28 anos do assassinato do líder africano de Burkina Faso: Sankara, a dívida e o fim do terceiro mundo
Por Huáscar Sologuren / Resumen Latinoamericano / Rebelión / outubro de 2015 – Com o desgarrado grito de “liberté ou la mort” nasceu o Terceiro Mundo. Em uma insólita ilha do Caribe, os escravos negros de Saint-Domingue liderados por Toussaint Louverture e Dessalines, iniciaram uma revolução a sangue e fogo que culminou, em 1804, com a abolição da escravidão das colônias francesas, a proclamação da primeira nação ex-colonial do sul do planeta na república do Haiti e a consolidação do sentido de “negritude” como um sentimento compartilhado pelos povos oprimidos do mundo. Assim, os “jacobinos negros” iniciaram uma tendência que se estenderia pelo Caribe e América Latina. Os movimentos de libertação nacional confrontados à lógica do sistema colonial da modernidade teriam um profundo impacto na concepção da liberdade humana e da democracia.
O Terceiro Mundo como projeto político
Ainda que o número de nações libertas do férreo domínio colonial tenha aumentado pelo mundo ao longo do século XX, não foi até 1952 que o sociólogo francês Alfred Sauvy deu-lhes seu célebre nome. Em seu artigo “três mundos, um planeta.” [1] Sauvy destacava, devido ao processo de descolonização dos países africanos e do sudeste asiático, a nova presença de nações “subdesenvolvidas”, “exploradas” e a margem da nova ordem internacional regida entre a polaridade das potências capitalistas e comunistas, ou seja, entre o primeiro e o segundo mundo. A utilização por parte do sociólogo francês do termo Terceiro Mundo não foi fortuita, já que quis fazer um oportuno paralelismo com o contexto da Revolução Francesa, onde uma grande massa, o Terceiro Estado, enfrentava um minoritário poder absoluto, o Primeiro Estado. No novo contexto das relações internacionais da metade do século XX, um Terceiro Mundo enfrentando um Primeiro Mundo.
Estas novas “nações obscuras”, como chama o professor Vijay Prashad, pareciam estar condenadas às margens da história, porém graças à férrea vontade de sua população conseguiram o reconhecimento dentro da ONU com a histórica resolução da Assembleia Geral 1514(XIV) de 1960 [2] intensamente anticolonialista, que iniciava um processo descolonizador amplo e que declarava “que todos os povos têm direito à livre determinação, a determinar livremente sua condição política e perseguir livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural”.
A partir desse momento, “o Terceiro Mundo não foi um lugar. Foi um projeto”. [3] As nações libertas da África, Ásia e América Latina embarcaram em uma luta comum, que canalizariam através de organizações como G77, a UNTAC, a CEPAL e sobretudo pelo Movimento de Países não Alinhados (NOAL). Seus líderes, Nehru (Índia), Nasser (Egito), Tito (Iugoslávia), Sukarno (Indonésia), Nkrumah (Gana) e Castro (Cuba). Dos anos 60 aos 80, realizaram conferências em Bandung, Cairo, Buenos Aires, Belgrado ou Havana. Seus objetivos: o reconhecimento dos Direitos Humanos para todos os povos do mundo, a luta contra a desigualdade e a opressão entre países ricos e pobres, o reconhecimento da igual dignidade entre todos os humanos e a necessária satisfação das necessidades básicas para a vida: terra, paz e liberdade.
Parecia que as “nações obscuras” ao longo dos anos sessenta eram conscientes de si mesmas e levantaram dita consciência para iniciar sua luta dentro dos fóruns internacionais. Expresso em termos hegelianos, o Terceiro Mundo passou de ser uma consciência em si, para ser uma consciência para si. Os anos 60 e 70 foram duas décadas de grandes esperanças e vitórias, os novos povos reivindicavam seu reconhecimento dentro do mundo e votavam sistematicamente juntos na Assembleia Geral da ONU a favor de resoluções que guiassem seus povos à dignidade. Em 1979, 95 países eram membros do NOAL e depois de sua sexta conferência em Havana, como representante do NOAL, Fidel Castro pronunciou um discurso histórico no fórum da assembleia geral. [4] A mensagem era clara, as nações pobres do mundo não podem continuar tolerando “uma ordem econômica internacional especulativa que ninguém entende”, que “a troca desigual arruína nossos povos e deve parar” e que “a dívida dos países pobres são insuportáveis e não têm solução; as dívidas devem ser canceladas”. O Terceiro Mundo parecia firme em seu caminho pela conquista da dignidade.
A contrarrevolução neoliberal
Da mesma forma que no início do século XIX a Revolução Francesa teve sua contrapartida contrarrevolucionária no acervo da restauração absolutista contra a vontade do Terceiro Estado, nos anos 70 do século XX se iniciou uma contrarrevolução de voos financeiros contra a vontade do Terceiro Mundo. A crise do sistema fordista, o abandono do padrão ouro por parte da Reserva Federal dos EUA em 1971 e a impossibilidade dos estados de gerir esta inflação (produto da crise do petróleo em 1973) com políticas tradicionais de corte keynesiano criaram o caldo de cultura necessário para uma virada radical na economia internacional.
As novas estrelas do firmamento econômico, Friedman y Hayek, iluminados pelo esplendor do Nobel em economia, impulsionaram o planeta ao modelo neoliberal. A tradicional política de pleno emprego seria abandonada pela necessidade de manter baixas as taxas de juros, a IFIs (Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional) substituiriam obedientemente nos anos 80 suas políticas keynesianas pelas neoliberais e a liberalização dos mercados viria converter-se na maior das necessidades. “A revolução keynesiana passou dessa para melhor. Na história da economia, à era de John Maynard Keynes sucedeu a de Milton Friedman” [5] ou como escreveu Harvey: “O neoliberalismo surgiu como projeto político para restabelecer as condições de acumulação de capital e restaurar o poder das elites econômicas” [6]
A restauração contra o Terceiro Mundo parecia firme. As IFIs se guiariam por critérios neoliberais, cada vez mais universidade de “prestígio” se tornariam fãs dos “Chicago Boys” e os estados hegemônicos Reino Unido e EUA teriam seus mais solícitos aprendizes da “nova ordem econômica” nas figuras de Thatcher e Reagan. Esta moderna “Santa Aliança” inovaria com armas financeiras: endividamento em dólares dos países pobres através da reciclagem dos petrodólares e de empréstimos através do Banco Mundial [7] , crescimento deliberado das taxas de juros por parte da Reserva Federal [8] dos EUA e especulação com matérias primas, provocando a queda do preço desta nos mercados internacionais. A claudicação se daria em 1982: México de declararia em crise, assim como Argentina e Brasil. A crise da dívida do Terceiro Mundo explodiu. Posteriormente, seria a triste situação das Políticas de Ajuste Estrutural (PAE) do FMI e a fúnebre história das “décadas perdidas” para os povos do Sul.
“O informe da Comissão do Sul, publicado em 1990, determinou que as estratégias de ajuste estrutural da globalização impulsionada pelo FMI enfraqueceram o Terceiro Mundo como força política. A UNCTAD, o G77, o NOAL e outros fóruns e organismos internacionais desapareciam até tornarem-se insignificantes. Não ficaria em pé nenhuma força política crível que advogasse por uma abolição da dívida ou por uma estratégia de ajuda social para o planeta em seu conjunto. O Sul precisava de controle sobre o Norte e não tinha sequer a capacidade necessária para introduzir e ativar questões de interesse coletivo. “O Terceiro Mundo, por assim dizer, se dissolveu”. [9]
“Somos os herdeiros de todas as revoluções do mundo”
No caso do Terceiro Mundo como projeto político, um último eco desesperado de rebeldia se faria notar na voz de Thomas Sankara, líder revolucionário de Burkina Faso. Dentro do fórum da 25ª Conferência na Cúpula da Organização da Unidade Africana (OUA), em Addis Abeba, em 29 de julho de 1987, Sankara pronunciou um contundente discurso contra a dívida externa dos países africanos. [10] “A dívida é um mecanismo de neocolonialismo”, “os países do Terceiro Mundo não são responsáveis por suas dívidas” e “o pagamento da dívida supõe a morte dos povos do sul. Conclusão: a dívida nem deve e nem pode ser paga. Por isso, Sankara propõe à assembleia criar “o clube de Addis Abeba” frente ao “Consenso de Washington” e manifestou umas palavras que pareceram proféticas: “Se Burkina Faso se mantiver apenas repudiando a dívida, eu não estarei na conferência seguinte”. Sankara saiu apenas daquela reunião. Sankara seria assassinado dois meses depois em Burkina Faso, em 15 de outubro, devido a um traiçoeiro golpe de estado organizado por seu “companheiro de armas”, Compaoré, apoiado pelas potências ocidentais.
Fim do Terceiro Mundo? Fim da História, como assegurava Fukuyama depois da queda do Muro de Berlim, em 1989?
Não muito tempo atrás, 39ª Assembleia da ONU, de 4 de outubro de 1984, Sankara declarou sentir-se falar em nome dos “abandonados” porque nada humano lhe era estranho. De querer ser “herdeiro de todas as revoluções do Mundo”, de ter a consciência de que os povos oprimidos do planeta aprenderam com a Revolução Americana e Francesa, e de todos os processos de libertação nacional. E que, portanto, “apenas a luta liberta”. [11]
As “nações obscuras” nunca poderão ser derrotadas, porque nunca poderá ser calado de seus povos aquele remoto grito de liberdade que os “jacobinos negros” pronunciaram no nascimento do Terceiro Mundo; “liberte ou la mort!!”.
Huáscar Sologuren Plataforma Auditoría Ciudadana de la Deuda [Auditoria Cidadã da Dívida]
Notas
[1] Artigo de Sauvy: http://www.homme-
[2] Resolução 1514 (XV): http://www.un.org/es/
[3] Prashad, V. (2012) Las naciones oscuras. Una historia del Tercer Mundo. Barcelona. Ediciones Península.
[4] Discurso de Fidel Castro como representante da NOAL na 31ª seção da Assembleia Gera da ONU de 1979: https://www.youtube.com/
[5] Galbraith J.K. (1989). Historia de la economía. Barcelona. Editorial Ariel.(pg. 300)
[6] Harvey D. (2005) Breve historia del neoliberalismo. Madrid. Akal. (pg. 24).
[7] Em 1970, os Estados de renda baixa deviam às IFIs 25000 milhões de $. Em 2000, 523000 milhões. Durante essas décadas, esses países pagaram 550000 milhões em conceito de serviço da dívida sobre uns empréstimos contraídos por 5400000 milhões e ainda se continua devendo 523000 milhões. Prashad, V. (2012) (pg. 457)
[8] A Reserva Federal passou de umas taxas de juros de 2% em 1970 para 8,1% em 1981. Toussaint E. y Millet D. (2009) 60 preguntas. 60 respuestas sobre la deuda, el FMI y el Banco Mundial. Barcelona. Icaria. (pg. 77)
[9] Prashad, V. (2012)(pg. 259)
[10] http://cadtm.org/
[11] Discurso em francês: https://www.youtube.
Vídeo 1: https://www.youtube.com/watch?
Vídeo 2: https://www.youtube.com/watch?
Tradução: Partido Comunista Brasileiro (PCB)