O ódio de classe e a mobilização dos trabalhadores

imagemJuliano Baltazar Pereira*

A luta de classes tem sido o motor da história e para os comunistas é central a superação de qualquer forma de relação social marcada pela exploração do homem pelo homem. Tal estratégia perpassa por uma análise da realidade, das condições objetivas e subjetivas para o socialismo. Diante disso, compreender o funcionamento psicológico dos sujeitos e seu impacto político é tarefa importante para uma estratégia e tática correta rumo ao nosso objetivo.

Mesmo em períodos de acirramento da luta de classes – como o que estamos vivendo – posições de caráter “pacifistas”, explícitas ou implícitas, disputam a hegemonia dos setores progressistas e revolucionários. Esses campos por vezes, acabam trazendo uma visão idealista e fantasiosa da luta de classes – isso quando se reconhece em uma –, acreditando ser possível superar essa contradição através do apelo moral, de um sentimentalismo abstrato, que no período das eleições se expressou com o discurso de grande parte da esquerda contra a “política do ódio” de Bolsonaro. Buscaremos de forma sintética demonstrar que: as emoções e sentimentos são funções psicológicas importantes para nossa vida independente de seu caráter; ao longo de nossa relação com o meio constituímos uma cadeia emocional, no qual certos conteúdos despertaram certos afetos, por vezes independentes de nossa vontade; o ódio como um sentimento, pode ser um ser importante motivador para mobilização dos trabalhadores rumo a sua libertação.

Emoções e Sentimentos

Discutir emoções é demasiadamente complexo dentro da psicologia – ou em outras áreas da ciência que tratem sobre o tema – já que existem centenas de abordagens, que partem de diferentes campos epistemológicos. Buscaremos nos aproximar de uma abordagem que tenha como base o materialismo histórico e dialético, entendendo que esse método nos dá ferramentas para superar concepções biologizantes, mecanicistas e idealistas de sujeito e como esse se configura.

Vigotski, psicólogo soviético do início do século XX, tem grandes contribuições para a psicologia e para pensar o tema aqui tratado, entre elas:

· Diante da dificuldade das abordagens em psicologia em construir uma psicologia integral e geral por conta de seu método baseado em uma lógica formal, Vigotski faz uma revisão crítica das principais teorias da época a partir do materialismo histórico e dialético.

· Ao buscar superar o “beco sem saída”[1] que a psicologia se encontrava, no qual de um lado haviam teorias que concebiam a essência humana a partir do espírito, da metafísica e do outro o viam como uma mera extensão biológica, propõem que há duas linhas de desenvolvimento: biológica e social [2] [3]. O processo ontogenético, na relação dialética entre os dois desenvolvimentos é saída para compreender o ser humano concreto. Todas funções psicológicas superiores (atenção, percepção, memória, volição etc.) incluindo as emoções e sentimentos, tem de ser compreendidas dentro de uma relação dialética entre biológico e social/cultural [4].

· O trabalho é o processo base para compreender a relação do ser humano com a natureza e seus pares. A partir da internalização das formas culturais, nos “hominizamos”, incorporando a tese de Marx e Engels de que não existe uma “essência” humana – biológica ou do espírito – mas relações sociais no qual o homem é produtor e produto, e assim o ser social constitui sua consciência, e não ao contrário.

· O fim das dicotomias, como pensamento e linguagem, emoção e cognição etc. inserindo a compreensão de unidades que só podem ser analisadas dialeticamente.

Portanto, o ser humano para suprir suas necessidades, se relaciona com a natureza mediante o trabalho modificando o mundo ao mesmo tempo que é modificado por esse. Tal processo o permite superar a determinação biológica e passar a controlar seu próprio comportamento – através da consciência e autoconsciência – e a natureza. A partir da internalização da cultura, o sujeito se desenvolve plenamente, se transforma de fato em um “ser humano”.

A superação dos dualismos (emoção/cognição, pensamento/linguagem, memória/imaginação) nos permite compreender o funcionamento psicológico como unidades e não elementos. Busquemos exemplificar utilizando as emoções. Embora nascemos com certas emoções, o social irá modificá-la, configurá-la. Essa configuração irá depender do meio em que essa pessoa está inserida, ou seja, as emoções se configuram de maneira histórico-social. É verdade por exemplo, que nascemos com a capacidade de sentir medo, uma atividade psicológica acompanhada de uma reação orgânica que libera adrenalina, o cérebro aumenta o fluxo sanguíneo nos músculos para que o corpo reaja com maior velocidade ao perigo. Porém, o que o meio social irá configurar são os conteúdos pelo qual teremos essa reação emocional. Seria medo de palhaço? De falar em público? Pelo quê e quanto dessa emoção emergirá dependerá da relação sujeito-meio. Emoção e cognição atuam juntos, como unidade. O conteúdo intelectual de algo influencia as emoções e sentimentos, porém, o contrário também é verdadeiro: os afetos influenciam o modo de percebermos ou compreendermos algo.

Bozhovich [5], psicóloga que se propõem a pesquisar a formação da personalidade a partir dos pressupostos da psicologia Histórico-Cultural, identifica que os afetos estão entrelaçados com as necessidades e motivos (englobando aspirações, desejos, sonhos etc.) do sujeito, constituindo portanto a força motriz da ação. A força de determinada emoção ou sentimento está ligada a força desta necessidade para a pessoa.

O ódio é um sentimento complexo no qual seu conteúdo é constituído socialmente. Sentimos ódio pela traição de um companheiro ou companheira, porque em nossa sociedade a monogamia tem uma centralidade e hegemonia nas relações de nossa cultura. Portanto, não é algo natural, mas cultural. Os valores ligados a relação monogâmica por todo seu significado tem força para emergir sentimentos de grande intensidade, como o amor e o ódio. Em uma sociedade em que a monogamia não tenha tal destaque, o termo “traição” poderia perder seu sentido em relações e o ódio pelo companheiro(a) se relacionar com outra pessoa provavelmente não existiria. Isso porque não teríamos uma forte necessidade de ter a exclusividade do outro, entre outras necessidades que estão ligadas a essa forma de relacionamento. O exemplo da monogamia nos parece didático para apresentar alguns elementos, não é objetivo aqui entrar no debate das formas de relacionamentos e muito menos afirmar que as pessoas que se relacionam de outra maneira estão “mais felizes” ou em melhor situação do ponto de vista psicológico.

O ódio, como os diversos sentimentos e emoções, tem uma função específica de guiar nossa relação com o ambiente. Como diria Vinicius de Morais, é “melhor ser alegre que ser triste”, porém, ambas as emoções cumprem duas – dentre várias – funções importantes: refletir uma necessidade do sujeito, seja do estômago ou da fantasia, para que esse busque algo que supra tal carência, desejo ou aspiração, constituindo então um motivo para a conduta do sujeito; também reflete o resultado de tal atividade ou sua possibilidade de sucesso ou insucesso. Vamos novamente recorrer a um exemplo. Se jogar futebol é algo que me deixa alegre por conta do prazer que tal atividade faz emergir, sentirei necessidade de exercer esse esporte e provavelmente o farei, mesmo que para isso tenha que levantar. Se vejo uma pessoa sendo injustiçada, sinto tristeza, a necessidade de me livrar deste afeto poderá ser suprida pela conduta de intervir na injustiça ou simplesmente sair do contexto. As emoções e sentimentos, nos estimula a algo e mantém nossa orientação para uma determinada atividade. Do ponto de vista da função psicológica, nenhum sentimento é bom ou ruim em si, todas tem uma função para orientar o sujeito. O caráter das emoções dependerá das necessidades e da possibilidade de sua realização ou não. Aqui já podemos ter uma ideia de que aqueles que tem menos possibilidades de realização de suas necessidades, pertence as classes subalternas.

O ódio em uma sociedade de classes

A sociedade em que vivemos, é a sociedade capitalista, na qual o meio de se produzir os produtos necessários para a reprodução da vida é realizado pelo intercâmbio de mercadorias. As relações sociais hegemônicas perpassam principalmente por duas classes sociais antagônicas: burgueses e trabalhadores assalariados. Enquanto o primeiro detém os meios privados de produção (terras, ferramentas, fábricas, empresas, matérias-primas etc.), o segundo, tem apenas a sua força de trabalho para vender aos primeiros.

Essa cisão entre classes sociais antagônicas, irá constituir uma determinada subjetividade diferente entre os sujeitos desses dois grupos. O burguês terá certos costumes que o trabalhador não tem, uma educação diferenciada, possibilidades diferenciadas e, portanto, terá um sistema psicológico particular [6] e uma tendência a um maior desenvolvimento pelo seu acesso a riqueza cultural historicamente criada. A ideologia busca mascarar tais diferenças e na sociedade capitalista colocará que somos todos iguais, inclusive nossos interesses e possibilidades para supri-los. Uma das formas da ideologia agir é colocar que certas situações e medidas, farão emergir sentimentos iguais para toda população, como nas medidas para saírem de um crise.

A ThyssenKrupp, um dos maiores grupos industriais da Alemanha, com uma receita líquida mundial no primeiro semestre de € 20,34 bilhões e lucro operacional de € 501,00 milhões [7]. A empresa está inserida nos setores de matérias primas, siderúrgica, elevadores entre outros, tendo também no Brasil um lucro bilionário. No período de “ouro” da economia brasileira, a receita do grupo era de 5% a 7% em relação à receita mundial. Em entrevista realizada pela Valor Econômico, o presidente da empresa da companhia demonstra grande entusiasmo por compreender que a economia brasileira estava “voltando aos trilhos”. Hoje, podem ser otimistas com um crescimento de 2 dígitos [8]. A “estabilidade” a que se refere o presidente do grupo, ocorre justamente em um momento em que ostentávamos 13% de desemprego, cortes na saúde, educação e outros direitos sociais. Seu otimismo vem a partir da eleição de um governo de extrema-direita que enfatiza que não hesitará em destruir qualquer organização de esquerda. Um período de imenso desespero para a maioria da população, no qual a tristeza, raiva, angústia são emoções e sentimentos amplamente presentes no dia a dia e sobretudo na situação atual. Porém para o grupo Thyssen, a alegria é o que emerge, pois graças às ações do governo – medidas para sair da crise em que os capitalistas nos enfiaram –, está de algum modo abrindo a possibilidade de se voltar a taxa de lucro, voltar os 7% da receita mundial.

O sorriso dos acionistas da TyssenKrupp, parece ser para os trabalhadores, desespero e precarização. Se encararmos as particularidades do trabalhador, analisando de maneira mais concreta, veremos que para os negros e negras, população LGBT, mulheres etc. a dimensão do sofrimento será ainda mais intensa. O bem-estar do burguês é nosso sofrimento físico e psicológico.

Seria porque essencialmente o burguês é mal, a encarnação do demônio enquanto os trabalhadores nasceram para serem submissos? “Uns nasceram para sofrer enquanto o outro ri”? Evidente que não! Pela própria natureza do sistema capitalista, no qual não daremos conta de expor de maneira mais detalhada, essa oposição entre capitalista e trabalhador, determinará o antagonismo na forma de sentir os efeitos da crise. Embora a ideologia faça ocorrermos no erro de pensar que na crise capitalista todos perdem e, portanto, temos que trabalhar juntos para superar esse momento ruim, na verdade, quando nós trabalhadores sentimos o efeito mais nocivo da crise – desemprego, baixo poder de compra, endividamento, cortes de recursos pelo Estado etc. – para os capitalistas essa já é saída da recessão. Para estes, a crise ocorre muito antes com a redução da taxa de lucro. Por motivos de limitação de espaço, não iremos discorrer sobre causas, entradas e saídas da crise econômica. O fundamental é compreender que nestes momentos podemos ver de forma mais clara que estamos em oposição às classes dominantes.

Diante disso, o ódio tem uma função importante para a mobilização? A resposta é sim! O ódio, como já exposto, é um sentimento complexo, ele pode ser entendido como um conjunto de emoções negativas, que saltam a um nível superior. Não falamos em “negativo” num sentido moral, mas de seu processo, pois ele emerge justamente como resposta a determinado conteúdo que lhe cause ameaça, desgosto, dano etc. [9]. Para ficar mais compreensível, vamos a um exemplo: a linha 7 da CPTM, em São Paulo, é muito conhecida pela sua grande extensão e recorrentes problemas, que geram atrasos, paralisações, além de intensa lotação nos horários de pico – e as vezes além. Não raro, você verá pessoas relatando seu ódio com o trem, com a linha 7 etc. Por tantas vivências negativas com o trem, essa pessoa desenvolveu um ódio referente a este. O ódio nesse sentido, vem a ser um desdobramento de outras emoções negativas, que tem como função alertar o sujeito na sua relação com o meio sobre algo ameaçador ou nefasto. A perturbação dessas emoções, provoca uma reação do sujeito para a eliminação desse estímulo perturbador, ou seja, cria uma necessidade de mobilização da pessoa. Emoções negativas portanto, costumam ter esse efeito “despertador” porque fazem romper com uma “normalidade”.

Enfim, podemos ter alguns elementos para definir o que chamamos de ódio de classe. O ódio, como já pontuamos é um sentimento que se constitui a partir de uma série de emoções negativas sobre algo. Importante salientar que não necessariamente o sujeito precisa passar por uma série de experiências negativas com determinado objeto – como no exemplo acima, falamos do trem – para que ela desperte o ódio sobre alguma coisa. A ideologia, em suas diversas manifestações (estereótipos, histórias, arte etc.) podem criar o sentimento de ódio sem sequer passar por uma experiência direta, tal como podemos amar algo sem nunca nos defrontado diretamente com algum de nossos sentidos. No período da escravidão o ódio contra a população negra era internalizado tão precocemente nas pessoas, que parecia natural odiar-nos. A ideologia e o imaginário pode criar monstros, mas isso só é possível porque na própria realidade há contradições que servem de base para o surgimento dessas ideias, ideias da classe dominante.

O que queremos dizer com ódio de classes, é o sentimento de ódio para a estrutura de classes sociais, em geral, e para a sociedade capitalista em particular, já que é essa a que vivemos. O ódio contra esse sistema econômico-político-social, ainda é abstrato, insuficiente para que se possa agir no sentido de destruí-lo. Por isso é necessário focar no ódio contra a classe burguesa, pois essa é a classe social fundamental para a manutenção da sociedade capitalista.

Não cabe aqui dizer que estamos com isso “disseminando o ódio”, buscando introjetar esse sentimento nas pessoas. Isso seria uma distorção, uma inversão. O que estamos buscando realizar é a destituição do véu ideológico, para que possamos compreender a raiz de nosso sofrimento. O ódio já existe e é produzido e reproduzido pelas relações sociais em que vivemos. Ele está presente quando o trabalhador tem de pegar condução lotada pela manhã e no fim do dia, com 4h diárias no transporte; quando lhe falta dinheiro para conseguir suprir suas necessidades mais básicas; com a falta de segurança e o abuso da PM; com a necessidade de cozinhar seus alimentos com “lenha” por conta do aumento do gás de cozinha [10]; as pessoas que tem suas casas queimadas nas várias favelas que convenientemente pegaram fogo, em bairros com claros interesses para o capital imobiliário, entre inúmeros motivos no cotidiano das pessoas no qual certas situações objetivas nos fazem constituir o sentimento de ódio. A tarefa colocada é justamente direcionar esse ódio para a estrutura que o fez emergir e que por conta da ideologia em suas diversas manifestações, não aparece de forma explícita: a sociedade dividida em classes como consequência do modo de produção capitalista.

O ódio de classe e a mobilização enquanto classe

Como já pontuado, emoção e cognição são uma unidade. Isto quer dizer que o ódio sempre tem um conteúdo, é sempre ódio por algo, mesmo que esse algo não seja integralmente consciente[11]. Direcionar para a luta de classes esse ódio constituído pelos sujeitos no cotidiano bárbaro de nossa sociedade é dar um significado mais claro para esse sentimento que muitas vezes não é refletido pelo trabalhador ou refletindo a partir da ideologia dominante, sendo assim portanto apenas reprimido ou direcionado para outras coisas, por vezes a si mesmo (fonte de diversos problemas psicológicos).

Ao construir uma nova compreensão da realidade, para além da ideologia que nos é imposta mediante diversos mecanismos do Estado e privados, se abre um novo campo de possibilidades para esses sujeitos, como se organizarem para agirem contra esses males que o matam aos poucos.

O trabalhador que odeia a CPTM e quer vê-la privatizada, poderá direcionar seu ódio contra os setores dominantes interessados no sucateamento da empresa para justificar sua privatização; assim como as pessoas que passam a odiar a si mesmos, por não serem bons o suficientes e por isso serem demitidos e estarem desempregados, poderão compreender que sua situação não depende apenas de sua vontade ou qualidade, mas de um processo muito maior que envolve a dinâmica do capital de crises cíclicas; assim como os trabalhadores que odeiam uns aos outros e acreditam que a única opção é esmagar seu companheiro para conseguir o emprego, utilizando-se das opressões (racismo, machismo, LGBTfobia etc.) estruturadas na sociedade para se valer de vantagem, mas ao contrário, se veria como classe e o outro trabalhador como aliado fundamental para a superação desse sistema que o coloca como explorado, ele passaria a ter um ódio de classe, ou seja, um ódio direcionado à classe que o explora.

Portanto, o ódio de classe seria um grande motivador para a transformação desta sociedade. O ódio de classe não é apenas um sentimento, é uma unidade entre sentimento/concepção de mundo, que faz a pessoa se inconformar com o status quo, e por isso tem de agir. Esta unidade não é passiva, emoção e razão estão em conflito para quem guiará a ação. Por isso a necessidade da educação revolucionária para o máximo equilíbrio entre razão e emoção. O sentimento tem que estar submetido a uma estratégia, um planejamento. Para chegar nesse estágio, a formação política que envolve tanto prática quanto teoria se faz crucial, já que ao aprofundarmos a compreensão sobre a realidade, nos aproximamos mais de uma visão de totalidade. Assim, o ódio em abstrato ganha mais concretude, e poderá se transformar em ódio de classe.

Contrária à concepção que vê o ódio de classes como necessário para a luta contra o sistema capitalista, estão correntes “pacifistas”, muito comuns na esquerda pequeno-burguesa. Imaginam que um dia a humanidade tomará consciência dos males e juntos iremos procurar uma saída, ou que a educação, pura e simplesmente, irá fazer as próximas gerações serem “mais humanas”. A empatia e o amor seriam os únicos sentimentos necessários para a ação política. Nada mais estúpido. As ditaduras empresarial-militares na América Latina mostraram do que a classe dominante é capaz, tal como já haviam mostrado na Comuna de Paris no século XIX, nas experiências fascistas do século XX, agora na eleição de Bolsonaro em alto e bom tom diz que irá acabar com os “vermelhos”. Mas tal como John Lennon, acreditam que uma hora se juntarão todos a eles, e o mundo será um só.

Obviamente, ação política não tem como emoção motivadora, somente o ódio. Tal sentimento, embora necessário para que reflita o grau da necessidade de se mobilizar para destruir a sociedade de classes, não age sozinho na personalidade e conduta do militante. O amor se faz presente, amor pela classe trabalhadora, pelos explorados e oprimidos, pela a camaradagem, tudo que a humanidade criou e que à ela pertence como a arte, o esporte, entre outras expressões culturais. “Há dois de você: aquele que mata e aquele que ama” [12]. A dialética entre ódio e amor nos constitui.

Antônio Carlos Magalhães, inimigo histórico de nossa classe (como toda sua família), dizia que se tornou rei na Bahia com “o chicote numa mão e o dinheiro em outra”. A inevitabilidade da classe trabalhadora enforcá-lo com o chicote e socializar seu dinheiro, não nos faria ter sequer “1% da maldade do opressor” [13], até porque como tão bem descreve C.L.R. James, “as cruezas da propriedade e do privilégio são sempre mais ferozes do que as vinganças da pobreza e da opressão” [14]. Tal ato não seria por sadismo ou fetiche da violência, mas uma necessidade histórica. Não seria proferido contra o indivíduo Magalhães, mas contra sua classe. Caso não fosse necessário lhe darmos “uma boa bala de uma boa espingarda e enterrar-te com uma boa pá na boa terra” [15], com nossas boas ferramentas, faria boas obras e viveria como todos.

Se as emoções e sentimentos têm como função refletir a relação entre sujeito e ambiente e, portanto, servir para o controle e exercício consciente da conduta, sem o ódio de classes nossa tarefa histórica não se concretizará. Ódio que não será pelos indivíduos, mas por uma classe específica, essa que nos coloca em uma posição de completa exploração. No Brasil, as classes dominantes têm uma consciência social que traz muitas marcas do período da escravidão [16], e essas aparecem no seu autoritarismo. Conhecer a história do Brasil nos dá grandes pistas para compreender nossa subjetividade.

O que nos diferenciaria da “política do ódio” da extrema direita, podem se perguntar os leitores? O que nos diferencia é justamente o conteúdo e direcionamento desse sentimento. O que vem sendo chamado de “política do ódio”, são orientações políticas da extrema direita cujo o conteúdo estão ligados a valores conservadores. Ele se expressa no ódio contra a população LGBT, negra, pobres, mesmo que de uma maneira mais “maquiada”.

Em última instância, o ódio deles é contra o PT e principalmente ao comunismo. Não é uma novidade histórica o ódio ao comunismo, tendo em vista que esse é um projeto político, econômico e social radicalmente oposto ao capitalismo. O ódio da extrema-direita é o ódio reacionário da burguesia, de ver sua sociedade desmoronar junto ao seu poder. Embora a pequena burguesia proprietária e não proprietária acabe por assumir o protagonismo nas mobilizações políticas, a base de seu conteúdo é conservar a sociedade burguesa. Atacar tudo que se aproxime das pautas da esquerda, mesmo que de esquerda tenha apenas o “simbólico” e o “imaginário”, como no caso do PT, a reação avança com toda sua ferocidade atacando programas minimamente progressistas – e não estamos falando de um programa socialista ou de transição, mas de um progresso dentro dos marcos capitalistas.

Diferente da extrema-direita, o ódio do qual estamos falando tem uma orientação radicalmente oposta. Enquanto a extrema-direita utiliza desses sentimentos – que surgem da própria contradição social capitalista – para manter e aprofundar a ordem hoje estabelecida, isto é, manter a exploração que leva milhões à exaustão, a misoginia que mata milhares de mulher a cada ano, o racismo que faz milhões de negros e negras serem assassinados ou trancafiados, etc, o ódio de classes de caráter revolucionário vem justamente para destruir esta sociedade que em sua essência, produz desigualdade e miséria. Nosso ódio é contra essa estrutura que serve de base para a opressão e portanto contra a classe social que tem em sua natureza, uma dependência dessa sociedade.

Por fim, concluímos que não devemos lutar contra o “ódio” em abstrato, que traz implicitamente em maior ou menor grau, uma concepção pacifista de luta política. Negar simplesmente o ódio, como vimos é negar as necessidades não supridas, os desejos e sonhos não alcançados, é ignorar as frustrações cotidianas da maioria da população cujo a origem é a sociedade burguesa. Odiar essa sociedade não só é legítimo, como é necessário, é a única alternativa para a humanidade pois o caminho que o capital nos levará é o da barbárie. Mas para isso, precisamos destruir o véu ideológico que nos fazem sentir ódio de nossos pares e de nós mesmos, precisamos direcionar esse sentimento para que possa ser um impulsionador para a destruição dessa sociedade. Ódio àqueles que nos atacam, através do ódio de classes.

[1] VIGOTSKI, Lev Semenovich. O significado histórico da crise da Psicologia: Uma investigação metodológica. In: VIGOTSKI, Lev Semenovich.Teoria e Método e Psicologia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 203-420

[2] VYGOTSKI, L.S.. Obras Escogidas 3: Problemas del desarrollo de la psique. Madrid: Machado Libros, 2012.

[3] VYGOTSKI, L. S. Manuscrito de 1929. Educação & Sociedade, Campinas, v. 71, n. -, p.21-44, jul. 2000.

[4] VYGOTSKI, L. S.; LURIA, A. R.. A. Madrid: Fundación Infancia y Aprendizaje, 2007.

[5] BOZHOVICH, L.I. La personalidad y su formación en la edad infantil . Habana: Pueblo Y Educación, 1986.

[6] VIGOTSKI, L. S.. Sobre os sistemas psicológicos. In: VIGOTSKI, L. S.. Teoria e método em psicologia. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 103-137.

[7]http://www.valor.com.br/empresas/5034900/economia-comecou-estabilizar-no-brasil-diz-thyssenkrupp

[8]https://www.valor.com.br/empresas/6051569/thyssenkrupp-preve-crescer-dois-digitos-no-brasil-neste-ano

[9] Um exemplo que pode facilitar a compreensão do sentido empregado é a fome. A fome causa uma emoção negativa, que é a dor, irritabilidade etc. e essas emoções emergem para eliminarmos um estímulo que está causando problemas ao organismo, esse estímulo é eliminado com a ingestão de comida. A paixão é uma emoção positiva, no sentido de impulsionar o sujeito a conseguir algo – seu objeto de paixão. Para uma melhor definição de emoções positivas e negativas, ver Bozhovich (La Personalidad y Su Formación En La Edad Infantil,1986)

[10]https://www.valor.com.br/brasil/5487273/com-alta-do-gas-12-milhao-de-casas-passam-cozinhar-com-lenha-ou-carvao

[11 Para uma discussão mais aprofundada sobre o inconsciente na Psicologia Histórico-Cultural, ler: Carl Ratner – Lo inconsciente Uma perspectiva desde la psicologia sociohistorica (1994), Ligia Martins – A dinâmica consciente/inconsciente à luz da psicologia histórico-cultural (2016)

[12] Apocalypse Now. Direção de Francis Ford Coppola. 1979.

[13] Os cravos do Holocausto – Eduardo Taddeo. 2014.

[14] JAMES, C.L.R. Os Jacobinos negros: Tooussaint L’Ouventure e a revolução de São Domingos. São Paulo: Boitempo, 2010.

[15] Perguntas ao um bom homem – Bertolt Brecht

[16]https://lavrapalavra.com/2018/10/25/as-eleicoes-do-odio-e-os-afetos-na-politica/

*Militante do Partido Comunista Brasileiro, Coletivo Negro Minervino de Oliveira e Psicólogo.

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