Canto ao Clemente, a Marighella e Marielle

imagemSobre os 50 anos sem Carlos Marighella. Sobre este 2 de Julho sem o Clemente

Yang Borges Chung

Preâmbulo do Adeus ao último comandante da ALN

Iniciando a primeira página de um novo diário. Em um dia triste, começando logo pelo início da madrugada. Entre a leitura de um livro e algumas dedilhadas no violão, ao passar rapidamente pela internet, me deparei com uma notícia triste e impactante. A perda e a partida do nosso Clemente, o Carlos Eugênio. Tive a felicidade de conhecê-lo e conversar um pouco com este em Londrina no ano de 2013, durante o V Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina realizado na UEL. Assisti a sua participação em uma mesa redonda durante este evento e pude testemunhar o seu orgulho por ter sido um dos comandantes e quadros da Ação Libertadora Nacional (ALN). Organização dirigida por Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira. Carlos Eugênio, o Clemente, era o terceiro comandante na linha sucessória da sua vanguarda dirigente.

O seu não arrependimento, tenacidade e ímpeto implacável de esperança e rebeldia. Na sua fala, durante as entrevistas que procurei assisti, depoimentos vivos de participante e testemunha ocular da História. Pude observar, a alegria, o destemor, a esperança, a “fé” emuladora. A sua fala trepidante e aguçada de romancista das lutas do povo brasileiro. De participante direto e romancista também das suas próprias lutas em alguns capítulos da nossa História recente durante aqueles anos de chumbo da ditadura. Quando o vi falar, presencialmente, e toda vez que assisti uma nova entrevista que concedia ou outra que eu já havia assistido, ficava com a mesma impressão: era como se tudo aquilo que contava, ensinava e sonhava, continuasse ali. Vivo, latente, presente e intacto. Pelo menos, a paixão, os motivos e intensidade das ações e sentimentos que, ao lado de tanta gente, o fizeram lutar, sonhar e acreditar

E estamos tão próximos do 2 de Julho…

Ter que lhe homenagear nesta data. Obviamente é mais do que merecedor! Em datas de lutas e sonhos como no 2 de Julho, brilham as lutas e sonhos. Os olhares dos homens que creem, como disse Eduardo Galeano ao se referir a Che Guevara.
Mas agora, Clemente? O homenagearia muitas vezes…Se dependesse de mim, de nós, pela eternidade… Mas foste tão cedo! E agora, já terei tão precocemente que prestar este tipo de homenagem. O texto sobre os 50 anos sem Carlos Marighella seria um tanto diferente para este 2 de Julho. Não queria dizer que tu foste agora, ao lado de outros que já partiram aos portos da alvorada!

Então, em um diálogo no qual muitos lhe perguntariam, indago a ti, aos mortos e a certeza de luta dos vivos o seguinte: Por que jovens, como tu, seguiram aquele mulato baiano? Reconheceram a liderança e justeza do caminho trilhado por Carlos Marighella? Vamos aos argumentos da história…

Da Revolução Cubana ao golpe de 1964. Da resistência à prisão à luta armada de Carlos Marighella e de toda uma geração

É conhecida a importância estratégica de um país continental como o Brasil na geopolítica mundial e os temores que representavam aos interesses da política estadunidense e de frações importantes da burguesia brasileira as reformas de base propostas pelo governo de João Goulart em um cenário histórico e político de crise da hegemonia burguesa no Brasil durante o início dos anos de 1960. Temores de que após o seu desenvolvimento também pudesse se repetir no Brasil a experiência de uma revolução, tal como em Cuba no ano 1959, liderada por Fidel Castro e proclamada como uma revolução socialista em 1961. Mas o Brasil é um país com outras dimensões… A China já havia demonstrado o seu exemplo para o mundo com a vitória da Revolução Popular chinesa de 1949, dirigida por Mao-Tsé-Tung, após décadas de luta.

A práxis revolucionária de Fidel Catro e Che Guevara passaram a representar um ideário anticapitalista e Socialista de luta para os povos da América Latina a partir do seu exemplo. A Revolução Cubana teve profundo impacto, pois além de representar possibilidade concreta de eclosão e vitória de uma revolução Socialista em um país periférico, dependente e subdesenvolvido, resultado de todas vicissitudes do processo histórico colonial, figurava a poucos quilômetros de distância dos EUA. Aquela revolução teve influência, inclusive, no que diz respeito a possibilidade de êxito de um modelo de organização política e militar que prescindiu de uma organização partidária (pelo menos momentaneamente, do partido, no seu sentido mais clássico) para criar as condições subjetivas e potencializar dentro de determinadas circunstâncias históricas objetivas a tomada pelo poder e consolidação de um regime Socialista. Diferente das experiências da Rússia em 1917 e da China em 1949, com todas as suas particularidades históricas, econômicas e políticas. Países pelos quais Carlos Marighella visitou, ou mesmo, estudou atentamente as suas experiências revolucionárias.

Entretanto, o modelo de organização que orientou a direção do movimento 26 de Julho durante o período que se inicia após a tentativa de tomada insurrecional do quartel Moncada em 1953 e do início da guerra de guerrilhas deflagrado na Sierra Maestra, até os primeiros anos da vitória e consolidação da Revolução Cubana, não foge às características fundamentais do modelo de uma organização marxista e leninista. Em termos gerais, uma organização com quadros profissionais e disciplinados, dedicados e centralizados às tarefas de agitação, propaganda e elaboração de um programa para a revolução. Dedicados também ao fortalecimento das organizações dos operários, às suas lutas espontâneas e econômicas, mas dando um sentido programático geral e partidário para as suas lutas e criando as condições para dirigir o processo revolucionário, tomar o poder e implantar o socialismo e suprimir o Estado capitalista. Sua máquinaria contrarrevolucionária presente no seu aparelho estatal. Uma organização política e militar de combate e com estratégia revolucionária, Socialista. Se na Rússia czarista os bolcheviques eram a fração ou agrupamento mais resoluto e que agia como partido no interior do POSDR, no caso chinês a luta revolucionária não prescindiu de um partido comunista desde seu início, de uma luta de massas, da guerra de guerrilhas e de forte caráter nacional , anti-imperialista e Socialista. No caso cubano, ainda que o Movimento 26 de Julho não fosse um partido em termos clássicos, possuía direção centralizada em termos políticos e militares e um programa bem definido de luta pela sua soberania nacional, anti-imperilista, antimonopolista, antilatifundiária e mesmo com forte propensão para um programa socialista, já desde os primeiros anos de Sierra.

Por que Carlos Marighella naquelas circunstâncias da história se inspirou naquela experiência cubana de uma organização política e militar, ainda que sob moldes não regidos por uma estrutura tão hierárquica ou que agia de maneira mais horizontalizada possível? Na qual o lema “a ação faz a vanguarda”, parecia imperar. Como a ALN parecia funcionar? Algumas questões que seguem, talvez nos ajudem a refletir a respeito dos motivos de Carlos Marighella ter adotado aquele modelo de organização, ainda que brevemente os objetivos deste texto.

Após luta de Carlos Marighella no PCB durante quase quarenta anos, se processará uma inflexão da sua concepção de partido/organização na sua prática e teoria. Suas críticas terão ponto culminante com a sua ida a OLAS (Organização Latino-Americana de Solidariedade), ruptura com o PCB após carta dirigida a sua Executiva e fundação da ALN (Ação Libertadora Nacional).

Mas é importante destacar que esta evolução processual não se dará de maneira deslocada da sua análise a respeito das condições históricas e econômicas da conjuntura política vigente dos anos de 1960 e de importantes reflexões a respeito da “herança” estrutural e oriunda da nossa formação social. Neste sentido, a sua contribuição termina por reafirmar a análise totalizante da “tradição” marxista de outros revolucionários. Tudo veio do ritmo, do time da sua época e geração. Sua ação e concepção prática e teórica percorreu um caminho de dinamicidade e compreensão dialética dos condicionantes econômicos impostos pelas classes dominantes e da conjuntura do golpe de 1964 que instalou uma ditadura. Do clima e dos meios que buscou para resistir a partir da sua experiência. E também deu-se a partir da experiência e compreensão dos limites práticos e teóricos, da baixa força política ou capacidade do maior partido da esquerda brasileira naquele período (o PCB), para dar impulso ou estar disposto a criar as condições subjetivas para a luta revolucionária naquelas circunstâncias históricas as quais Marighella considerava das mais favoráveis para este processo, quando comparado a outros períodos que viveu da política brasileira.

Ainda assim, o partido em que militara por tantos anos foi o maior ou primeira expressão de partido de massas (ou com a maior capilaridade junto as massas) da história política brasileira. Mobilizador de grandes greves, campanhas e de maior capacidade de fazer filiações, ainda mais se levarmos em consideração os períodos que seus quadros e militantes “viveram” ou estiveram “submersos” na clandestinidade. Este partido, que teve muitos quadros, artistas e intelectuais nas suas fileiras. Sua lista a este respeito é muito extensa. Assim como uma das bancadas mais combativas e qualificadas da história política brasileira. Aquele partido tentou, mesmo com todas as suas insuficiências citadas aqui ou outras que não foi possível abordar neste texto, praticar, em alguma medida, uma concepção de luta e organização a partir de uma vida militante orgânica. No entanto, por uma série de fatores, isto se mostrou insuficiente para preparar e organizar o proletariado para os combates que ocorreriam. Seguramente, um dos mais importantes, foi a sua tática reformista em alguns períodos, a exemplo do seu posicionamento contido na Declaração de Março de 1958. Ou mesmo, quando adotou uma tática doutrinária em outros momentos, obviamente a exemplo do seu posicionamento contido no Manifesto de Agosto de 1950. Também, possivelmente, a sua visão cupulista e insuficiências práticas e teóricas que predominavam na sua direção.

O fato é que, a partir de certo momento, Carlos Marighella passou a acreditar que a organização pela qual lutara a quase quatro décadas não era mais o intrumento mais apropriado para dirigir ou ser um dos pilares dirigentes da luta e derrubada da ditadura e construção da revolução brasileira. Agora, Marighella acreditava que era necessária a criação da ALN. Resumidamente, uma organização política e militar que realizava ações táticas de combate e de propaganda no meio urbano voltadas para a preparação da guerrilha rural. O objetivo estratégico a médio e longo prazo. Marighella estudava o melhor momento possível dentro daquelas circunstâncias para deflagar a guerrilha rural. Contava com a juventude e com padres dominicanos devotados pela coragem e pela fé. Almejava criar colunas guerrilheiras que se constituiriam no embrião do Exército Popular de Libertação Nacional. Que seriam um dos condutores da almejada revolução brasileira.

Aquele caminho preconizado pelo dirigente comunista Carlos Marighella. Que também foi deputado e resistiu bravamente a violência e autoritarismo do golpe de 1964. Esses golpes absurdos que existem na história… Deixou para sempre na história e na eternidade este exemplo indelével nas suas ações que deram vida ao texto Por que resisti à prisão.

Teu exemplo ou muitas das suas ideias ou formulações foram largamente ou em certa medida seguidas pela esquerda armada no Brasil, presente nas mais diversas organizações partidárias ou políticas e militares, a despeito das suas diferenças. Marighella inspirou a esquerda mundial, após o sequestro do embaixador dos EUA, Charles Burke Elbrick, mesmo sem ter participado da ação ou sequer tivesse ciência que a mesma ocorreria. A esquerda presente no centro do capitalismo referenciou os brasileiros. Marighella também foi identificado e festajado pelos cubanos e Panteras Negras como liderança brasileira e mundial inconteste.

Importante lembrar dos caminhos de Carlos Marighella na sua juventude como estudante brilhante que respondia provas de física e química em versos no antigo Ginásio da Bahia e desafiava o autoritarismo do então interventor na Bahia Juracy Magalhães. O mesmo jovem que saiu da Bahia para contribuir na organização do PCB no eixo Rio e São Paulo. Na sua trajetória disciplinada e mesmo em alguns momentos dogmática no partido a sua ruptura e iniciativa de fundar a ALN ao lado de outros companheiros que o seguiram.

O até breve e a eternidade de tudo que fizeram. Canto ao Clemente, a Marighella e Marielle.

No dia 04 de Novembro de 1969 mataram Carlos Marighella, o mulato baiano. Antes dele, haviam matado outros. E torturado outros. Antes do 2 de Julho, mataram também tantos outros. Mas muitas Quitérias e Clementes se juntaram e se juntam a luta de todos todos os dias. Não se matam ideías. Não se destrói a história, a memória e a verdade. Caso contrário, como diriam “imortais”, como Bloch ou Benjamin, neste caso “os mortos e as suas lutas não estarão em segurança”. Não se brinca ou se desrespeita quem lutou ou mesmo deu a vida por nós. Por quê jovens como Clemente seguiram aquele mulato baiano? Clemente e tantos outros e outras queriam outro mundo. Educação e música pública com formação de qualidade. Carlos Eugenio, continuou sendo um músico em sala de aula. Clemente, que seguiu Marighella, queria fartura para muitos brasileiros

Até breve! Clemente!

Carlos Eugênio, o Clemente, queria ser mais um entre tantos brasileiros…
Clemente e muitos outros, seguiram Marighella, por conta daqueles sonhos dos nossos antepassados. Aqueles sonhos de esperança e de comida na mesa dos que ajuram a formar este país. Os sonhos e pedidos das estrelas do ceú que podem ser os pensamentos bons, de fé e devoção mesmo ingênuos que o povo tanto tem. Sonhos e pedidos desejados, mas conquistados apenas na luta . Vieram e vem com a luta dos calejados. Disse certa vez em entrevista outro quadro da ALN, José Luis Del Roio Del Roio, que sem luta “esta nação seria infinitamente mais pobre”. Muitos ficaram pelos caminhos ou ainda não puderam ver toda a primavera dos seus sonhos. Mas aquilo que conquistamos, não nos foi dado.

Em um ano como este, do lançamento do filme Marighella, que marca a estreia de Wagner Moura como cineasta, precisamos valorizar os trabalhos sérios e que se colocam ao lado do povo e de todos que resistiram quando tudo podia ser fácil e a regra era ceder… Dos que naquelas circunstâncias não tergiversaram em escolher o caminho mais difícil. Mas o caminho ao lado dos que sofreram e sofrem. Marighella foi seguido por uma geração. Mulheres, homens, jovens.

Gente que até “abriu mão da sua juventude”. Ou melhor, “que precisou amadurecer mais rápido”. Gente como Carlos Eugênio Paz. Alguém tão jovem, quando ingressou na ALN, Este mesmo jovem que, até outro dia, falava com o mesmo vigor nos olhos, nas maões e na têmpera. Falava de maneira engraçada a respeito da peruca que Carlos Marighella utilizava para disfarce. Do Joaquim Câmara Ferreira e dos eventos do passado tão presentes e recentes no seu corpo e mente.

Este país anoiteceu mais triste

Este país madrugou mais triste

Este país acordou mais triste

Com a perda de Carlos Eugenio, o Clemente

Meu coração bateu ontem e hoje mais triste

Se foi o último comandante ainda vivo da ALN

Clemente: Carlos Eugenio, Presente!

Clemente: Vive!

Marighella: Vive!

Marielle: Vive!

Toda noite e todo dia é também nascimento de um novo dia

Da certeza da esperança

Adeus, Clemente! Ainda não acredito que se foi…

Até breve!

Yang Borges Chung é Professor de Sociologia do Ifbaiano. É filiado e militante do PSOL

30/06/2019