100 ANOS DE JOÃO SALDANHA, O COMUNISTA QUE O POVO CONSAGROU
João Alves de Saldanha nasceu na cidade de Alegrete, Rio Grande do Sul, em 03 de julho de 1917, alguns meses antes de acontecer na Rússia a Revolução Bolchevique, evento que mudou a história da humanidade e influenciou diretamente a vida deste incrível personagem que foi o “João Sem Medo”. Filho do advogado Gaspar Saldanha e de Jenny Jobim, nasceu numa família envolvida nas lutas políticas gaúchas: o avô João Alves Saldanha, de quem herdou o nome, rico fazendeiro de Livramento, investiu a fortuna que tinha na Revolução Federalista, e o pai continuou a saga dos rebeldes maragatos dos lenços vermelhos. Por causa dos conflitos no Estado, a família Saldanha foi obrigada a se exilar no Uruguai em 1923.
Gaspar Saldanha, mulher e filhos (João teve quatro irmãos: Maria, Aristides, Ione e Elza) retornaram ao Brasil em 1924, residência em Curitiba, onde João começou a se ligar a uma das maiores paixões de sua vida: o futebol. Jogava pelada nos campinhos e passou a integrar o escrete dos Filhotes do Atlético (Paranaense). O pai emprestou o prestígio dos maragatos a Getúlio Vargas, que chegava ao governo do Rio Grande do Sul, já exercendo uma liderança regional. Com a chamada Revolução de 1930, Gaspar mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, acompanhando seu líder político.
No Rio, João adotou o Botafogo como clube do coração, pois, na época, o time estava coalhado de craques gaúchos. Adolescente, jogava futebol de praia, despertava o interesse das jovens cariocas e estudava no Colégio Pedro II. Jogando pelo Botafogo, foi campeão juvenil carioca, aos quinze anos, em companhia de Heleno de Freitas. Em 1935, João entrou para o curso de Direito da Universidade do Distrito Federal (atual UERJ), no Largo da Carioca, onde conheceu os universitários comunistas e a eles se ligou. Assinou a ficha do PCB e, com a repressão desencadeada por Vargas após o Levante Comunista de 1935, acabou expulso com outros colegas da universidade, após enfrentar, com socos e pontapés, a polícia que invadira o prédio da Faculdade de Direito.
João foi recrutado para a célula do Partido em Copacabana, passando a cumprir várias tarefas, dentre as quais a mais importante foi servir como mensageiro do Partido em missões na Europa e nas Américas, para denunciar as prisões e torturas do Estado Novo. Aproveitava muitas das viagens acontecidas por causa do futebol para exercer esta atividade.
Em 1942, casou-se com Hilda, com quem teve as filhas Vera e Sonia. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, passou um tempo em Paris para estudar em cursos de marxismo-leninismo e viajou pela Europa Oriental como correspondente de uma agência de notícias que fazia reportagens sobre os campos de extermínio nazistas. De volta ao Rio, foi trabalhar na Folha do Povo, que integrava a rede de jornais do Partido Comunista e era dirigida por Aydano do Couto Ferraz. Nesse mesmo período assumiu a secretaria geral da União da Juventude Comunista (UJC), atuando ao lado de Apolônio de Carvalho, então presidente da entidade. João era responsável pela área de cultura e eventos, como seminários, debates, torneios esportivos e festas, organizados para divulgar as ideias do PCB e recrutar novos militantes para a Juventude e o Partido. Em seguida, foi conduzido à presidência da UJC, já na clandestinidade imposta pelo governo de Eurico Dutra, em tempos de Guerra Fria. A União da Juventude Comunista, espelhando seu dirigente máximo, tornou-se mais aguerrida, indo às ruas, faculdades e escolas. João foi preso em 03 de agosto de 1947, no Largo do Machado, onde promovia “comício de propaganda comunista”, segundo ficha do DOPS.
Em meio ao clima de “caça às bruxas”, João seguiu participando das atividades partidárias, como responsável pela UJC, a exemplo do I Congresso Brasileiro de Defesa da Paz e da Cultura, em 1949, na sede da UNE, no Flamengo, invadido pela polícia comandada por Cecil Bohrer. João foi ferido a bala, teve seu apartamento arrombado e destruído pelos policiais e foi condenado a seis anos de cadeia, sem direito a julgamento. Com receio de que ele fosse assassinado, o PCB resolveu enviá-lo para São Paulo, onde participou da campanha do “Petróleo é Nosso”. Após ser novamente preso, decidiu partir para a Europa, em fins de 1949. Frequentou cursos de formação política em Praga e Moscou, visitou a China a convite da Federação Mundial da Juventude Democrática, para participar dos festejos do primeiro aniversário da Revolução Socialista.
Regressou ao Brasil em 1950, quando foi designado pelo Comitê Central para a tarefa mais árdua de sua vida: dar assistência aos militantes do PCB que dirigiam a luta dos camponeses pela terra em Porecatu, no norte do Paraná. Grandes grileiros agiram com violência, através de jagunços, pistoleiros e o apoio da polícia do governador, para expulsar dali os posseiros, o que provocou a resistência armada dos camponeses. Entre as lideranças do movimento estava Hilário Pinha, militante do PCB, que solicitou a ajuda da direção nacional do Partido. João Saldanha foi morar em Londrina e, além de dar assistência política aos revoltosos, levava dinheiro arrecadado pela rede de solidariedade ao movimento e organizava cursos de formação de quadros para os camponeses. A atuação de João também foi fundamental para a conquista de uma saída negociada do conflito com o Governo do Estado, após meses de intensos combates com os jagunços e as forças policiais. Ao final, graças ao movimento, entre 1.500 e 1.800 famílias receberam terras.
No ano de 1953, João assumiu outra tarefa de peso: responsável pela ligação do Partido no Estado de São Paulo com as bases sindicais, teve presença destacada na coordenação das ações dos comunistas junto à Greve dos 300 Mil, histórico movimento iniciado com a Passeata da Panela Vazia em 18 de março daquele ano, quando 60 mil trabalhadores foram às ruas em protesto contra a carestia. Foram 29 dias de greve que deixaram São Paulo sem transporte e sem fábricas funcionando, ao paralisar 270 empresas. O movimento sindical saiu fortalecido do movimento, e o PCB reconquistava a influência junto aos operários e sindicalistas, após o período de intensa repressão sofrida com a onda anticomunista. Também começava a superar os equívocos da linha esquerdista fomentada pelo Manifesto de Agosto de 1950.
Já casado com a segunda esposa, Ruth, com quem teria os filhos Ruthinha e João Viotti, Saldanha foi convidado pelo Botafogo a ser o novo técnico do time em 1957. Foi campeão carioca com a ajuda dos craques Garrincha, Didi e Nilton Santos. Em 1959, deixou a função e começou a trabalhar como comentarista esportivo de rádio, profissão que o consagraria. Começou na Rádio Nacional, depois foi para a Rádio Guanabara, ao mesmo tempo em que passava a escrever para o jornal Última Hora e integrava a mesa redonda da Grande Revista Esportiva Facit, na TV Rio, Canal 13, juntamente com Luiz Mendes, Nélson Rodrigues e Armando Nogueira. Com o golpe de 1964, foi proibido de continuar usando o microfone da Rádio Nacional e conseguiu emprego na Continental, mas no primeiro comentário meteu o cacete nos militares e teve de sumir por uns tempos.
Em 1966, foi contratado pela TV Globo, juntamente com o grupo da Revista Facit. Com sua linguagem direta e simples, dizendo na lata o que pensava, João conquistou o público de rádio, jornal e televisão e ficou conhecido como “o comentarista que o Brasil consagrou”. Trabalhou na Rádio Globo, Rádio Tupi e Jornal do Brasil, nunca tendo abandonado o jeito crítico, objetivo e bem-humorado de comentar as partidas de futebol e sempre aproveitando os espaços para dar seus pitacos políticos.
Casado com Thereza Bulhões e com o prestígio adquirido como comentarista, em 1969 foi convidado por João Havelange a assumir a direção técnica da Seleção Brasileira, para reconquistar a confiança e o apoio popular após o fiasco de 1966. Montou a base da Seleção que conquistaria a Copa de 1970, com os jogadores que ficaram conhecidos como “as Feras do Saldanha”. As divergências com os militares que comandavam o esporte e tentaram interferir diretamente no seu trabalho, além do fato de que jamais deixara de fazer suas críticas à organização do futebol brasileiro, aos cartolas e à própria ditadura, o fizeram perder o cargo alguns meses depois que o general Médici chegou à presidência. A conjuntura de avanço da repressão sobre aqueles que resistiam ao regime, com ampliação da censura, das perseguições, torturas e assassinatos, fez também crescer as pressões daqueles que não admitiam a presença de um comunista à frente da Seleção Brasileira, especialmente quando o time se acertava e caía nas graças do povo.
Com o fim da ditadura e após o quarto casamento, com Maria Sylvia, João protagonizou marcante experiência eleitoral vivenciada pelo PCB na década de 1980: compôs, na condição de candidato a vice-prefeito, a chapa com Marcello Cerqueira (PSB) à Prefeitura do Rio de Janeiro, no ano de 1985. Era uma frente eleitoral de esquerda, uma tática adotada pelo Comitê Municipal do PCB Rio, que desafinava da orientação nacional do Partido, a qual priorizava alianças com os partidos burgueses, na linha da chamada Frente Democrática, opção desastrosa que, consolidada nas eleições de 1986, faria o PCB perder, progressivamente, a influência política junto aos setores operários e populares. A campanha da chapa Marcelo-João (PSB-PCB) empolgou a militância comunista e socialista do Rio, que foi pra rua com as bandeiras vermelhas, cativando parcela significativa do eleitorado de esquerda. Apesar da saúde muito debilitada por causa do enfisema pulmonar que acabaria levando-o à morte anos depois, João participou de palestras, debates, entrevistas, caminhadas. A Frente Rio conquistou o quarto lugar na disputa, obtendo 188.088 votos, quase 7% do total.
O quinto casamento aconteceu depois das eleições, com a mineira Heloísa. João Saldanha faleceu em 12 de julho de 1990, em Roma, onde fez questão de estar para acompanhar, a trabalho pela TV Manchete, a Copa do Mundo na Itália. O sepultamento no cemitério São João Batista, no Rio, foi marcado pela emoção e a presença de amigos e camaradas, que cantaram o Hino do Botafogo e gritaram: “Força, ação, aqui é o Partidão”! O Brasil perdia o comentarista esportivo que revolucionou a análise das partidas de futebol, o colunista que escrevia sem rodeios e era entendido por todos, o militante que não recusava tarefas, o comunista íntegro e verdadeiro. Mas, como diria o João Sem Medo, “vida que segue”!
No dia 17 de abril de 2015, no Salão Nobre do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, na abertura do VII Congresso da União da Juventude Comunista (UJC), um dos momentos de maior emoção do evento foi a entrega da Medalha Dinarco Reis em memória de João Saldanha, que, em sua juventude, teve destacado papel na organização nacional da UJC, assumindo a presidência da entidade em 1948. A homenagem contou com a presença do célebre jogador Afonsinho, que lembrou a convivência com João no Botafogo e nas batalhas políticas, e de Thereza Bulhões, que recebeu a medalha na condição de ex-esposa do nosso querido camarada e proferiu discurso exaltando a importância da Juventude Comunista nas lutas contemporâneas.
(Fundação Dinarco Reis)