Os sentidos do grande retrocesso ambiental
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Deputados preparam-se para votar projeto que pode eliminar necessidade de licenciamento ambiental para grandes obras. Qual a estratégia. Que ameaças ela implica
Por Roberto Giovanelli e Michel Santos, em entrevista a Patricia Fachin, no IHU
Apesar de a Constituição de 88 ter elevado “o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado ao patamar de direito humano fundamental” e determinar o licenciamento prévio de empreendimentos que podem causar degradação ambiental, “até hoje, a lei que deveria disciplinar o licenciamento ambiental não foi produzida”, informam Rafael Giovanelli e Michel Santos, integrantes do WWF Brasil na entrevista a seguir, concedida por e-mail.
Segundo eles, o licenciamento ambiental tem sido tema de discussão no Congresso brasileiro desde 1988 e gerou diversos projetos de lei, mas “a grande questão é que, apesar de todas essas propostas e todos esses anos de tramitação, o texto que querem aprovar praticamente não foi debatido. Trata-se de uma versão elaborada pelo deputado Mauro Pereira (PSDB) no final de agosto do ano passado, que não passou por nenhuma Comissão Temática da Câmara dos Deputados, sobre o qual não houve nenhuma audiência pública e que pode ser votado pelo plenário, em regime de urgência, a qualquer momento”.
Na avaliação deles, o texto que deve ser votado ainda neste mês foi feito “para atender aos interesses de setores que estão ‘sobre-representados’ no
Rafael Giovanelli é mestre em Direito e Desenvolvimento pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo e bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é analista de Políticas Públicas do WWF-Brasil.
Michel Santos é graduado em Publicidade e Propaganda pela Universidade Católica de Brasília e pós-graduado em Gestão Ambiental em Cidades pela mesma universidade. Atualmente é coordenador de Políticas Públicas do WWF-Brasil.
Leia a entrevista
Qual é a origem da legislação sobre licenciamento ambiental?
A Constituição Federal de 1988 não apenas elevou o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado ao patamar de direito humano fundamental, como estabeleceu uma série de deveres ao Poder Público e à coletividade para tornar esse direito efetivo. Dentre eles está a necessidade de realizar, na forma da lei, o prévio licenciamento de empreendimentos e atividades com potencial de causar degradação ambiental. Acontece que, até hoje, a lei que deveria disciplinar o licenciamento ambiental não foi produzida.
Portanto, a “lei geral de licenciamento ambiental” decorre da exigência constitucional de regulamentação do dever de licenciamento prévio e deveria consistir em um instrumento para: (i) organizar o sistema de licenciamento, (ii) proporcionar previsibilidade para as ações dos empreendedores e do Poder Público e, o mais importante, (iii) criar mecanismos sólidos de gerenciamento dos riscos inerentes às atividades produtivas, proporcionando segurança para o meio ambiente e para a população.
Atualmente, o sistema de licenciamento ambiental se fundamenta nas Resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (sobretudo a Resolução nº 01/1986 e a Resolução nº 237/1997) e em dispositivos esparsos da legislação e demais atos normativos. Praticamente todo esse arcabouço pode vir a ser revogado pela futura lei.
Em que contexto surgem projetos de lei para inviabilizar o licenciamento ambiental?
Para ser preciso, não há apenas um projeto de lei, há dezenas de projetos. Discute-se o licenciamento ambiental no Congresso desde 1988, quando o deputado Fábio Feldman propôs a obrigatoriedade da elaboração de Estudo de Impacto Ambiental para uma série de empreendimentos. Essa proposta caminhou até os anos 1990, mas depois ficou esquecida. Em 2004, o debate foi reiniciado com uma proposta do deputado Luciano Zica. A essa proposta seguiram-se outras. Todas tramitam juntas. Há projetos também no Senado Federal.
A grande questão é que, apesar de todas essas propostas e todos esses anos de tramitação, o texto que querem aprovar praticamente não foi debatido. Trata-se de uma versão elaborada pelo deputado Mauro Pereira (PSDB) no final de agosto do ano passado, que não passou por nenhuma Comissão Temática da Câmara dos Deputados, sobre o qual não houve nenhuma audiência pública e que pode ser votado pelo plenário, em regime de urgência, a qualquer momento.
Esse é um texto para atender aos interesses de setores que estão “sobre-representados” no Congresso Nacional, por assim dizer. É um texto que atende sobretudo aos interesses de parte do agronegócio e de parcela dos agentes produtivos que tem uma visão muito limitada do desenvolvimento econômico e das necessidades do país.
O desmonte do licenciamento ambiental se insere em um conjunto de propostas que tramitam no Congresso para enfraquecer a legislação socioambiental e para colocar o meio ambiente e as comunidades tradicionais à mercê de grupos que enxergam na exploração altamente depredatória da natureza o único caminho para retirar o país da atual recessão econômica. O problema é que esses grupos ganharam muita força política quando financiaram o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e quando barraram as denúncias de corrupção feitas pela Procuradoria Geral da República contra o presidente Michel Temer.
Quais serão as consequências ambientais caso o projeto seja aprovado?
O texto do deputado Mauro Pereira traz uma série de ameaças, não só ao meio ambiente, mas também ao patrimônio histórico e cultural, aos povos e comunidades indígenas e quilombolas e à gestão democrática e participativa do meio ambiente. Mas destacaria três consequências extremamente negativas para o meio ambiente natural.
A primeira delas relaciona-se com a dispensa de licenciamento ambiental para uma série de atividades e empreendimentos com inegável potencial de degradação ambiental. Isso significa deixar de gerenciar os riscos inerentes a esse tipo de atividade; significa que as transformações produzidas no meio ambiente não serão conhecidas, não serão mitigadas e não serão compensadas; significa também que não teremos planos emergenciais para as hipóteses de acidentes. Dois casos podem ilustrar a situação: a Rodovia Transamazônica e o recente acidente envolvendo a Hydro Alunorte em Barcarena.
Valendo as regras propostas por Mauro Pereira, a Transamazônica poderia ser asfaltada sem que fosse realizado um único estudo sobre o impacto que o consequente aumento do fluxo de veículos e mercadorias traria para a região. Ao se considerar que as rodovias são um dos principais vetores de desmatamento na Amazônia, é possível conceber o tamanho do estrago da dispensa de licenciamento.
Em Barcarena, o depósito de rejeitos do qual parece ter decorrido o vazamento não constava da planta original do empreendimento da Hydro Alunorte. Foi uma ampliação posterior, autorizada por um procedimento de licenciamento ambiental simplificado (não foi necessária a obtenção de licença prévia). O depósito estava operando em fase de testes e parece não ter suportado as chuvas acima da média do mês de fevereiro. Talvez o acidente não tenha sido maior justamente porque, ainda que simplificado, houve um processo de licenciamento e o depósito ainda estava em fase de teste. Agora, imagine se o depósito tivesse sido implantado e estivesse em plena operação sem qualquer licenciamento ou teste prévio. É possível que o desastre fosse terrível. O texto de Mauro Pereira permite a dispensa de licenciamento ambiental para a ampliação de empreendimentos já instalados.
A segunda consequência negativa é o enfraquecimento dos órgãos responsáveis pelas unidades de conservação, que perderiam a prerrogativa de vetar empreendimentos que degradem as zonas de amortecimento de áreas protegidas. Além disso, as medidas de compensação e mitigação sugeridas por tais órgãos quando empreendimentos impactarem unidades de conservação poderão ser desconsideradas pelo órgão responsável pelo licenciamento ambiental. Reduz-se, com isso, a proteção das áreas que deveriam ser protegidas.
A terceira consequência negativa está relacionada com a ampla discricionariedade conferida aos estados e municípios pelo texto do Deputado Mauro Pereira. A proposta é que esses entes federados tenham plena liberdade para: (i) definir quais empreendimentos e atividades precisarão ser licenciadas, (ii) definir quais estudos devem ser produzidos para licenciar cada tipo de atividade ou empreendimento e (iii) definir o rito, isto é, o passo a passo do processo de licenciamento de cada atividade. Essa sistemática vai gerar uma espécie de guerra ambiental entre os estados — semelhante à guerra fiscal, que ocorre na seara tributária. Estados e municípios, para atrair investimentos, podem flexibilizar o rigor do licenciamento ambiental em seus territórios, dispensando uma série de atividades do dever de licenciar ou exigindo estudos e procedimentos muito simples, insuficientes para o gerenciamento adequado dos riscos. Isso certamente aumentará o grau de impacto das atividades produtivas ao meio ambiente.
E nós já vimos essa história. Nos anos 1970 e começo dos anos 1980, São Paulo já contava com uma legislação ambiental rigorosa, destoando dos demais estados. O que aconteceu? Parte da indústria cruzou a fronteira e foi para cidades próximas de Minas Gerais e do Paraná, onde sua implantação era mais simples, e os deveres de controle e mitigação, muito mais brandos. Isso aconteceu com indústrias em Camanducaia e com empreendimentos de papel e celulose no Paranapanema, por exemplo. O problema é que a poluição e a contaminação não reconhecem fronteiras.
Quais são os argumentos técnicos que justificam a manutenção da atual legislação do licenciamento ambiental?
Do meu ponto de vista, existe um evidente erro de diagnóstico, conveniente aos interesses políticos que dominam a pauta do Congresso Nacional. Apesar de uma “lei geral para o licenciamento ambiental” ser bem-vinda, o sistema atual já funciona razoavelmente bem. É claro que pode ser aprimorado, mas os seus pontos mais fracos não o são por inconsistências legais, mas sim administrativas, sobretudo.
O atropelo por uma lei geral a qualquer custo e o quanto antes vem, como dissemos acima, de parcelas do setor produtivo que, ao mesmo tempo, tem (i) muito poder político e (ii) uma visão muito estreita do desenvolvimento econômico. A ânsia pela lei é uma ânsia por “desburocratizar”, que, no fundo, é uma ânsia por flexibilizar a ponto de não haver licenciamento para as atividades que lhes interessam — ou haver um licenciamento simplório, quase pro forma. Tudo isso para que a instalação e a operação dos empreendimentos sejam céleres e menos custosas. É o falso argumento da segurança jurídica.
Acontece que a morosidade com a qual certos licenciamentos são conduzidos decorrem, em parte, da falta de estrutura dos órgãos responsáveis pela sua condução. Em muitos estados, os órgãos ambientais carecem de recursos físicos e humanos para executar todas as atividades que devem. O mesmo acontece com importantes órgãos que devem participar do licenciamento, como a Funai e os órgãos gestores de unidades de conservação. A Funai, por exemplo, conta com menos de uma dezena de técnicos para atender todos processos de licenciamento do país. Em recente estudo lançado pelo WWF-Brasil, demonstramos que o orçamento do Ministério de Meio Ambiente vem sendo gradativamente reduzido, há uma década.
Portanto, se um dos pontos de aprimoramento do sistema de licenciamento ambiental passa por torná-lo mais célere, a solução está em fortalecer os órgãos ambientais e a Funai, e não em alterar a legislação para flexibilizar a necessidade de licenciamento de atividades e empreendimentos.
Disse que a morosidade do licenciamento se relaciona em parte com a falta de estrutura administrativa. Gostaria de complementar que em parte a morosidade do licenciamento está relacionada, justamente, com o seu bom funcionamento. Muitos projetos são concebidos sem viabilidade ambiental, e as vezes sem viabilidade econômica. O licenciamento ambiental certamente é um entrave para esse tipo de projeto, que devem ser adequados caso queiram ser implantados. Mas, nesses casos, ser um entrave significa que a legislação está funcionando bem. O problema surge quando interesses políticos de ocasião decidem que tais projetos serão implantados a fórceps. A Usina de Belo Monte é o mais claro exemplo disso.
Em nota pública, entidades que se manifestam contra a mudança das regras do licenciamento ambiental citaram o caso da população de Barcarena, no Pará, que sofre as consequências do vazamento tóxico de mineração. Pode nos relatar qual é a atual situação na região? As regras de licenciamento ambiental não foram cumpridas nesse empreendimento?
Barcarena tem um distrito industrial concebido nos anos 1970. Esse distrito nunca foi licenciado, apesar de a Resolução CONAMA nº 237/97 prever expressamente o dever de licenciamento para distritos e polos industriais. A falta de licenciamento do distrito industrial compromete o licenciamento das unidades industriais. Além disso, as autoridades públicas afirmam que existiriam dutos irregulares no empreendimento, os quais teriam sido peças-chave no acidente. A existência desses dutos irregulares pode ter decorrido de falta de fiscalização do empreendimento, o que está totalmente relacionado com o licenciamento ambiental.
E o problema de Barcarena não é apenas o acidente de fevereiro. Barcarena tem um problema crônico de contaminação hídrica. Diversos estudos do Instituto Evandro Chagas mostram que as águas da região contêm metais pesados acima dos limites permitidos pela legislação e pelas normas técnicas. Em audiência pública realizada na Câmara dos Deputados, o Deputado Arnaldo Jordy lembrou que entre 2009 e 2018 ocorreram mais de uma dezena de vazamentos de rejeitos de mineração no município, fora outros acidentes, como o naufrágio de um navio repleto de bois vivos. O problema de Barcarena é que a legislação atual não é aplicada, apesar do grande esforço do Ministério Público em lhe dar efetividade. O problema também se relaciona com a falta de estrutura do órgão ambiental estadual.
Barcarena reforça o nosso diagnóstico de que os problemas do licenciamento ambiental dependem de um reforço da estrutura administrativa, e não de um abrandamento do arcabouço legal.
Como foi a reunião de ambientalistas com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, neste mês? Como ele se posicionou diante da argumentação de vocês sobre a não existência de um acordo para votar o projeto de lei de licenciamento ambiental?
O deputado Rodrigo Maia está com a cabeça nas eleições. Ele nos ouviu, mas deixou claro que colocaria o projeto para deliberação do plenário. Depois, pronunciou-se como se estivesse costurando um acordo entre polos antagônicos do espectro político. Talvez conseguimos ampliar um pouco o debate em torno do texto do deputado Mauro Pereira. É possível que seja marcada uma audiência pública e que os líderes parlamentares se reúnam. Maia quer aparentar uma figura conciliadora, mas no fundo está comprometido com a Frente Parlamentar da Agropecuária.
Existe algum projeto de lei que se contrapõe aos projetos que estão tramitando na Câmara? Em que consiste?
Dentre os muitos projetos que foram propostos de 2004 para cá existem algumas propostas interessantes. Por exemplo, o deputado Edmilson Rodrigues chegou a sugerir a obrigatoriedade da elaboração de um balanço de emissões de gases de efeito estufa nas fases de instalação e operação de empreendimentos e atividades, com o estabelecimento de medidas para mitigá-las e compensá-las. Infelizmente, tal medida, que tem forte potencial no enfrentamento das mudanças climáticas, não foi incorporada ao substitutivo do deputado Mauro Pereira. E esse é, em parte, o problema do momento. A discussão gira em torno desse texto-base. As demais propostas aparentam estar fora do jogo. O trabalho agora é consertar o que for possível nesse texto.
Em que consistiria, na sua avaliação, um projeto de lei adequado, considerando o modo como grandes empreendimentos são feitos no Brasil?
Como falamos acima, o problema maior não é um problema legal, mas administrativo. O primeiro passo para aperfeiçoar o sistema de licenciamento ambiental seria o fortalecimento dos órgãos ambientais, com capacitação das pessoas, inovação tecnológica e aumento do número de servidores nos órgãos com claro déficit de pessoal, como a Funai. Depois disso, seria preciso uma mudança na mentalidade de certos segmentos: projetos inviáveis não devem ser implantados, uma vez que eles são ruins para todos, para a economia, para o meio ambiente e para a população. Por outro lado, os projetos viáveis precisam ser implantados com a agilidade possível, e talvez a diminuição de certa litigiosidade por vezes excessiva pode ser um bom caminho.
Depois disso, temos a questão legal, e nisso, defendemos três linhas de aprimoramento. O primeiro é que o licenciamento ambiental esteja relacionado com um planejamento de infraestrutura e logística mais amplo, de nível nacional. Precisamos de um modelo de desenvolvimento sustentável aprovado pela maioria da população e precisamos definir que futuro queremos para cada região do país. É benéfico que as modalidades de licenciamento variem de acordo com a localização do empreendimento, mas essa decisão depende de uma visão estratégica para o país, que só pode ser tomada em âmbito federal. Em segundo lugar defendemos a plena participação democrática no licenciamento de grandes empreendimentos: decisões precedidas de debates e com informações claras são mais legítimas e tendem a ser melhores de um ponto de vista técnico. Por fim, entendemos que os órgãos intervenientes precisam ter voz no processo de licenciamento, seja para criar medidas de mitigação ou compensação de impactos ou para eventualmente vetar a implantação dos projetos que podem trazer danos irreversíveis para unidades de conservação, para o patrimônio histórico e cultural e para os povos e comunidades tradicionais.
Desejam acrescentar algo?
É muito importante a participação da sociedade nesse processo, bem como que se escute a ciência sobre os riscos de se ter uma lei geral de licenciamento muito flex!