O fim da pesquisa científica no Brasil
Entrevista especial com Peter Schulz
A conclusão do relatório do Banco Mundial, intitulado “Um Ajuste Justo. Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”, de que o Estado brasileiro gasta mais do que pode e gasta mal, é muita “vaga” quando se trata de analisar os gastos com o ensino superior nas universidades públicas, defende o professor Peter Schulz. Segundo ele, o relatório apresenta “um diagnóstico de que o custo por aluno no ensino superior público seria mais elevado e que seria também ineficiente de acordo com uma métrica de avaliação do desempenho dos alunos”. Entretanto, pontua, “não existe no relatório uma proposta de como reduzir esses alegados altos custos. O relatório se resume a vagamente sugerir que ‘as universidades teriam que reconsiderar sua estrutura de custos e/ou buscar recursos em outras fontes’. Em seguida propõe especificamente a introdução de taxas escolares, ou seja, o fim da gratuidade”, avalia.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Schulz argumenta que o relatório oferece uma resposta “simples e errada” a problemas complexos do sistema de ensino superior brasileiro. “Na panela de custos por aluno não se consideram as diferenças entre universidades, centros universitários e faculdades isoladas. Quanto às universidades, não é comentada a diferença entre universidades voltadas à pesquisa e universidades voltadas ao ensino. Quando o ‘pacote’ público é comparado ao sistema privado, este também vira um ‘pacote’, pois não há uma diferenciação, aos olhos desse relatório, entre instituições privadas com e sem fins lucrativos, por exemplo”.
De acordo com ele, a proposta é baseada apenas “no número de estudantes, esquecendo que as universidades públicas desenvolvem pesquisa,
Peter Schulz é graduado, mestre e doutor em Física pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Atualmente leciona na mesma universidade.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as principais propostas do relatório “Um Ajuste Justo. Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil”, publicado pelo Banco Mundial?
Peter Schulz – Eu li o relatório de forma rápida no geral, detendo-me com cuidado na parte que se referia ao ensino superior, que é a minha praia. Dessa forma não seria apropriado discutir as outras partes, mas quanto ao ensino superior, a principal proposta seria o fim da gratuidade no ensino superior público.
IHU On-Line – A principal conclusão do relatório do Banco Mundial é a de que o governo brasileiro gasta mais do que pode e gasta mal. Em que áreas isso é mais recorrente?
Peter Schulz – Essa conclusão, no que se refere ao ensino superior, é colocada de forma muito vaga. É apresentado um diagnóstico de que o custo por aluno no ensino superior público seria mais elevado e que seria também ineficiente de acordo com uma métrica de avaliação do desempenho dos alunos. Não existe no relatório, no entanto, uma proposta de como reduzir esses alegados altos custos. O relatório se resume a vagamente sugerir que “as universidades teriam que reconsiderar sua estrutura de custos e/ou buscar recursos em outras fontes”. Em seguida propõe especificamente a introdução de taxas escolares, ou seja, o fim da gratuidade.
IHU On-Line – Por que, na sua avaliação, o relatório tem uma resposta simples e errada para um problema complexo?
Peter Schulz – Por vários motivos. O primeiro já fica claro na resposta anterior. O relatório basicamente diz que o sistema de ensino superior público é de custo muito alto comparado com o sistema privado, mas sugere simplesmente buscar recursos em outras fontes. É um absurdo anunciar que se gastaria demais e concluir dizendo somente que tudo bem permanecer assim, basta pegar dinheiro de outro lugar.
O segundo aspecto nesse problema complexo com uma resposta simples e errada é o fato de o relatório não apresentar uma única menção à complexidade do sistema de ensino superior brasileiro, tanto público quanto privado. Na panela de custos por aluno não se consideram as diferenças entre universidades, centros universitários e faculdades isoladas. Quanto às universidades, não é comentada a diferença entre universidades voltadas à pesquisa e universidades voltadas ao ensino. Quando o “pacote” público é comparado ao sistema privado, este também vira um “pacote”, pois não há uma diferenciação, aos olhos desse relatório, entre instituições privadas com e sem fins lucrativos, por exemplo. Uma universidade excelente como a Unisinos, por exemplo, não é diferenciada de faculdades isoladas de qualidade altamente questionável. O relatório do Banco Mundial, na sua tentativa de desqualificar o sistema público, acaba fazendo o mesmo com as instituições privadas de alta qualidade.
Além disso, para defender o fim da gratuidade, o relatório menciona que “a maioria dos países cobra pelo ensino em universidades públicas”, mas não cita nenhuma fonte para essa informação. Será verdade ou é um mito? Não é verdade para uma série de países na Europa, incluindo a Alemanha, por exemplo.
Outro problema é a crítica de que o sistema público equivale a um “subsídio regressivo à parcela mais rica da população”. Não existe no relatório uma discussão consistente dos esforços e importantes avanços na inclusão social promovidos pelas universidades públicas.
IHU On-Line – Segundo o relatório, a limitação do financiamento a cada universidade com base no número de estudantes geraria uma economia de aproximadamente 0,3% do PIB. Qual seria o impacto desse percentual no orçamento?
Peter Schulz – Catastrófico, seria o fim das universidades públicas. Vejamos o texto do relatório na página 13, item 18 do resumo executivo: “O Governo Federal gasta aproximadamente 0,7% do PIB com universidades federais”. E logo abaixo: “A limitação do financiamento a cada universidade com base no número de estudantes geraria uma economia de aproximadamente 0,3% do PIB”.
Isso significa que a proposta é de redução do orçamento para 0,4% do PIB, ou seja, um corte de 40%? Uma proposta baseada no número de estudantes, esquecendo que as universidades públicas desenvolvem pesquisa,
Uma redução dessas seria o fim da pesquisa científica no Brasil, pois as universidades públicas são, entre outros indicadores, os maiores depositantes de patentes no país.
IHU On-Line – Segundo o relatório, “as despesas com ensino superior são, ao mesmo tempo, ineficientes e regressivas”, porque 65% dos estudantes pertencem aos 40% mais ricos da população. Por conta disso, o relatório sugere a cobrança das mensalidades ou até mesmo a criação de um programa como o Fies para financiar o estudo na universidade pública. Considerando as questões sociais do país e a estatística acerca do ingresso de estudantes de estratos sociais mais baixos na universidade pública, como avalia esse tipo de proposta?
Peter Schulz – O relatório menciona apenas de passagem os avanços na inclusão social no acesso à universidade pública. Apresenta o dado de que em 2002 apenas 4% dos estudantes integravam o grupo dos 40% mais pobres. Em 2015 essa proporção subira para 15%. É um avanço enorme, embora ainda insuficiente, mas as políticas de equidade no acesso têm aumentado. E quais as projeções para a curto, médio e longo prazo? O relatório é omisso e acaba tomando o dado de 15% como estático, que não evolui. Esses dados estão na página 136. Um detalhe é que, logo abaixo do dado de 15%, uma frase menciona que 20% dos estudantes integram o grupo dos 40% mais pobres. Chamo a atenção aqui para a imprecisão do relatório e a falta de transparência nos dados.
IHU On-Line – O que seria uma política adequada para garantir o acesso de estudantes de estratos sociais mais baixos à universidade pública?
Peter Schulz – Gostaria de chamar a atenção aqui para a proposta aprovada pelo Conselho Universitário da Unicamp para o ingresso de estudantes a partir de 2019. É um exemplo de como as universidades públicas estão preocupadas e atentas em melhorar as políticas de acesso de estudantes de estratos sociais mais baixos, incluindo políticas de cotas étnico-raciais e vestibular indígena [1].
IHU On-Line – Uma das suas críticas ao relatório do Banco Mundial diz respeito ao aspecto quantitativo apresentado pelo relatório, que sugere o fim do financiamento integral do ensino superior nas escolas públicas como forma de aumentar a eficiência do gasto público, e ao fato de o relatório não mencionar a relevância da pesquisa e da inovação. Quais os riscos de medir a educação apenas a partir de aspectos quantitativos e econômicos?
Peter Schulz – Os riscos são os apresentados em parte na resposta sobre o corte do orçamento. Qual é a medida de eficiência? Como os gastos com pesquisa e assistência à saúde são separados dos custos com o ensino? Aspectos quantitativos e econômicos são relevantes, quando considerados corretamente. As universidades públicas têm uma parcela de doutores no seu quadro docente bem superior às privadas, levando em conta o “panelão de médias” que o relatório considera, desrespeitando os investimentos nas universidades públicas — e privadas — de qualidade.
É bom lembrar, também, que a eventual cobrança de taxas escolares não conseguiria cobrir a redução do orçamento proposto pelo relatório. Novamente: seria o fim da pesquisa no Brasil e o colapso do sistema de saúde em várias regiões do país.
IHU On-Line – Qual é a importância do ensino universitário para o desenvolvimento de uma nação?
Peter Schulz – Essa pergunta merece uma resposta longa, na verdade um tratado, mas há limitação de tempo e espaço. Assim eu cito um artigo de Michael Crow, reitor de uma universidade pública estadunidense, que aparece no blog do próprio Banco Mundial: “Universidades são organizações únicas no contexto global… são organizadoras imparciais, agregadoras de talentos, fábricas de ideias inovadoras, nas quais a paixão, criatividade e idealismo de grandes mentes, tanto jovens quanto mais velhas, podem ser aplicadas na solução de problemas e no avanço do nosso bem-estar social e econômico”. Tudo isso é desconsiderado pelo relatório em questão [2].
IHU On-Line – Segundo o relatório, “desenhar e implementar um ‘ajuste justo’ que coloque as contas fiscais do Brasil de volta em uma trajetória sustentável, ao mesmo tempo em que protege os pobres, é um grande desafio”. Como seria possível atingir essa meta?
Peter Schulz – Não sou economista, a minha análise se refere ao descuido, distorções e omissões do relatório quanto ao ensino superior. Uma perspectiva que se perde totalmente é de como a educação acaba sendo vista como custo, e não investimento. A educação em todos os níveis deve passar a ser vista como investimento a ser preservado, e não custo a ser cortado em função de análises econométricas simples, mas erradas. Acredito, tomando a universidade na qual trabalho como referência, que a preocupação com a melhoria da gestão e otimização dos recursos está presente na agenda das universidades públicas. Há muito que fazer, mas está sendo feito, pois as universidades não estão alheias ao que diz a sociedade.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Peter Schulz – Existe ainda uma grande incompreensão na sociedade do papel e daimportância das universidades, quanto ao tipo de ensino oferecido, em comparação com instituições privadas de menor porte, ou voltadas exclusivamente ao ensino e não à pesquisa, e quanto ao seu papel no desenvolvimento do país e na promoção do conhecimento como bem público. Essa incompreensão é historicamente construída e o relatório do Banco Mundial, no que se refere à educação, mostra o quão grande é essa incompreensão, que pode levar o Brasil ao abismo.
Notas:
1. Acesse aqui. (Nota do entrevistado)
2. Acesse a fonte aqui. (Nota do entrevistado)
http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/574521-instrucoes-do-banco-mundial-podem-levar-ao-fim-da-pesquisa-cientifica-no-brasil-entrevista-especial-com-peter-schulz