Vladimir Herzog: quando a justiça tarda e é falha
“Se a resistência do (in)devido processo legal continuar no ritmo desses dois casos, o Brasil seguirá somando aos seus repetidos golpes de estado, a infidelidade histórica que tem imposto ao seu povo, fazendo tardia a sua justiça, falhos os efeitos dela esperados, um “Estado de direito” que simula, mas não garante democracia”, escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.
Eis o artigo.
Alguns ditados são assimilados a cultura dos povos como dogmas indiscutíveis que resistem a qualquer impugnação da sua validade. “A justiça tarda, mas não falha” segue essa tradição. Quase sempre lembrada como um modo de “consolo” a alguém que, paradoxalmente, está sofrendo por ser vítima de injustiça, a frase leva consigo duas impropriedades: a primeira confunde justiça com Poder Judiciário, sujeita àquela conhecida fórmula utilizada por pessoa que ameaça outra “vou processar você na justiça”, uma hipótese clara de o dito estar se referindo ao Judiciário; a segunda pretende convencer que a justiça, aquela que deve, conforme o caso, impedir ou reparar uma injustiça, se expressa numa sentença que nunca tarda e nunca falha, embora o história já tenha comprovado muitas vezes o contrário.
As sentenças judiciais podem tardar sim e podem ser injustas, disto sendo vítima a família de Vladimir Herzog, o jornalista assassinado pela ditadura militar imposta ao país em 1964. Ela jamais desistiu de provar que sua morte não decorrera desuicídio como o governo de então tentava encobrir a sua responsabilidade na tortura e no assassinato de Vladimir. Diante de vários insucessos para retirar os efeitos devidos a essa verdade junto aos tribunais brasileiros – tantas vezes denunciada e discutida igualmente pela Comissão de Anistia pelas Comissões da Verdade – seus familiares foram procurar a justiça devida em outra lugar, no caso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Conforme notícia de El Pais, edição de 5 deste julho, o julgamento foi bem diferente do que tinha sido dado ao caso pelos tribunais do Brasil. A CIDH “condenou o Estado brasileiro pela falta de investigação, julgamento e punição aos responsáveis pela tortura e assassinato do jornalista Valdimir Herzog”, considerando “o Estado como responsável pela violação ao direito à verdade e à integridade pessoal, em prejuízo dos familiares de Herzog.”
O Tribunal enquadrou o crime como de lesa-humanidade determinando ainda que o Brasil “deverá adotar as medidas mais idôneas conforme as suas instituições para que se reconheça o caráter imprescritível dos crimes contra a humanidade e crimes internacionais, assim como arcar com os danos materiais, imateriais e custas judiciais e advocatícias.”
Esse verdadeiro mandado, agora que uma Corte internacional manda o Brasil fazer o que é justo, não constituiria sinal de que a justiça – a judicial – embora tardia, não falhou? – Do ponto de vista meramente formal sim, mas considerados os julgamentos dos tribunais brasileiros às ações movidas pela família do Vladimir, o efeito material da sentença do Tribunal Internacional está chegando muito tarde e prossegue falho de efeitos se ainda levar-se em conta o que os seus familiares ainda enfrentarão aqui para verem reconhecidos os direitos que a CIDH re conheceu.
A notícia do El País se encarrega de antecipar o longo caminho que vai ter de ser vencido nessa tramitação processual, aumentando a dor, a injustiça e o atraso em se reparar, minimamente, o crime praticado pelo Estado brasileiro durante aditadura. O jornal recorda que, já em 2011, a CIDH também “ordenou o país a processar os acusados pelos assassinatos cometidos no combate à guerrilha do Araguaia, quando desapareceram 62 pessoas. Isso não foi feito, entretanto, conforme apontou a subprocuradora-geral da República, Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, em uma entrevista ao El País, em março.”
De 1975, quando Vladimir foi assassinado, a 2018, medeiam 43 anos. Será que um tempo desses pode ser considerado razoável para que o país, por suas instituições públicas, investigasse, julgasse, condenasse e executasse e punisse os responsáveis pelo crime? Se for lembrado o caso de Rubens Paiva, como faz a notícia de El Pais, assassinado em 1971, o período de tempo ainda é maior. A esperança de ações judiciais do tipo das que procuram justiça contra as atrocidades da ditadura chegarem ao fim é frustrante. Mesmo assim, a mesma notícia revela que a procuradora geral da República pediu ao Supremo Tribunal Federal “reabra o caso do ex-deputado Rubens Paiva, o que poderia servir de precedente para outros casos.”
Se a resistência do (in)devido processo legal continuar no ritmo desses dois casos, o Brasil seguirá somando aos seus repetidos golpes de estado, a infidelidade histórica que tem imposto ao seu povo, fazendo tardia a sua justiça, falhos os efeitos dela esperados, um “Estado de direito” que simula, mas não garante democracia.
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