A privatização da saúde pública

imagem Outras Palavras

Proposta de Paulo Guedes devastaria SUS, promoveria privatização maciça e desestruturaria atendimento à população. Leia também: desigualdade racial na Saúde; o cardiologista que teria abusado; 50 anos de polêmica sobre a morte

Por Maíra Mathias

O RISCO DO VOUCHER

Reportagem da Folha entrevistou especialistas que criticam a ideia do ministro da economia Paulo Guedes de criar um voucher para saúde. Nos países onde essa política funciona – todos sem sistemas públicos organizados – o Estado entrega um vale para o cidadão, que vai buscar no mercado consultas. Não há detalhes de como isso funcionaria no Brasil. Se sair do papel, é o fim do SUS. Guedes é defensor ferrenho da privatização e não é descabido pensar que junto com o voucher, viria a venda de hospitais e outros serviços próprios, nota a matéria.

De acordo com uma revisão de artigos que estudaram países com o voucher (como Bangladesh, Índia, Moçambique, Nigéria, Senegal, etc.), o instrumento imprime irracionalidade na utilização dos serviços. Isso porque com um sistema público, a lógica da organização em rede preconiza que as pessoas tenham seu primeiro atendimento na atenção básica e, dali, sejam encaminhadas para especialistas, por exemplo. Nessa comparação, de posse do vale, a população seria estimulada a ir diretamente para o especialista (assim como acontece com quem tem plano de saúde no Brasil, lógica que algumas empresas, agora, tentam mudar com a introdução de médicos e enfermeiros de família). Isso tornaria o sistema de saúde mais caro e menos eficiente.

“Não é como pegar uma bolsa família e ir ao supermercado comprar mantimentos. Se o cidadão não estiver orientado pela atenção básica, ele provavelmente terá um consumo ineficiente e ineficaz do serviço”, explicou Walter Cintra, coordenador do curso de gestão de saúde da FGV, à Folha. “A saúde exige uma rede estrutura, hierarquizada, com um caminho lógico. Não pode ser caótico assim. A pessoa sai de casa e vai direto para um cirurgião torácico, como quem vai comprar um sapato”, diz por sua vez Gustavo Gusso, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. O Ministério da Saúde afirma desconhecer a proposta de Paulo Guedes.

POLÍTICA IGNORADA

Doze anos depois de ser lançada, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra só foi colocada em prática em 57 dos 5.570 municípios brasileiros. A constatação foi feita por pesquisadores da USP e da secretaria estadual de saúde de São Paulo, que entrevistaram gestores e membros de movimentos sociais de todo o país. Na avaliação deles, os gestores não aderiram porque acreditam que o mesmo serviço deve ser oferecido para todos. “O problema é que nem todo mundo parte das mesmas condições. Ao oferecer o mesmo para todos, você corre o risco de aprofundar desigualdades”, pondera Luiz Eduardo Batista, um dos autores do estudo, em entrevista ao Globo.

A Política lista uma série de doenças e condições mais prevalentes na população negra. Além das diferenças biológicas, alerta para o racismo institucional que provoca distinções no tratamento recebido nos serviços de saúde e impacta no acesso a eles. Na avaliação do epidemiologista Mário Círio Nogueira, também ouvido pela reportagem, as pesquisas no Brasil se detêm mais sobre as diferenças sociais e não há tantos estudos sobre as diferenças raciais. Outro problema é que nem sempre os serviços de saúde coletam informações sobre raça e cor dos usuários. De toda forma, há pesquisas que mostram o racismo institucional nos serviços de saúde. Nogueira é autor de uma delas, que acompanhou 481 mulheres que receberam tratamento para câncer de mama num mesmo serviço. Dez anos depois, as mulheres brancas tinham maiores chances de sobreviver – e mesmo na comparação entre brancas e negras pobres, as negras morriam mais.

O risco do “vale-saúde”
Categoria
Tag