: Grécia
por Daniel Vaz de Carvalho
“Perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores”,
Mateus 6.12, da mais importante oração cristã, de que a Europa se reivindica.
O Pai Nosso na Igreja Primitiva.
1 – No passado domingo a agressão sofreu uma derrota
O domínio da alta finança através da hegemonia alemã, depara com crescente resistência dos povos que não se conformam com a subserviência de governos colaboracionistas e falsos tratados que põem em causa a soberania e a democracia. A expressiva vitória do NÃO no referendo grego, só pode servir para prosseguir e reforçar a luta, contudo não vai fazer parar a agressão. Passada a primeira a surpresa e ao contrário do que a propaganda e a chantagem fariam prever, a ditadura financeira mascarada de “europeísmo” recompõe-se e prossegue a ofensiva.
A direita perdeu por momentos a sua farronca, insistindo na “intransigência” grega”, nas culpas dos “gregos”, quando afinal a situação do país se deve precisamente ao fracasso das políticas que a direita defende e quer que continuem. Seria fastidioso desmontar a sua argumentação de tal forma se se refugia na mentira, no obscurantismo, no intelectualmente reles perante as evidências. Os partidos “socialistas” que antes se remetiam a uma ambiguidade cúmplice, colocando no mesmo nível agressores e agredidos, apelam agora à benevolência das “instituições”. Como se o capitalista – nesta condição – não colocasse o capital no lugar do coração (Marx).
A comparação do que se passa na UE com o fascismo, o neofascismo, não é despicienda. Já foi referido que a troika estava a fazer na Grécia o que a ditadura dos coronéis não tinha conseguido. Em Portugal e em Espanha o totalitarismo da UE reverte a favor do grande capital condições que as ditaduras fascistas no seu final tinham já sido obrigadas a ceder.
A via do retrocesso é afinal o programa da UE sob o lema de que “as reformas têm de prosseguir”. A resistência que se levanta é ainda ideologicamente pouco consistente. A negação do “não” não é ainda a dialética “negação da negação” com vistas a superar as contradições do sistema.
2 – A operação em curso
Clamava Catão no Senado de Roma: “Cartaginem esse delendam”, Cartago deve ser destruída. Grito idêntico perpassa nos areópagos europeus, apesar do fraseado elíptico dos propagandistas: “A Grécia deve ser destruída”. Mas tal como em Roma não se tratava apenas de destruir Cartago, sim de dominar todo o Mediterrâneo e a Península Ibérica, aqui trata-se do domínio da Alta Finança sobre a UE sob a hegemonia da Alemanha.
O que está em curso na Grécia, é a retaliação sobre um povo na convicção que medidas de represália vão abafar e destruir os focos de contestação que se crescem pela UE, reforçados pelas lutas do povo grego, apesar da titubeante atitude do governo Syriza.
Não há desta vez um Mein Kempf nazi-fascista, mas não se anda tão longe como isso. Os objetivos foram claramente expressos por J-C Trichet em junho de 2011, sabendo de antemão o que iria acontecer na Grécia, em Portugal, na Espanha. Ao receber o prémio Carlos Magno em Aachen, afirmou que governos e oposição se deviam unir para implementar “programas de ajustamento” na “defesa da zona euro como um todo”. Trichet acrescentou então a seguinte ameaça: “Mas se um país mesmo assim não ficar a salvo, uma segunda fase deve ser diferente (…) dando às autoridades da zona euro uma muito maior autoridade na formação das políticas económicas se estas continuarem fora do caminho correto. (?!) Uma direta influência bem acima da vigilância reforçada que está atualmente considerada”.
Estas medidas tornar-se-iam compulsivas se os governos não as aceitassem ou não as cumprissem, “tomando as autoridades europeias as decisões aplicáveis à economia em causa”. Designadamente, sobre “as principais despesas do governo e elementos essenciais á competitividade do país”. São declarações que não representam senão um golpe de estado financeiro. [1] A questão é: onde ficam afinal a democracia e os interesses de cada povo?
Em 2012, o número dois do governo alemão defendeu que se os gregos não cumprissem os objetivos, teria de ser imposta de fora uma liderança, a partir da UE. Philipp Roesler assumiu a paternidade da ideia segundo a qual a troco de um segundo programa da troika, um comissário europeu do orçamento seria investido de funções governativas em Atenas, retirando ao governo legítimo funções essenciais. Numa entrevista ao jornal Bild, o número dois de Merkel afirmou: “Precisamos de maior liderança e monitorização relativamente à implantação das reformas. Se os gregos não estão a ser capazes de conseguir isto, então terá de haver uma liderança mais forte da UE”. [2]
É esta operação que está em marcha, confirmada aliás pelas subsequentes atitudes e declarações de outros membros do governo alemão, como Schauble, e colaboracionistas como os do governo português, que querem mais, sempre mais subordinação a Berlim. São assim impostos “programas de ajustamento” cujos objetivos enunciados são impossíveis de cumprir sem o país se auto destruir, preparando o caminho para o que Trichet enunciava e deveria ter sido desde logo entendido como uma declaração de guerra aos povos com vista à total perda da sua soberania e a subordinação aos absurdos do euro.
3 – 0,47%…
A Grécia necessitava em 30 de junho de 1,7 mil milhões de euros para entregar aos credores, não para o seu povo. Esta verba representa 0,47% do que o BCE forneceu aos bancos privados em seis meses, sem contrapartidas e a uma taxa negativa! Até ao fim do ano a Grécia necessitaria, para reciclagem de dívida, cerca de 10 mil milhões de euros: 1,4% do que o BCE se propõe entregar aos bancos privados!
Eis a realidade da “solidariedade” europeia. Durante seis meses sujeitou o povo grego ao sadismo de falsas negociações, à chantagem do BCE deixar de fornecer liquidez aos bancos gregos durante as negociações (!) contra as regras do próprio BCE. Isto para destruir qualquer veleidade do governo social-democrata grego querer apenas aligeirar a austeridade. Mas o cúmulo foi não se permitir que a Grécia reduzisse as despesas militares ou aumentasse os impostos sobre lucros acima dos 500 mil euros! Eis a boa “governança” europeia…
Ao contrário do que se disse não houve negociações dignas desse nome. O Syriza entrou como derrotado à partida, defendendo o euro e apelando à benevolência da finança, na crença de uma UE solidária e de uma Alemanha benfeitora e não apresentando qualquer alternativa anti sistêmica ao povo grego. [3]
A crise da UE não começou em 2009 (então sempre negada) mas em 2000 com a adoção do euro. O euro foi e é uma arma contra os povos, ao primeiro abanão internacional os países já fragilizados por esta moeda desmoronaram-se econômica, financeira e socialmente. Mas tudo foi preparado para isso, com base nos tratados europeus, documentos de rendição incondicional dos povos, anulando a soberania e democracia, para depois permitir a intervenção através dos “Procedimentos de Défice Excessivo”.
4 – Idolatria europeísta ou lobotomia?
Quando se ouvem os comentadores “independentes” fica-se na dúvida se sofreram alguma ablação cerebral [4] ou se se converteram a uma espécie de idolatria europeísta. Talvez apenas se tenham posto em leilão no mercado neoliberal. Falam de quê? Dizem que a Grécia não fez reformas e que não cumpriu os acordos. Porém, nunca se ouve dizer que reformas e que acordos não cumpriram e que diferenças fariam. Os propagandistas servem-se da mentira e falam por código: é o caso das “reformas”, quando mesmo em termos sociais-democratas, se trata de contra-reformas.
O debate sobre assuntos europeus está inquinado à partida. Não se pode discutir logicamente e racionalmente o que é ilógico e incongruente. [5] As “regras da UE” tornaram-se a dogmática do europeísmo. Tudo o que com toda a evidência seria vantajoso para o país e o seu povo, não pode ser pois: “temos de cumprir as regras da UE”. Assim se justificam comentadores e gente do PS, PSD, CDS face a tudo o que de perto ou de longe belisque as oligarquias e a hegemonia alemã.
Então para que servem e a quem servem essas regras? Esta questão nunca é colocada. Quando a “nova direita” – como Remy Herrera acha que se deviam chamar os “partidos socialistas” – diz querer menos austeridade não entende ou finge não entender que a austeridade não é o problema: É a solução! A solução para um capitalismo decadente que se reduziu à sua versão rentista. O problema é o capitalismo! O capitalismo não sobrevive, pelo menos em paz, sem expansão e domínio de novos mercados externos. Trata-se de dominar toda a Europa – do Atlântico aos Urais – de forma neocolonial. Por isso está também em curso a operação Ucrânia.
A seita europeísta não está preocupada com a pobreza crescente, a estagnação, a perda de democracia na UE. O que os preocupa, é que os “eurocéticos” podem ganhar apoios com esta situação. Isto é, que camadas populares e intelectuais críticas tenham voz!
A falta de razão é total. Perante o avolumar de problemas que se faziam sentir pelo menos desde o euro, os comentadores avençados propalavam que era preciso “a Europa falar a uma só voz” e acabou-se com a unanimidade na quase totalidade das questões. Os problemas aumentaram. Tivemos então a propaganda do Tratado Orçamental, “a regra de ouro”, peso de chumbo para submergir os povos. Os “europeístas” esperam à maneira dos alquimistas que o chumbo se transforme em ouro…
Depois foi a triste cena da Constituição Europeia e o remendo do Tratado de Lisboa, o mesmo chorrilho de mentiras, de fraude relativamente a compromissos eleitorais e a chantagem sobre os povos que disseram não. A propaganda europeísta atingiu aqui inusitados níveis de cinismo político num sistema democrático.
Agora os panglossianos do federalismo, mesmo perante as catástrofes em curso, acham que tudo vai pelo melhor dos mundos e dedicam-se a anestesiar a opinião pública com a união bancária e a união econômica. Quais as consequências? Na realidade, são tão credíveis agora como o foram antes com o euro e o tratado orçamental.
São os mesmos que dizem que “os alemães” não têm de pagar para gregos, portugueses, espanhóis ou italianos. Mas então que federalistas são estes?! Claro que não pagam, “os alemães” só recebem! Mas quais? A população em risco de pobreza ou exclusão social na Alemanha em 2013, era de 20,3%. (dados Eurostat) Entre 2005 e 2014, a Alemanha acumulou como diferença entre RN e PIB 574,8 mil milhões de euros: a Grécia perdeu 40,1 mil milhões, Portugal 50,7 mil milhões. [6]
Contrariamente às ilusões europeístas o sistema é incapaz de resolver os problemas provocados pela financeirização da economia a favor do rentismo e da usura. A UE que concebem e idealizaram não existe, é na realidade uma quimera, uma monstruosidade. São os monopólios e a finança que ditam a lei, fixam taxas de juro, criam moeda e se necessário nacionalizam prejuízos.
Compete às forças progressistas a luta persistente pelo esclarecimento e unidade das massas populares, para derrotar de vez a atual de degeneração social.
1. Europe’s New Road to Serfdom , Michael Hudson June 3 / 5, 2011;
2. Governo alemão confirma: Berlim quer ocupar Atenas e talvez Lisboa , 30-01-2012;
3. Acerca de negociações: lições do caso Syriza , Daniel Vaz de Carvalho,
4. O autor tratou este tema na novela “Ritual de Passagem”, em “O Triunfo de Diana e outros contos”, Chiado Editora, 2013;
5. Como cabalmente demonstra, por exemplo, Remy Herrera no seu livro “La maladie degenerative de l’economie”, que será abordado proximamente neste site;
6. Eugénio Rosa, A UE e o Euro serviram para enriquecer a Alemanha , e Grécia: um país e um povo em luta pela sua dignidade e pelo seu futuro
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/v_carvalho/grecia_07jul15.html