Leocadia Prestes, a mãe coragem
HOMENAGEM Para o Dia Internacional da Mulher, trazemos o exemplo desta mulher que, aos 60 anos de idade, aderiu, conscientemente, às ideias marxistas.
Leocádia Prestes – mãe coragem
Lygia Prestes
Leocádia Felizardo Prestes nasceu no dia 11 de maio de 1874, em Porto Alegre, Estado do Rio Grande do Sul.
Seu pai, Joaquim José Felizardo, abastado comerciante, foi um homem culto, de idéias liberais, partidário da Abolição e da República. Sua mãe, Ermelinda Ferreira de Almeida, descendia da aristocracia portuguesa. Contudo, era pessoa de idéias abertas e partilhava plenamente os ideais de justiça social de seu marido.
Dotada de caráter enérgico e independente, Leocádia Prestes destacou-se, desde cedo, das jovens da sua classe social. Educada segundo os moldes tradicionais da época, falava vários idiomas, era exímia pianista, estudou pintura, canto, declamação. No entanto, tais predicados, que lhe permitiam brilhar nos salões, não lhe bastavam. Ela gostaria de desenvolver alguma atividade útil e, ainda adolescente, manifestou o desejo de ser professora pública, o que evidentemente não pôde ser concretizado devido aos preconceitos sociais. A política e os problemas sociais a interessavam muito, pelo que era leitora apaixonada dos jornais da Corte, fato inusitado entre as moças de seu tempo.
Em 1896, casou-se com o capitão Antônio Pereira Prestes, engenheiro militar, que havia sido aluno de Benjamim Constant, na Escola Militar da Praia Vermelha, e participara, ainda cadete, da proclamação da República, no Campo de Santana. Era um homem de vasta cultura, partidário do Positivismo, que era a corrente filosófica mais progressista no Brasil, no fim do século XIX.
O convívio com o marido muito contribuiu para que Leocádia Prestes ampliasse sua cultura geral e aprofundasse ainda mais o seu interesse pela política e pelas questões sociais. Anos mais tarde, ela contaria aos filhos a ansiedade com que ela e o marido viveram episódios como a Guerra de Canudos ou o célebre Caso Dreyfus, na França, que comoveu todos os setores progressistas, na passagem do século.
A morte prematura do marido deixou-a em situação muito precária. A exígua pensão não era suficiente para o sustento dos filhos. O caminho mais fácil teria sido arrimar-se a algum parente rico. Ela preferiu, porém, conservar a sua independência e partira para a luta.
Começou a dar aulas de idiomas e de música, trabalhou de modista, foi balconista e até costuras fez para o Arsenal de Marinha. Finalmente, em 1915, conseguiu ser nomeada professora da Escola Pública, como coadjuvante do ensino primário, cargo que exerceu até 1930. Trabalhava à noite, nos cursos noturnos destinados a comerciários, operários e domésticas.
Era um trabalho muito pesado, pois tais cursos funcionavam em escolas dos subúrbios do Rio, longe da condução, freqüentemente no alto dos morros. Pela primeira vez em sua vida, ela pôde ter um maior contato com as camadas mais pobres da sociedade e isso aguçou ainda mais a sua revolta contra as injustiças sociais. Em pouco tempo, tornou-se muito estimada pelas alunas, pois era uma das poucas professoras, naquele tempo, que não admitiam discriminações, tratando da mesma forma a comerciária bem arrumada e a cozinheira de roupa surrada ou a operária de tamancos. Com sua atitude, ela procurava transmitir a seus alunos, além dos conhecimentos elementares, noções de justiça social, de igualdade e dignidade humana.
Aliás, ao educar os filhos, sua grande preocupação foi sempre a de incutir-lhes o amor ao trabalho e o sentimento do dever cívico. Procurou sempre mostrar-lhes os aspectos negativos da vida, ensinando-lhes a enfrentar com altivez a violência e as arbitrariedades dos poderosos e a jamais curvar-se ante as injustiças. Dotada de grande sensibilidade artística, procurou sempre transmitir aos filhos o seu amor à natureza e a sua admiração por tudo que é belo e elevado. Uma sonata de Beethoven ou um belo poema, um pôr do sol ou o desabrochar de uma flor, a emocionavam igual-mente.
A árdua luta pela sobrevivência não fez diminuir seu interesse pelo que ocorria na sociedade e no mundo. Mesmo nos momentos mais difíceis, em sua casa podia faltar pão, mas nunca faltou pelo menos um jornal diário, para acompanhar os acontecimentos políticos, que discutia e comentava com os filhos. Assim, em 1910, empolgou-se com a Campanha Civilista de Rui Barbosa e fazia questão de comparecer aos comícios, levando consigo o filho mais velho, Luiz Carlos, que contava apenas doze anos de idade, para que ouvisse a pregação cívica do mestre baiano.
Por isso mesmo, em 1922, quando seu filho Luiz Carlos, já oficial do Exército, começa a participar da política, atuando na preparação (do primeiro Cinco de Julho), ela lhe deu todo o apoio, incentivando-o inclusive a continuar a luta, após a derrota do movimento.
Em 29 de outubro de 1924, ocorreu o levante de Santo Ângelo, liderado por Luiz Carlos Prestes, dando início à grande marcha através do Brasil que duraria até fevereiro de 1927. Foram anos muito duros para as famílias dos participantes da Coluna. As únicas notícias que recebiam eram as fornecidas pelo governo, sempre as piores possíveis: a Coluna teria sido dizimada, seus chefes exterminados… Mais de uma vez os jornais do Rio abriram manchetes escandalosas anunciando a morte de Prestes e de seus companheiros.
Leocádia Prestes, mesmo sabendo que a vida do filho corria permanente perigo, nunca perdeu a coragem e a confiança no filho. Jamais alguém a viu chorar. Para que não houvesse dúvidas sobre o seu apoio integral às idéias do filho, ela trazia sempre ao peito, bem visível, um grande medalhão com o retrato dele. Sua firmeza impressionava a todos que a conheciam. Em pouco tempo, sua casa tornou-se a Meca das famílias dos outros revolucionários, que a procuravam em busca de alento e consolo.
Com a suspensão da censura à imprensa, em 1927, os feitos heróicos da Coluna tornaram-se conhecidos do povo brasileiro, comovendo o país. Luiz Carlos Prestes passou a ser considerado herói nacional – o Cavaleiro da Esperança – e Leocádia Prestes era a Mãe de todos os brasileiros. Sua modesta casa de subúrbio fervilhava de amigos, admiradores e políticos de todos os matizes.
Em 1930, um grupo de políticos, encabeçado por Getúlio Vargas, aproveitando o prestígio de Luiz Carlos Prestes e do movimento Tenentista, organizou um golpe de Estado. Os tenentes, antigos participantes da Coluna, deixaram-se iludir e aderiram em massa ao Movimento de 30. Luiz Carlos Prestes, convidado, recusou-se a participar, por considerar que o Movimento não traria nenhum benefício ao povo brasileiro. Em maio de 1930, lançou um manifesto, denunciando o golpe que se preparava e pregando uma revolução verdadeiramente popular, agrária e antiimperialista. O manifesto, qualificado de comunista, caiu no Brasil como uma bomba. Como num passe de mágica, todos os admiradores e políticos abandonaram a casa de Leocádia Prestes. Em público, viravam-lhe as costas. Ela reagia com altivez, reiterando a sua solidariedade ao filho querido.
Meses mais tarde, convencida de que o filho não poderia retornar ao Brasil tão cedo, ela, mais uma vez, demonstrou toda sua coragem: licenciou-se do emprego, liquidou a casa e, acompanhada das quatro filhas, partiu para a Argentina, para ficar ao lado do filho. Iniciava-se, então, um longo exílio do qual ela não retornaria à pátria.
Em Buenos Aires, onde se radicaram, a vida foi extremamente difícil. Com a crise dos anos 30, era impossível conseguir trabalho. Poucos dias após a chegada da família, Prestes foi preso, ameaçado pela polícia argentina, sendo obrigado a asilar-se em Montevidéu. Com isso, perdeu o emprego. Leocádia Prestes permaneceu em Buenos Aires, com as filhas, lutando como podiam para sobreviverem. Foi nesse período que elas e as filhas se aproximam do marxismo.
Em 1931, Luiz Carlos Prestes foi convidado pelo governo soviético para trabalhar como engenheiro no Primeiro Plano Qüinqüenal. Sua família, mais uma vez, não vacilou em acompanhá-lo, decidindo seguir com ele para a União Soviética. Às pessoas que se surpreenderiam com a sua decisão, Leocádia Prestes dizia: “se meu filho seguiu este caminho, este é o caminho certo”.
Contudo, seu primeiro contato com a sociedade socialista não foi fácil. Arrasada por duas guerras, a União Soviética atravessava enormes dificuldades. Faltava tudo. Para uma senhora de quase sessenta anos, de origem aristocrática e que havia passado toda a sua vida sob outro regime, a realidade soviética suscitava muitas dúvidas. Seu espírito de justiça, porém, ajudou-a a superar as incompreensões. Pouco a pouco, ela foi compreendendo a causa das dificuldades e a grandeza da luta e dos sacrifícios do povo soviético. O entusiasmo do povo a contagiava. Muito contribuiu também para a sua formação política o processo de Leipzig, em 1934, contra o revolucionário búlgaro George Dimitrov, cuja firmeza revolucionária perante o tribunal nazista a impressionou profundamente. Aos sessenta anos de idade, ela aderia, conscientemente, às idéias marxistas.
Em agosto de 1934, Luiz Carlos Prestes foi finalmente aceito no Partido Comunista, terminando assim sua longa e penosa trajetória do tenentismo ao marxismo. E, a 29 de dezembro do mesmo ano, partia para o Brasil, para a luta clandestina.
Iniciou-se, então, para Leocádia Prestes, um longo período de grande sofrimento. Se, por um lado, apoiava integralmente o caminho seguido pelo filho, por outro lado, só a idéia de perdê-lo a fazia sofrer intensamente. Ela não duvidava de que, se o filho fosse preso, seria morto. Contudo, procurava manter-se firme. Foi nessa época que, buscando uma forma de participar da luta, resolveu aprender datilografia a fim de ajudar na cópia e tradução de documentos.
Em 5 de março de 1936, Luiz Carlos Prestes foi preso no Rio de Janeiro, junto com sua companheira Olga Benário. Graças à coragem de Olga, que o protegeu com seu corpo, não conseguiram matá-lo no ato da prisão. Mas a sua vida corria perigo iminente. A qualquer momento, poderiam “suicidá-lo” na prisão, como era costume na época. Foi decidido, então, levantar uma campanha internacional em defesa da vida de Prestes e de todos os presos no Brasil. E Leocádia Prestes foi escolhida para encabeçar essa campanha.
Aquela foi a sua primeira missão política. Tarefa difícil para uma senhora de sessenta e dois anos que havia sido, até então, apenas mãe de família e, quando muito, professora de subúrbio. Contudo, ela não desanimou. Acompanhada de sua filha Lygia, partiu de Moscou, em fins de março de 1936, dando início à campanha.
Foram vários anos de árduo trabalho. Eram comícios, conferências de imprensa, visitas a jornais e sindicatos, a partidos políticos, parlamentos ou a chefes de governos. Viagens freqüentes e demoradas. Era um trabalho extenuante para uma pessoa de sua idade.
Com sua filha, ela percorreu os principais países europeus, denunciando o terror desencadeado no Brasil, o perigo de morte para os presos políticos e pedindo solidariedade e apoio para a sua luta. Em pouco tempo, a campanha se estendeu aos outros continentes. Comitês de defesa de Prestes foram criados nos Estados Unidos, na América Latina, na Austrália e na Nova Zelândia. Do mundo inteiro, o governo brasileiro era bombardeado com milhares de cartas, telegramas de protesto, manifestos de toda a sorte, exigindo a libertação de Prestes e de seus companheiros ou, pelo menos, o respeito às suas vidas.
Em fins de 1936, com a extradição de Olga Benário para a Alemanha nazista, a campanha se duplica. Surge uma campanha paralela, destinada a salvar a vida de Olga e do bebê que estava para nascer. Leocádia Prestes e sua filha vão a Genebra pedir a ajuda da Sociedade das Nações e da Cruz Vermelha Internacional. Graças às gestões, foi possível receber, já em 1937, algumas notícias de Olga e de sua filhinha, Anita Leocádia, nascida em 27 de novembro de 1936.
Três vezes Leocádia Prestes foi com sua filha à Alemanha, enfrentar a Gestapo e exigir a libertação de Olga e da criança.
Delegações de vários países foram também a Berlim, com o mesmo objetivo. Malgrado todos os esforços, não foi possível salvar Olga. O mais que se obteve foi a libertação da pequena Anita Leocádia, em janeiro de 1938, e a vaga promessa da Gestapo de que Olga seria libertada um pouco mais adiante. Ao contrário disso, Olga foi enviada a um campo de concentração, em Ravensbrück, e assassinada em abril de 1942.
Ante a iminência da guerra, Leocádia Prestes vê-se forçada a deixar a Europa. Com a filha e a neta, parte para o México, cujo presidente, General Lázaro Cárdenas, concedera-lhes asilo. Foi um golpe muito duro, pois ela bem compreendia que a mudança para o México tornaria muito mais difícil qualquer ajuda à nora querida.
No México, a campanha prosseguiu, já então limitada às Américas, pois o resto do mundo estava convulsionado pela guerra. Com a guerra, Leocádia Prestes perde o contato com Olga e também com as outras filhas que haviam ficado em Moscou. Além da sorte do filho, na prisão, preocupa-a agora também a situação dos seus outros entes queridos, ameaçados pelas bombas nazistas. Contudo, a coragem e a fé na vitória final não a abandonaram jamais. Quando as hordas nazistas avançavam pela União Soviética, ela costumava dizer aos amigos assustados: “Vocês não conhecem aquele povo! Quem passou tantas privações e sofrimentos para construir o socialismo em seu país, não vai fraquejar agora. Eles são invencíveis!”
Leocádia Prestes não teve a alegria de assistir à vitória final dos povos sobre o nazismo nem a libertação dos presos políticos, no Brasil, em 1945. Após longa e penosa enfermidade, ela veio a falecer no México, no dia 14 de junho de 1943.
Sua morte comoveu o povo mexicano, que a admirava muito. Ao velório, no salão nobre do Sindicato dos Empregados em Hotéis, no centro da cidade do México, compareceram milhares de pessoas, inclusive numerosos estrangeiros, fugidos do nazismo e também asilados no México. Todos os ministros de Estado estiveram presentes, com seus auxiliares , a começar pelo general Cárdenas, na época Ministro da Defesa, no Governo de Ávila Camacho. O general Cárdenas tomou a iniciativa de dirigir-se pessoalmente a Getúlio Vargas, pedindo-lhe que permitisse a Prestes vir ao México despedir-se de sua mãe. Propunha enviar um avião militar mexicano para trazer o prisioneiro e oferecia-se, inclusive, como refém, como garantia de que Prestes voltaria à prisão. Getúlio sequer respondeu. Quatro dias e quatro noites o povo aguardou a resposta, em respeitosa vigília.
No dia 18 de junho de 1943, realizou-se o enterro, que se transformou em uma verdadeira manifestação popular. O cortejo atravessou toda a cidade a pé, até as colinas de Tacubaya, onde ficava o cemitério. O caixão, coberto pela bandeira brasileira, foi levado em ombros e cercado por uma guarda de honra que levava as bandeiras de todas as Nações Unidas que, naquele momento, travavam a luta contra o nazismo. À beira da sepultura, vários oradores se fizeram ouvir, inclusive representantes de outros países latino-americanos, como Cuba, Uruguai, Chile e, também, de países europeus, principalmente alemães e espanhóis. O grande poeta chileno Pablo Neruda leu o seu Poema Dura Elegia, escrito especialmente para aquele triste momento, no qual ele define a importância da vida de Leocádia Prestes com estas singelas palavras: “Señora, hiciste grande, más grande, a nuestra América…”.
Extraído de:
PCB: 80 anos de luta. H. ROEDEL, AQUINO, F. VIEIRA, L. B. NAEGELI, L. MARTINS. Rio de Janeiro, Fundação Dinarco Reis, 2002.
Fonte: Brasil de Fato