St. Louis, como matar a cotovia
António Santos*
O texto de António Santos que hoje publicamos reafirma o que nunca e demais repetir: a luta contra o racismo é uma das formas assumida pela luta de classes; os tribunais são um dos principais instrumentos de repressão do Estado ao serviço da classe dominante.
De fato, «onde não há justiça não pode haver paz», e não é pela submissão mas pela luta constante e crescente que os povos conquistarão a justiça e a paz.
«Nos nossos tribunais, quando é a palavra de um homem branco contra a palavra de um homem negro, o homem banco ganha sempre». Sessenta anos depois, um tribunal de St. Louis, no Missouri, confirma a sentença de Lee Harper em Mataram a Cotovia. De pouco valeu a gravação em que o agente Jason Stockley previne a esquadra da intenção de matar o suspeito. De pouco valeu o vídeo, em que se pode ver o policial colocar um revólver nas mãos inertes de Anthony Lamar Smith, 24 anos, desarmado e cravejado de balas. O tribunal absolveu o policial branco. Mais uma vez.
Agora, as avenidas de St. Louis, Kansas City, Springfield, Columbia e muitas mais cidades do Missouri enchem-se de gente. Dezenas de protestos de gestação quase espontânea despontaram, desde o final da semana passada, quando foi conhecida a decisão do tribunal, em escolas secundárias, universidades, edifícios públicos e fábricas.
De quem são estas ruas?
Desempenhando o mesmo serviço à classe dominante que qualquer outra força policial em qualquer outro Estado capitalista, a polícia dos EUA assume características singulares. Perante uma manifestação pacífica de milhares de pessoas em St. Louis, no domingo, que gritavam «as vidas dos negros importam», a polícia de intervenção, militarizada com equipamento de guerra, respondia, em coro: «de quem são as ruas? As ruas são nossas». Poucas horas mais tarde, a polícia de choque, sob a proteção militar da Guarda Nacional, punha em marcha o kettling, uma tática para cercar e deter grandes grupos de pessoas. Entre os quase 150 detidos, contam-se jornalistas, observadores legais e paramédicos.
As vitrines partidas na sequência da carga policial mereceram a condenação do partido bicéfalo democrato-republicano.
A uma só voz, o governador republicano Eric Greitens e a autarca democrata de St. Louis, Lyda Krewson, agradeceram à polícia «os serviços prestados à cidade», condenaram a «violência inaceitável» e pediram «paz para sarar as feridas».
Em St. Louis, o salário médio anual de um trabalhador afro-americano é, em média, metade do rendimento de um trabalhador branco. No ano passado, só nesta cidade, 36 negros foram mortos pela polícia: mais de um por mês.
É caso para perguntar: que paz é esta, em que alguns vivem enquanto outros morrem e que se perturba quando se pede justiça?
Onde não há justiça não pode haver paz.
Este texto foi publicado no Avante nº 2.286 de 21 de setembro de 2017.
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