A Declaração dos Direitos Humanos e a resistência democrática

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Adeson Bussinger

Neste mês de dezembro de 2018 comemoram-se no mundo inteiro os exatos 70 anos decorridos da proclamação da Declaração dos Direitos Universal dos Direitos Humanos, sobre a qual muito já se escreveu e corretamente se reporta do quanto indubitavelmente progressivo, civilizatório, humano consiste este célebre documento internacional, além de seus reflexos jurídicos nas Constituições e leis de dezenas de países, incluindo o Brasil. Isto certamente me desobrigará, como advogado, portanto, neste breve artigo, de me estender sobre suas qualidades jurídicas e sistemática no direito internacional que já foram muito bem destacadas e repisadas por colegas de mais consistência teórica e experiência que eu neste tema, mas, ainda sim, é meu propósito discorrer sobre o atual momento mundial e nacional, à luz dos direitos humanos.

Desejo então sublinhar apenas três aspectos, que para mim são os mais relevantes neste ano de 2018, e que a meu ver podem, irremediavelmente, significar e principalmente atribuir um significado muito especial e útil a este documento mundial e humanitário firmado em 1948, não somente pelo EUA, mas pela ex-URSS, que, como todos sabem, foi o país que mais perdeu vidas de soldados na luta contra o exército nazista, em número muito superior aos americanos, incluindo a nossa Força Expedicionária brasileira, cujos heroicos pracinhas também estiveram no campo de batalha militar contra o nazismo na Itália. Quais são estes aspectos?

O primeiro é que, em 1948, o mundo havia saído de uma guerra, na qual, além dos interesses obviamente econômicos envolvidos, se enfrentava a ameaça nazifascista representada pela Alemanha Nazista e por outros regimes análogos como o italiano, que, se vitoriosos, poderiam sem dúvida ter imposto sobre grande parte da humanidade um estado de terror e retrocesso antidemocrático ainda maiores. Pois bem, hoje em dia, – ainda que em proporções evidentemente menores (por enquanto) – enfrentamos também um forte avanço deste mesmo ideário autoritário de outrora (um neofascismo reinventado), em suas linhas principais, com vitórias eleitorais expressivas na Itália, Áustria, Andaluzia, forte crescimento no EUA sob o governo Trump, e, recentemente, a rápida ascensão no Brasil através da eleição do ex-capitão Jair Bolsonaro (para aqui citar os exemplos mais expressivos de atual aliança entre a elite empresarial neoliberal, financista e políticos de partidos de extrema-direita), o que, certamente, faz desta importante declaração um valioso instrumento humanitário e jurídico de defesa da democracia, em tempos de resistência.

O segundo aspecto que considero importante diz respeito à barbárie econômica, pois no final da década de 40, quando proclamada pelas Nações Unidas, o mundo trazia mais de 50 milhões de mortos dizimados pela II guerra, assim como a fome e o desemprego, sendo que cerca de 6 milhões destes seres humanos foram executados em campos de concentração promovidos por Hitler. O fato é que – e este é o desafio!- estamos novamente em uma alucinada escalada armamentista e de guerras regionais, promovidas principalmente pela indústria bélica americana, com centenas de milhares de mortos e lesionados nos conflitos militares do Iraque, Afeganistão, Síria, o que acrescido pelo flagelo social e cruel dos imigrantes oriundos da África, oriente médio, Venezuela, América central, México, e também a mortalidade infantil, a fome e desemprego, doenças e acidente no trabalho, causados fundamentalmente pelo capitalismo em todo o globo terrestre onde seu modelo econômico predomina, em maior ou menor intensidade, coloca em destaque a emergência dos enunciados sociais da Declaração de 48, como o direito a uma vida digna, trabalho, alimentação suficiente, saúde, educação, cultura, segurança, maternidade, infância assistida, moradia, lazer, proteção social na velhice, enfim, um nível de vida suficiente para assegurar ao ser humano e sua família a dignidade que a vida humana requer, sem qualquer distinção de raça, credo, cor da pele, como bem expresso no artigo 25 do documento aniversariante, e, ademais, este conjunto de principais direitos sociais perpassa todos os 30 artigos em que é redigido e proclamado.

O terceiro aspecto, este tem a ver com as discriminações, o que também foi um dos males causados pela segregacionista campanha militar e ideológica do nazifascismo derrotado ao fim da II guerra mundial, e que hoje infelizmente também renasce, sob o impulso dos partidos de extrema-direita, igrejas e seitas fundamentalistas que se reivindicam evangélicas, partidos políticos populistas de extrema-direita, institutos e organizações sociais, culturais e políticas que pregam abertamente ideias de intolerância, anti-LGBT, xenofobia, tortura, anticomunismo, antissocialismo, anti-esquerdas, anti-intelectuais, anti-ciganos, intolerância e discriminação contra negros, judeus, árabes e africanos, ideias e práticas que colidem frontalmente com o que anuncia o art. 2 da Declaração, que assegura que todos podem invocar estes direitos e liberdades, nomeadamente de raça, cor, sexo, língua, religião ou opinião política. Este é um dos maiores desafios deste aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos no mundo e aqui na América Latina.

Por último, em relação a este ano, especificamente ao Brasil, estamos sobrevivendo a um ambiente político e econômico de profundo ataque tanto à democracia, como aos direitos sociais conquistados pela recente luta contra a ditadura militar de 1964, além de um visível ataque aos direitos de liberdade e defesa, o que, para também exemplificar, podemos citar, no campo social-econômico, a reforma trabalhista do “negociado sobre o legislado e da terceirização”, o aumento do desemprego e da fome; no item democrático o aprisionamento e aumento da prática de aprisionamentos seletivos/políticos de adversários políticos, como está acontecendo atualmente com o ex-presidente Lula (independente do mérito), preso e condenado por um juiz notoriamente suspeito (agora coincidentemente indicado para ministro político do governo direitista), bem como, ainda no campo democrático, propostas como o “escola sem partido” que visam amordaçar o debate político em todo o ensino brasileiro, do primeiro ao terceiro grau, o que novamente faz desta importante declaração mundial de direitos humanitários um imprescindível suporte para as lutas sociais e democráticas, além da importante fundamentação jurídica ante as legislações autoritárias e antissociais, o que está em consonância principalmente com os artigos 3, 4, 5, 6 e 7 desta declaração, além do artigo 19 que assegura o direito de opinião e o artigo 10 que assegura a todos, sem distinção política, o direito, em caso de acusação de algum delito, a ser processado e julgado por um tribunal independente e imparcial, o que, convenhamos, não é atualmente a realidade do judiciário brasileiro com as honrosas exceções de magistrados realmente isentos e comprometidos com os valores democráticos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Estes, portanto, são os pontos que entendo mais significativos nesta comemoração de dezembro de 2018, à luz (ou trevas…) deste cenário político e econômico em que vivemos, sendo que gostaria de encerrar este texto denunciando o recente assassinato dos líderes rurais do MST José Bernardo da Silva e Rodrigo Celestino, executados brutalmente no Estado da Paraíba, no último sábado, dia 8 de dezembro (dois dias antes da aniversariante Declaração Universal) que, somados ao cadáver da Vereadora do PSOL Marielle Franco (ao lado do provável cadáver insepulto do pedreiro desaparecido Amarildo Dias) expressam o quanto esta propalada data de 10 de dezembro possui mais um significado de LUTO do que propriamente uma comemoração festiva, e que sobretudo é preciso, talvez mais do que nunca, muita resistência, unidade na luta de todos os que de alguma forma e em algum lugar defendem as liberdades democráticas e os direitos humanos e sociais, para que, assim como em 48, não passemos tão perto, tão próximo aos horrores da barbárie e mesmo do risco de uma destruição total do mundo pelas injustiças e pela guerra.

*Aderson Bussinger, Advogado Sindical, Conselheiro da OAB-RJ. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais/UFF, colaborador do site TRIBUNA DA IMPRENSA SINDICAL, Diretor do Centro de Documentação e Pesquisa da OAB-RJ, membro Efetivo da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ. Membro Efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros-IAB, integrante do PSOL e da corrente Resistência.

http://www.tribunadaimprensasindical.com/2018/12/a-declaracao-universal-dos-direitos.html