Exploração infantil e comercialização do corpo da criança

Exploração infantil e comercialização do corpo da criançaPor Larissa Gouveia* e Rikartiany Cardoso**

Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro

“Só havia três coisas sagradas na vida: a infância, o amor e a doença. Tudo se podia atraiçoar no mundo, menos uma criança, o ser que nos ama e um enfermo. Em todos esses casos a pessoa está indefesa.” Miguel Torga

No início da semana foi ao ar um videoclipe no Youtube, caracterizado como uma paródia de ”Vai Malandra”. ”Vai Baranga”, na ocasião, é encenada por uma criança que hoje tem 10 anos de idade, mas que carrega nas costas alguns anos de holofote no bizarro mundo midiático. O aparecimento da menina chamada Gabriella, mas que foi incorporada pelos pais ao mundo da exploração infantil como Melody, se iniciou em meados de 2015 quando a menina tinha 8 anos incompletos. Cantando em vídeos postados nas redes sociais, conseguiu milhares de alcance tornando-se palco para grupos que riam de suas performances. Nesse mesmo ano, uma série de questionamentos sobre a sexualização infantil vieram a tona e seu pai, que deveria ser responsável pela integridade física e emocional da menina, principalmente na fase da vida onde a inocência não deveria ser corrompida, foi processado por exploração infantil. Precisamos falar sobre Melody. E mais do que isso, além de colocar a questão da hipersexualização desta criança, é necessário discutir e combater a exploração infantil e a comercialização do corpo da criança que no final das contas, não tem infância.

Considerando os padrões ocidentais que conduzem o belo no artístico, a menina não canta bem. Ficou conhecida na mídia por alcançar agudos desafinados que repercutem nas redes como motivo para chacota. O que pouco se discute é que os agudos desafinados deveriam ser um alerta para a sociedade se atentar ao que realmente acontece dentro e fora dos bastidores e que externa a pouca idade dela.

Ser criança e ter infância, infelizmente, são coisas e conceitos diferentes. Phillipe Ariès (1960) em A História Social da Infância e da Família, discorre sobre como os tipos de infância mudam de acordo com o sistema implantado na sociedade dividida em classes. Quanto mais próximo da barbárie, mais perverso se torna o tipo de infância que a criança tem ou simplesmente não têm. São tratados como adultos em miniatura, sendo assim, pode ser visto, tratado e agir como tal.
A forma como a menina foi exposta desde os primeiros anos da infância a ensinou a como se socializar. E pelo que é expressado nos vídeos e declarações em redes sociais, a criança foi ensinada a ter uma relação desinibida e de comercialização do corpo, que para ela possivelmente é extremamente natural. Provavelmente tendo forte influência quando a menina se tornar uma mulher.

As crianças do meio artístico são obrigadas, pelo meio em que estão inseridas, a secundarizar o que para nós deveria ser uma boa infância. Como o direito de brincar, de estudar, não ter preocupações e grandes responsabilidades além das que deve ter consigo mesma minimamente. Isso ocorre porque a relação trabalho e meio artístico é posta como prioridade. Sempre respingando na imagem vendida para a mídia burguesa.

O Ministério Público de São Paulo abriu recentemente um inquérito sob o fundamento de “violação ao direito ao respeito e à dignidade de crianças/adolescentes “, colocando que os impactos são nocivos no desenvolvimento do público infantil e de adolescentes, tanto de quem se exibe quanto daqueles que o acessam. Assim, não só se limitando ao referido caso, mas aos demais que estão em ascensão, assim como nas problemáticas decorrentes.

O contexto não esconde apenas a exposição e a hipersexualização de crianças e adolescentes, mas também a exploração da mão de obra infantil. O trabalho infantil artístico, como é o caso da Melody, pode ser aceito abaixo dessa faixa etária, excepcionalmente, desde que com a devida autorização judicial e adotadas cautelas correspondentes à proteção integral da criança, com especial atenção para a preservação de sua integridade física, psíquica e moral como preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente. Trabalho infantil é toda forma de trabalho exercido por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima legal permitida para o trabalho, conforme a legislação de cada país.

No Brasil, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU) e Convenção nº 182 da Organização Internacional de Trabalho (OIT), a palavra “criança” é aplicada a todos com idade inferior a 18 anos. Ao começarem a trabalhar precocemente, e nem sempre com as condições exigidas por lei, nasce uma dificuldade em conciliar os estudos, brincadeiras, deveres. A vida de uma criança normal com a vida laboral, além de fomentar precocemente (que por si só sua lógica já é perversa) uma dinâmica mercadológica exorbitante e que é incorporada ao desenvolvimento da criança.

O desenvolvimento do sistema capitalista é devastador e voraz, destrói por completo qualquer indivíduo independente da sua idade e em qualquer fase de sua vida. Tudo para operacionalizar onde tudo deve ser moeda de troca. A questão, como se infere, é estrutural: a hipersexualização infantil, o abuso do corpo da mulher (em qualquer fase de sua vida) e a exploração infantil são as várias faces desse sistema, que deve ser destruído!

*Pedagoga, militante do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro e do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
**Estudante de direito da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), militante do Coletivo Feminista Classista Ana Montenegro, da União da Juventude Comunista e do Núcleo Jurídico Jayme Miranda.

Ilustração: Cartum de aproximadamente 1912 representando o trabalho infantil

http://anamontenegro.org/