Crônica da hipocrisia ultraliberal
Giovanni Frizzo*
Assim como muitas pessoas, a tarde do primeiro dia de 2019 foi em frente à TV, assistindo ao patético show de mentiras deliberadas sobre um suposto país em que imperava o socialismo e o politicamente correto e que, a partir de agora, se libertará disso. As figuras que ali no púlpito disseminavam mentiras se diziam representantes dos desejos do povo, embora com uma imensa quantidade de armas e militares para se defender do próprio povo.
A jovem via tudo aquilo com um certo espanto, não entendia bem o que estava escutando, especialmente quando ficou sabendo que tudo que aprendeu na escola era lixo marxista, ainda que sequer tinha ouvido falar em Marx alguma vez na escola. Aliás, na escola só tinha aprendido que deveria obedecer e tirar boas notas para ser “alguém na vida” (conseguir um emprego, qualquer que seja e pelo salário que fosse). Mas o que mais chamou sua atenção foi a forma como aquela figura covarde e raivosa destilava ódio contra uma chamada “ideologia de gênero”.
Ficou ainda mais confusa, pois até em novelas e programas do canal de TV mais assistido se falava na luta por igualdade de direitos entre homens e mulheres, da importância da inserção da mulher no mercado de trabalho, do aumento de mulheres na política, da Lei Maria da Penha e das 300 mulheres que denunciaram um tal João estuprador que se dizia de Deus.
Resolveu então procurar alguém que sempre esteve a seu lado nos momentos mais importantes, que a acompanhou durante boa parte de sua ainda curta trajetória, que trazia respostas e perguntas que a faziam aprender coisas sobre o mundo e que, nos últimos tempos, havia sido transformada em uma aberração traidora da pátria e repugnante defensora de direitos humanos: sua professora. A principal razão de buscá-la é que a professora sempre a incentivava a acreditar que, mesmo sendo mulher, ela tinha o direito de sonhar, de ser o que quisesse e amar quem desejasse. E que ela deveria lutar para conseguir sonhar, ser e amar.
Até aquele momento isso fazia muito sentido, pois tudo que ela não queria era ser apenas mais uma “moça de família”: esposa e empregada de um marido que é seu dono; mãe de um filho que não quis ter; filha de um pai bêbado que a agride só porque é seu pai; e não queria ser uma mulher que preenchia formulários escrevendo “do lar” quando a informação era sobre sua ocupação/emprego, afinal de contas, mesmo desempregada quer ter o direito de dizer que é profissional de alguma coisa.
Como era janeiro, queria respeitar as férias da professora, mas era muita a sua angústia diante de tanta coisa estranha. Graças à tecnologia, inclusive usada ilegalmente para o então candidato ganhar as eleições, resolveu mandar um áudio para a professora pois assim não se sentiria tão mal em importuná-la no recesso escolar.
“Professora, tudo bem? desculpe incomodá-la em suas férias, mas estou com uma dúvida angustiante demais e só você pode me ajudar. Ouvi na TV o cara que agora é presidente falar que vai combater a ideologia de gênero. As mulheres já sofrem tanto, por que ele disse que vai fazer isso?”
A professora responde digitando:
“Oi, tudo indo. Eu achava que esse negócio de ‘ideologia de gênero’ não existia, era só mais uma mentira do Hipócrita eleito, mas aos poucos fui compreendendo porque ele tá falando isso”.
“Ah, é. E porquê é então?” Digitou ela.
“Hmmm, vou te mandar um áudio, é difícil escrever nesse tecladinho”.
[áudio] “É o seguinte: o capitalismo tá se arrebentando na crise, os ricos querem ficar cada vez mais ricos e isso só é possível destruindo as mínimas condições de vida e respeito que conquistamos ao longo do tempo. Veja, os dois maiores problemas do Brasil são o desemprego e falta de investimento na educação, não é? Pois bem, para os governos isso também é um problema e resolveram colocar toda a desgraça nas costas das mulheres. Por exemplo: se todas as mulheres ficarem em casa, fazendo trabalho doméstico e cuidando dos filhos, elas não irão disputar emprego e daí o índice de desemprego diminui, mesmo sem aumentar o número de empregos, parece genial não é? Mas não, é triste! E ainda é mais perverso, lembra que foi aprovada aquela PEC que congela investimento em educação por 20 anos? Pois é, significa que quanto menos demanda do povo por escola, melhor para o governo e os ricos. Daí veja, se a mulher ficar em casa para cuidar das crianças, os filhos não precisam de creche e escola porque a mãe educa e a ministra aquela da goiabeira acha isso lindo. Aliás, o Hipócrita eleito já anunciou que cada vez mais a educação será EaD, será à distância. Significa que até adolescentes ficarão em casa na frente do computador ao invés de ir para a escola, não precisará mais de professores porque as mães educarão, nem mesmo de universidade para formar professores, não precisará mais de recursos para escolas porque elas serão substituídas por um programa de computador”.
“Nossa, que horror, não tinha pensado nisso”, digitou.
[outro áudio] “Pois é, por isso que esses hipócritas mentem dizendo que querem restabelecer a família tradicional, quando na verdade só querem que a vida da mulher seja lucrativa para os ricos. Para isso, eles têm que reprimir e condenar a mulher que se liberta dessas ideias retrógradas, tem que ‘educar’ a mulher para ser submissa e chegam a justificar isso até com a Bíblia. Em toda a história, a mulher sempre foi um problema para a elite”.
“Hmmm, nesse caso, a mulher parece ser a solução, não é?”, digitou.
Um minuto pensando. E responde por escrito – “Uau, tens razão”, junto com uma carinha amarela feliz.“
Profe, muito obrigada, me sinto mais aliviada por entender o que se passa e mais preocupada com o futuro. Não vejo a hora de voltar a escola e falar com você novamente”.
“Minha querida, infelizmente isso não será possível, pois por coisas como essas que te disse, agora sou considerada um lixo marxista que deverá ser banido da escola”.
Carinha amarela triste.
* Professor da UFPel (Universidade Federal de Pelotas) e militante do PCB – RS
Arte sobre imagem de Lo Cole, para The Economist (Via Opinião e Notícia)