Independência e autodeterminação

imagemArmas para a construção do império ou para a libertação nacional?

por James Petras

Desde a II Guerra Mundial a maior parte dos conflitos do mundo tem girado em torno de lutas pela independência contra regimes coloniais/imperiais do ocidente e do Japão.

A seguir à independência formal foi imposto um novo tipo de dominação imperial – regimes neocoloniais, nos quais os EUA e seus aliados europeus impuseram governantes vassalos como mandatários (proxies) para a exploração econômica. Com a ascensão da dominação global unipolar dos EUA, a seguir à morte da URSS (1990), o ocidente estabeleceu a sua hegemonia sobre os estados da Europa do Leste. Alguns foram sujeitos à fragmentação e subdivididos em novos micro-estados dominados pela NATO.

A busca de um império unipolar pôs em movimento uma série de guerras e conflitos étnicos no Médio Oriente, Europa do Leste, Balcãs, Estados bálticos, África do Norte, Ásia e Europa Ocidental – levando a limpezas étnicas e a crises globais de refugiados em massa.

A ruptura de estados-nação propagou-se através do globo quando a retórica e a política da autodeterminação substituiu a luta de classe como o critério principal para a justiça social e a liberdade política.

Grande parte dos primeiros proponentes da construção do império adotaram as táticas de dividir e conquistar adversários – sob o pretexto liberal de promover a autodeterminação, sem clarificar quem e o que o “auto” representava e quem realmente beneficiava .

Identidades seccionais, regionais, culturais e étnicas serviam para polarizar lutas. Em contraste, regimes centrais combatiam pela retenção da unidade nacional a fim de reprimir revoltas regionais.

O objetivo deste documento é analisar e discutir as forças nacionais e internacionais por trás dos slogans da “autodeterminação” e as consequências internacionais e regionais mais vastas.

Conceitos básicos: ambiguidades e clarificação

Um dos aspectos gritantes do processo de globalização e desenvolvimento nacional é o “desenvolvimento desigual e combinado” (DDC). Este assume formas diversas – desenvolvimento desigual entre regiões, dentro e entre países e, muitas vezes, ambos.

Países imperiais concentram indústrias, comércio e banca ao passo que países colonizados/neocolonizados são relegados ao funcionamento ligado a exportações, enclaves na base de recursos e fábricas de montagem com baixos salários. Frequentemente, as capitais de países colonizados e descolonizados concentram e centralizam o poder político, a riqueza, a infraestrutura, o transporte e as finanças enquanto as suas províncias ficam reduzidas a providenciar matérias-primas e trabalho barato pelo povo sujeitado. Raramente o poder político e a administração – incluindo os militares, polícias e agências cobradoras de impostos – estão concentrados em cidades centrais não produtivas, enquanto as regiões produtoras de riqueza, mas politicamente mais fracas, são exploradas economicamente, marginalizadas e esgotadas.

O desenvolvimento desigual e combinado nos níveis internacional e nacional levaram a lutas de classe, anti-imperialistas e regionais. Onde as lutas com base em classe foram enfraquecidas, movimentos nacionalistas e líderes étnicos assumiram a liderança política.

O “nacionalismo”, contudo, tem duas faces diametralmente opostas: numa versão ocidentalizada apoia a atuação de movimentos regionais para degradar regimes anti-imperialistas a fim de subordinar todo o país aos ditames de uma potência imperial. Num contexto diferente, vastas forças nacionalistas laicas lutam pela independência política através da derrota de forças imperiais e dos seus apaniguados locais, os quais frequentemente são senhores locais pertencentes a minorias étnicas ou religiosas arrecadoras de rendas.

Estados imperiais sempre tiveram um entendimento claro da natureza das diferentes espécies de “nacionalismo” e a quais interesses serviam. Estados imperiais apoiam regimes e movimentos regionais e/ou “nacionalistas” que minarão movimentos, regimes e regiões anti-imperiais. Eles sempre se opõem a movimentos “nacionalistas” com forte liderança da classe trabalhadora.

Experiência histórica

A Pérfida Albion, o Reino Unido, massacrou e esfaimou milhões de pessoas que resistiram ao seu domínio na Ásia (Índia, Birmânia, Malásia e China), África (África do Sul, Quênia, Nigéria, etc) e Europa (Irlanda).

Ao mesmo tempo, imperialistas britânicos promoveram conflitos regionais armando muçulmanos para combater hindus, siques para combater muçulmanos, gurkas para oprimir malaios e criaram vários grupos religiosos, étnicos e linguísticos beligerantes no subcontinente indiano, na Birmânia e Malásia. Do mesmo modo, o Reino Unido promoveu conflitos entre grupos religiosos, nacionalistas laicos e conservadores por todo o Médio Oriente.

As potências imperiais operam naturalmente através da estratégia de “dividir e conquistar”, etiquetando seus adversários como “atrasados” e “autoritários” enquanto louvam seus apaniguados como “combatentes da liberdade” que afirmam estar a fazer uma “transição para valores democráticos ocidentais”.

Contudo, a questão estratégica é como os estados imperiais definem a espécie de autodeterminação a apoiar ou a reprimir e quando mudar as suas políticas. Os aliados de hoje são chamados de “democratas” na imprensa ocidental e amanhã podem ser redesignados como “inimigos da liberdade” e “autoritários”, se actuarem contra interesses imperiais.

As duas faces da autodeterminação

Em contraste à prática imperial de comutar políticas em relação a regimes dominantes e movimentos separatistas, a maior parte da “esquerda” apoia amplamente todos os movimentos pela autodeterminação e classifica todos os oponentes como “opressores”.

Em consequência, a esquerda e os regimes imperialistas podem acabar do mesmo lado numa campanha maciça de “mudança de regime!”.

A esquerda libertária encobre o seu próprio falso “idealismo” ao etiquetar as potências imperiais como “hipócritas” e utilizar um “padrão duplo”. Isto é uma acusação risível, uma vez que o princípio condutor por trás de uma decisão imperial de apoiar ou rejeitar a “autodeterminação” baseia-se em interesses de classe e imperiais. Por outras palavras, quando a “autodeterminação” beneficia o império, ela recebe pleno apoio. Não há abstrações históricas, preceitos morais, destituídos de conteúdo de classe e imperial determinando a política.

Estudos de caso: Os mitos dos “micro-estados curdos” e da “libertação da Ucrânia”

No século XX, os cidadãos curdos do Iraque, Turquia, Síria e Irã fizeram reivindicações de “autodeterminação” e combateram contra estados-nação estabelecidos em nome da “libertação étnica”.

Mas quem define o verdadeiro “ser” (real “self”) a ser libertado?

No caso do Iraque na década de 1990, os curdos foram patrocinados, armados, financiados e defendidos pelos EUA e Israel a fim de enfraquecer e dividir a república laica e nacionalista do Iraque. Os curdos, mais uma vez com apoio dos EUA, organizaram conflitos regionais na Turquia e, mais recentemente, na Síria a fim de derrotar o governo independente de Bashar Assad. Esquerdistas curdos cinicamente descrevem seus aliados imperiais, incluindo os israelenses, como “colonialistas progressistas”.

Em suma, os curdos atuam como representantes dos EUA e Israel. Eles proporcionam mercenários, acesso a bases militares, postos de escuta e espionagem e recursos no recém “libertado” (e etnicamente limpo) “país”, para reforçar o imperialismo estadunidense, o qual “seus líderes senhores da guerra” escolheram como “parceiro” dominante. Será a sua luta de libertação nacional ou uma fantochada mercenária a serviço do império contra nações soberanas que resistem ao controle imperial e sionista?

Na Ucrânia, os EUA saudaram a causa da autodeterminação quando esta engendrou um golpe violento para derrubar um regime eleito, cujo crime era o seu compromisso de independência em relação à OTAN. O golpe foi financiado abertamente pelos EUA, os quais financiaram e treinaram bandidos fascistas comprometidos com a expulsão ou repressão de falantes étnicos russos, especialmente na região oriental do Donbas e da Crimeia com o objetivo de colocar bases da OTAN na fronteira da Rússia.

A maioria esmagadora do povo da Crimeia, que fala russo, opôs-se ao golpe e exerceu o seu direito de autodeterminação ao votar pelo retorno à Rússia. Igualmente a região industrializada do Donbas, no leste da Ucrânia, declarou sua autonomia, opondo-se ao opressivo e brutalmente corrupto regime estadunidense instalado em Kiev.

O violento golpe em Kiev patrocinado pelos EUA-UE foi uma forma descarada de anexação imperial, ao passo que o voto pacífico na Crimeia e o exercício militante de autodeterminação no Leste da Ucrânia apresentou uma resposta progressista por parte das forças anti-imperialistas. Frustrado no seu projeto de transformar o Leste da Ucrânia e a Crimeia em plataformas de lançamento de foguetes da OTAN para agressão a Moscou, os EUA/UE condenaram esta resposta como “colonização russa”.

O Tibete e os uigures na província chinesa de Xinjiang

Durante muitas décadas grupos separatistas estiveram empenhados ativamente em levantes armados no Tibete e em Xinjiang, China ocidental. Apesar de se proclamarem “independentes”, seus senhores da guerra feudais desde há muito têm sido hostis aos avanços positivos da Revolução Chinesa (incluindo a abolição da escravatura no Tibete, assim como ao comércio de ópio e cobrança de dote para noivas, com extensão da educação universal em regiões feudais muçulmanas). Eles colaboraram com os EUA e expansionistas da Índia (onde o Dalai Lama estabeleceu o seu palácio e campos de apoiantes armados, treinados por agências imperiais do ocidente).

Apesar de o ocidente publicitar o Dalai Lama como um homem sagrado amante da paz que pronuncia discursos com platitudes para multidões de adoradores, este santo nunca condenou as guerras genocidas dos EUA contra seus companheiros budistas no Vietname, na Coreia ou alhures.

O bem financiado circuito ocidental em favor da celebridade do Tibete e das vítimas uigurs tem ignorado as ligações entre o Dalai Lama e seus patronos imperiais, o que em última análise define o significado operacional de “autodeterminação”.

Kosovo: autodeterminação do terrorista traficante de prostitutas

Após a II Guerra Mundial a Iugoslávia libertou-se dos seus odiosos colaboradores nazistas através dos guerrilheiros comunistas, empreendeu a construção de uma sociedade socialista multi-étnica auto-administrada. Mas na década de 1990 a intervenção militar aberta de forças da OTAN engendrou deliberadamente o desmembramento violento da Jugoslávia em “micro-estados independentes”. O experimento de um estado socialista multi-étnico na Europa foi destruído. Após limpeza étnica maciça das suas populações não albanesas, um novo estado fantoche da NATO, o Kosovo, acabou sob o controle de um terrorista reconhecido internacionalmente, o traficante de brancas e de drogas, vassalo dos EUA, Hashim Thaci e seus bandidos do Exército de Libertação do Kosovo.

Com a maciça campanha de bombardeamento dos EUA contra Belgrado e outras cidades da Iugoslávia e com apoio militar da OTAN, o Kosovo alcançou a “autodeterminação” – quando uma enorme base aérea dos EUA e um centro de “descanso & recuperação” (Camp Bondsteel) com descontos nos bordeis do KLA para a tropa estadunidense. Como o Kosovo serve de posto avançado mercenário dirigido por bandidos vassalos, Washington e Bruxelas endossam suas afirmações de que é um “estado independente libertado”. O Kosovo também serve como depósito internacional do pavoroso comércio de órgãos humanos para transplante. Ao examinar o estado mafioso do Kosovo, etnicamente limpo, o então comandante da OTAN, o canadense General Lewis MacKenzie , admitiu posteriormente: “Nós bombardeamos o lado errado” .

O desmembramento da Iugoslávia levou a múltiplos mini-estados separatistas, cada um dos quais caiu sob a dominação econômica da UE e o controle militar dos EUA. No jargão ocidental isto foi alcunhado de “autodeterminação democrática” – a vergonhosa realidade é a da limpeza étnica maciça, do empobrecimento e da criminalidade.

A independência da Catalunha e a Espanha neofranquista

A Espanha está sob o domínio de um regime que descende do ditador fascista Francisco Franco. O presidente Mariano Rajoy e o seu mal chamado “Partido Popular” (PP) e o seu real auxiliar, o rei Felipe VI , envolveram-se em escândalos de corrupção maciços, lavagem de dinheiro e contratos fraudulentos de construção público-privados. As políticas neoliberais de Rajoy contribuíram significativamente para um crash financeiro que resultou numa taxa de desemprego de 30% e num programa de austeridade que retirou aos trabalhadores espanhóis o seu poder de negociação coletiva.

Frente à busca de autodeterminação da Catalunha através de eleições livres e democráticas, Rajoy ordenou uma invasão policial e militar, apreendendo urnas eleitorais, rompendo cabeça e assegurando controle total.

O exercer pacífico dos catalães da autodeterminação através de eleições livres, independentes da manipulação imperial, foi rejeitado tanto pela UE como por Washington como “ilegal” – por desobedecer Rajoy e suas legiões neofranquistas. [NR: ver referências acerca da Catalunha )

A autodeterminação para a Palestina e a colonização e subjugação israelense apoiada pelos EUA

Durante meio século Washington apoiou a brutal ocupação e ocupação israelense da “Cisjordânia” palestina. Os EUA negaram sistematicamente autodeterminação ao povo do Palestina e aos seus milhões de refugiados deslocados. Washington arma e financia a expansão israelense através da captura violenta de território e recursos palestinos, bem como da inanição, encarceramento, tortura e assassinato de palestinos pelo crime de afirmarem seu direito à autodeterminação.

A esmagadora maioria de presidentes e responsáveis do Congresso dos EUA, no passado e no presente, submissamente recebem suas indicações dos presidentes das 52 Principais Organizações Judias (israelenses) que acrescentam milhares de milhões aos cofres da Tel Aviv colonial. Israel e seus apaniguados sionistas dentro do governo estadunidense manipulam o governo dos EUA para guerras desastrosas no Médio Oriente contra a autodeterminação de nações árabes e muçulmanas independentes.

Arábia Saudita: inimiga da autodeterminação do Iêmen

O regime despótico da Arábia Saudita tem combatido contra a autodeterminação nos Estados do Golfo e no Iêmen. Os sauditas, apoiados por armas e conselheiros dos EUA, desalojaram milhões de civis iemenitas e mataram milhares numa campanha de bombardeio implacável. Ao longo da última década os sauditas bombardearam e bloquearam o Iêmen, destruindo sua infraestrutura para milhões de crianças num esforço para derrotar o movimento de libertação iemenita liderado pelos Huthis.

Os EUA e o Reino Unido forneceram mais de cem bilhões de dólares em vendas de armas e deram apoio logístico, incluindo coordenação de bombardeios, aos tiranos sauditas enquanto bloqueavam qualquer ação diplomática da ONU para aliviar o imenso sofrimento provocado. Neste crime de guerra atroz, Washington e Israel são os mais próximos associados da monarquia saudita a negar a autodeterminação ao povo oprimido do Iêmen que há muito resiste ao controle saudita.

Conclusão

O estado imperialista estadunidense, tal como todos os que aspiram construir impérios, reprime ou apoia movimentos pela autodeterminação conforme os seus interesses de classe e imperiais. Sejamos claros: a autodeterminação é uma questão definida por classe; não é um princípio moral-legal geral.

A utilização e abuso seletivo da autodeterminação por parte do imperialismo não é um caso de “hipocrisia” ou de “duplos padrões”, como se queixam seus defensores da esquerda liberal. Washington aplica um padrão único. Será que este movimento avança o Império assegurando e sustentando regimes vassalos e seus apoiadores? A linguagem da “libertação” é um mero esmalte para assegurar a fidelidade de vassalos que se opõem a estados independentes.

Durante décadas países europeus do Leste, balcânicos e bálticos foram encorajados a lutar pela “autodeterminação” contra o Pacto de Varsóvia liderado pelos soviéticos, só para posteriormente abraçarem o jugo da vassalagem sob o comando da OTAN, da UE e de Washington. Em muitos casos suas soberanias e padrões de vida entraram em colapso a seguir a limpezas étnicas, incluindo a expulsão em massa de sérvios da Croácia e do Kosovo e da repressão linguística-cultural de russos étnicos na Letônia e Ucrânia.

Os “combatentes pela liberdade” curdos seguem senhores da guerra étnica, financiados pelos EUA e Israel, e se apossaram de cidades, recursos petrolíferos e território para servir como bases militares contra os governos soberanos do Iraque, Irã e Síria.

Neste contexto, os senhores da guerra e oligarcas curdos são vassalos leais e uma componente integral da consagrada política dos EUA-Israel destinada a dividir e enfraquecer aliados independentes da Palestina, Iêmen e movimentos de libertação genuínos.

Claramente, o critério para decidir quais reivindicações de autodeterminação são válidas exige que se identifique se são avançados interesses de classe e anti-imperialistas.

Para além dos conflitos imediatos, muitos regimes independentes, por sua vez, tornam-se dominadores opressivos das suas próprias minorias e de críticos nativos. A “autodeterminação” ad infinitum pode em última análise levar a indivíduos esquizóides – exaltando seu povo mítico enquanto oprime outros. Hoje, o sionismo é a paródia final da “autodeterminação”. Países recém independentes e governantes frequentemente negam a minorias o seu próprio direito à autodeterminação – especialmente àquelas que apoiaram o poder anterior.

Na medida em que a luta “nacional” é limitada à independência política ela pode levar a uma mera “mudança de guarda” – mantendo a exploração de classe opressiva e introduzindo novas formas de opressão cultural-étnica e de gênero.

Em alguns exemplos as novas formas de exploração de classe podem mesmo ultrapassar as suas condições anteriores sob a vassalagem imperial.

Curdos, tibetanos, fascistas ucranianos nacionalistas, uigures e outros dos chamados combatentes da liberdade acabam por ser cipaios militares para incursões agressivas dos EUA contra a China, o Irã e a Rússia independentes. Apoiantes de esquerda destes dúbios “movimentos de libertação” estão a reboque do império.

A “globalização” capitalista é o maior inimigo de hoje da autêntica autodeterminação. A globalização imperial apoia micro-estados fragmentados – nada melhor para convertê-los em novos vassalos com o seu próprio hino e bandeira!

20/Outubro/2017

O original encontra-se em www.globalresearch.ca/…

http://resistir.info/petras/petras_20out17.html