Apontamentos para uma crítica ao projeto FUTURE-SE

imagemUnidade Classista (Frações do ANDES e Sinasefe)

No dia 16 de julho deste ano, o Ministério de Educação convocou os reitores das universidades públicas federais para apresentar um projeto intitulado “ Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras – FUTURE-SE ”. O programa ficará em consulta pública até o dia 15 de agosto e depois será encaminhado na forma de projeto de lei para deliberação no Congresso Nacional. Basicamente o projeto trata do financiamento privado para as Universidades e Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, da gestão das Instituições Federais de
Ensino Superior (IFES) a ser realizada por Organizações Sociais, e do incentivo à prática do empreendedorismo por parte do corpo docente e estudantil deste setor da educação.

O projeto foi elaborado pelo MEC sem consulta prévia com os reitores. Pelo teor das propostas fica claro que foi elaborado por empresários do setor financeiro, sem nenhuma intimidade, com os processos universitários de produção de conhecimentos, didáticos-pedagógicos, nem de extensão universitária.

Afronta a autonomia universitária consagrada na constituição, uma vez que reinterpreta o texto constitucional no sentido de que autonomia quer dizer autonomia para captar e gerir recursos no mercado de capitais, assim como poder vender serviços. O sentido estratégico da contrarreforma consiste na promoção das práticas de capitalismo acadêmico , através de um “choque de capitalismo” no financiamento, na gestão das atividades de pesquisa, ensino e extensão das instituições e na ativação das práticas de empreendedorismo docente e estudantil. Foca, fundamentalmente no complexo da ciência, tecnologia e inovação, desprezando a área das ciências sociais e humanas, para as quais, implicitamente, aponta para uma participação residual expurgadas de qualquer posicionamento crítico. Promove esta mudança estrutural através de um movimento de pinça: de um lado, pela política de austeridade fiscal dos gastos sociais de longo prazo instaurada pela emenda constitucional 95/16 que estabeleceu o congelamento dos gastos sociais até o ano de 2036; do outro, pela promessa de recursos privados suplementares para as instituições que venham a aderir, aliás por prazo indeterminado, a este projeto.

Os recursos suplementares viriam da gestão de fundos de investimento, geridos por Organizações Sociais (OS), dos quais o MEC participará como cotista, constituído por “ bens imobiliários que [as OS] deverão integralizá-los em fundos de investimentos, para constituir recursos de longo prazo, a ser investido com objetivos de preservar seu valor, gerar receita e fomentar as atividades de que trata o programa ”. Ainda que não está ainda claramente explicitado, os bens imobiliários teriam origem em propriedades do Estado, mas também, e possivelmente fundamentalmente, estaria constituído pelos bens imobiliários das próprias instituições universitárias.

A proposta de empreendedorismo está claramente enunciada, nos artigos 14, 15 e 16. Especialmente neste último se estabelece a autorização para constituir Sociedade de Propósito Específico (SPE) por departamento. Há também autorização, no artigo 15, “ de nomear uma parte de um bem, móvel ou imóvel, de um local ou evento, em troca de compensação financeira ”. No artigo 14 são destacadas as ações a serem realizadas no quadro do contrato de gestão com as OS. Entre elas destacamos, a modo de exemplo, o item ii “Aprimorar os modelos de negócios e a
capacidade de oferecer inovações que supram a demanda da sociedade ” e o item vi. “Promover ações de empregabilidade para os alunos das instituições ”.

Além das novas propostas, chama a atenção o conjunto heterogêneo, porém estrategicamente orientado, de leis que são alteradas (ao todo são 17 normas legais). Dizemos isto porque, como está acontecendo na contrarreforma da previdência, a amplitude das medidas da proposta inicial, parecem ter sido colocadas premeditadamente para que no processo de “negociação” (com todos ou alguns reitores, com Andifes – Associação Nacional de Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior, a SBPC – Sociedade Brasileira para o progresso da Ciência, o CONFIES –
Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica, o Proifes, com o “centrão” no Congresso, etc.), alguns elementos sejam retirados e apresentados como sucesso da “negociação”, ainda que o núcleo duro da proposta prevalece, e assim, consegue avançar um degrau qualitativamente superior na contrarreforma das IFES. A modo de exemplo da amplitude de assuntos que são alterados digamos que vão desde a lei Rouanet, a Ebserh, o reconhecimento de diplomas estrangeiros, a lei de diretrizes e Bases da Educação Nacional, a lei de Carreira do Magistério Federal, alteração no acesso aos fundos para o desenvolvimento da região norte, nordeste e centro-oeste, o imposto de renda, o imposto de importação, etc.

Pelo exposto no parágrafo anterior, a análise, e a luta política a ser travada, se concentrará no que consideramos ser o núcleo estratégico do projeto: o capitalismo acadêmico , uma vez que, como já foi dito, a mudança em alguns dos itens específicos (digamos por exemplo, na questão do reconhecimento dos diplomados de estrangeiros) não altera a essência da proposta.

1) A expansão destrutiva do capital na educação: mercantilização, privatização e financeirização da formação humana

No quadro de mercantilização, privatização, financeirização, hegemonia neoliberal e com o avanço das tecnologias da informação e comunicação, está em curso uma transformação gigantesca na educação, particularmente pelas possibilidades abertas pela formas não presenciais, de internacionalização e comoditização da educação como serviço como pretende a OMC desde o ano de 1998. Há toda uma retórica sobre uma utópica sociedade do conhecimento, como projeto societário conduzido por uma auto-esclarecida vanguarda empresarial schumpeteriana, na qual se fundamentam propostas em que a educação se torna ela mesma propriedade direta de grupos econômicos internacionais ou controlada por empresas que gerem a educação pública estatal, avançando na transformação da educação em mercadoria.

A modo de exemplificar aqui caberia fazer uma breve menção às teorias do capital humano que fundamentam do ponto de vista ideológico, mudanças pedagógicas contemporâneas pró-mercado na esfera educativa. Theodore Schultz, Prêmio Nobel de Economia em 1979, postula a necessidade da educação como um investimento no próprio trabalhador considerado como capital. Isto quer dizer que o trabalhador é um investidor nele próprio, no desenvolvimento das suas próprias habilidades e conhecimentos, que procura, como tudo investidor, obter o máximo
rendimento desse investimento. O trabalho, é portanto, num sentido ampliado, capital, capital humano. E o trabalho consiste num trabalho sobre si próprio, como se fosse uma empresa e ele (o trabalhador) o empresário encarregado de desenvolver suas competências, no sentido da produtividade e empregabilidade. “ Os trabalhadores tornaram-se capitalistas não em consequência da propriedade de ações das corporações, como o folclore o considerou, mas em
virtude da aquisição de conhecimentos e capacidades que possuíam valor econômico ”, dirá Schultz.

A teoria do capital humano subsidia os setores dirigentes da sociedade a respeito da necessidade do controle e ativação do “fator humano” na produção (que hoje não está restrita à fábrica fordista), ou seja, da subjetividade, de forma tal de avançar na subsunção real do trabalho ao capital, via transformação do trabalhador, num empreendedor que realiza um trabalho sobre si mesmo (como um investimento). Assim, e por esta via, todo o sistema educacional é
instrumentalizando ao serviço da produção de valor mercantil.

Estas teorizações e outras semelhantes, assim como as políticas implementadas dizem respeito à propriedade dos meios de produção, no sentido moderno hoje da propriedade intelectual (patentes, etc.), do big data , ou do intelecto geral , e por este caminho da política de inovação no campo da ciência e tecnologia nas instituições federais e universidades e da interface com as atividades de pesquisa e desenvolvimento das empresas privadas e/ou estatais. De fato, não pode ser negligenciada, a importância da aceleração do desenvolvimento da ciência e tecnologia e seu papel social e econômico, apropriada como força produtiva do capital, na produção de mercadorias e fonte de lucro empresarial e sua particularidade nos países periféricos de capitalismo dependente. Há aqui um debate muito denso sobre o trabalho, o desenvolvimento das forças produtivas, e a crise geral do capital que o próprio progresso científico e tecnológico provoca pela drástica diminuição da parte variável do capital, que merece nossa maior atenção na lutas políticas e pela emancipação humana.

Essas “teorias” contribuem ideologicamente para a dominação dos gestores capitalistas da educação, empresários, mídia, pesquisadores e educadores utilizam ideias e slogans bem pagos que preenchem a vida cotidiana das escolas, universidades, institutos federais, ambientes e discussões educativas. Dizer que o trabalhador se torna um capitalista, ou de modo mais sutil, um empreendedor, é ferramenta ideológica que reforça os processos de mercantilização do trabalho educativo reduzindo-o a um processo de produção de força de trabalho e de mercadorias
educacionais.

No mundo e no Brasil também têm se constituído um mercado de educação superior que movimenta grandes somas de dinheiro na oferta de serviços educativos. Fora o negócio do registro de patentes que também se constitui numa fonte de receita importante para financiar as atividades das universidades e dos institutos federais de ciência e tecnologia. A cifra do financiamento público em educação em todo o mundo, alvo da sanha do capital, foi de
aproximadamente 4,9 trilhões de dólares em 20151. Diante da enorme crise estrutural do capital, este é um montante robusto para os interesses de sobrevivência dos capitalistas.

No nosso caso, o mercado do ensino superior particular, tem crescido fortemente com o investimento público no FIES (Fundo de Financiamento Estudantil) e no PROUNI (Programa Universidade para Todos), que configura uma forma particular a apropriação do fundo público pelo setor privado. Já as universidades e institutos federais, sofrem há muito tempo de um subfinanciamento crônico, agora muito agravado pela Emenda Constitucional 95/2016 que
estabeleceu um teto aos gastos sociais do governo federal até o ano de 2036. Com o congelamento dos gastos, de fato, ao longo dos anos o que vai acontecer (e já está acontecendo) é um diminuição progressiva do orçamento das universidades públicas federais, institutos federais e CEFETs. Este sufoco orçamentário estimula e justifica as práticas do chamado empreendedorismo acadêmico ou capitalismo acadêmico. Entretanto, vale ressaltar que o
empreendedorismo acadêmico não é um resultado mecânico do corte dos recursos, ou seja, uma política reativa, Ele é um projeto de universidade que visa minar o pensamento crítico do espaço universitário (que hoje se expressa na proposta de extirpar o “marxismo cultural”), para fazer das universidades espaços dominados pela razão instrumental tanto no campo das engenharias como nas ciências sociais e humanas, reduzidas, estas últimas, à tecnologias sociais de administração da barbárie. Neste quadro é que se insere a proposta recentemente lançada pelo MEC a
consideração pública com o nome de FUTURE-SE.

2) A proposta do Capitalismo Acadêmico do programa FUTURE-SE

A proposta FUTURE-SE dá continuidade a uma forma específica de contrarreforma universitária , que tem atravessado com modulações particulares, os governos das últimas décadas da Nova República. Esta contrarreforma é contemporânea da financeirização do capital e o neoliberalismo. O programa FUTURE-SE é o projeto de uma universidade para o capital que aprofunda o capitalismo acadêmico iniciado muito mais atrás com os Parques Tecnológicos (Resolução Executiva 084/1984, do CNPq); as Fundações Privadas de apoio (Lei 8.958/1994); a Lei de inovação tecnológica (Lei 10.973/1994); a proposta de emenda constitucional (PEC 370/1996) que retira a constitucionalização da autonomia universitária, finalmente não aprovada; a reforma administrativa do Estado estabelecida pela Emenda Constitucional 19/98; a lei sobre as Organizações Sociais (Lei 9.637/98) que foi objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade (Nº1.923) e julgada constitucional pelo STF em 2015; as Parcerias público-privadas (Lei 11.079/2004); a criação da EBSERH (Lei 12.550/2011 e Decreto 7.661/2011); a Emenda Constitucional 85/2015; o novo Marco Legal da Ciência e Tecnologia (Lei 13.243/2016), o Novo Regime Fiscal da Emenda Constitucional 95/2016 e os fundos patrimoniais (Lei 13.800/19), entre outras normas jurídicas e decisões políticas aprovadas no mesmo sentido estratégico.

A contrarreforma universitária gira em torno da luta pela definição do papel das universidades, institutos técnicos e CEFETs e das empresas públicas e/ou privadas na gestão do complexo de ciência e tecnologia necessário para o desenvolvimento econômico-social nesta época caracterizada pela 3ª revolução industrial (que para alguns constitui a essência da fase contemporânea do capitalismo tardio, que por essa razão é denominado como capitalismo
cognitivo ), assim como também, ao mesmo tempo, e não sem contradições com o item anterior, com os interesses de setores empresariais de se apropriar privadamente, de modo direto ou indireto, das instituições educacionais de nível superior e dos correspondentes fundos públicos com uma finalidade lucrativa. É uma disputa, na qual a própria concepção de ciência e tecnologia, em sociedades periféricas e dependentes está em jogo, seja como instrumento de perpetuação e aprofundamento da dependência e subordinação econômica, política e cultural, seja como
potencial instrumento de soberania e emancipação política e humana.

Com esta nova proposta do MEC e de Bolsonaro, as Organizações Sociais, poderão gerir recursos financeiros obtidos de diversas fontes, entre elas, fundamentalmente, da gestão por parte uma Organização Social de um fundo patrimonial no mercado de capitais, assim como contratar diretamente técnicos e até docentes para projetos de pesquisa, ensino e extensão. De fato, é uma fonte de recursos suplementar, que se acrescenta ao congelado orçamento público, gerida pelas Organizações Sociais, a partir de um contrato de gestão celebrado voluntariamente por cada Universidade, Instituto Federal ou CEFET. O arcabouço jurídico das Organizações Sociais já foi aprovado anteriormente, no governo FHC, porém não utilizado plenamente no campo das instituições de ensino superior. No entanto, no setor da saúde, foi amplamente implementado pelo governo federal e particularmente pelos governos estaduais e municipais, como uma forma não clássica de privatização. O que o projeto faz é estimular, com a promessa de recursos privados obtidos fundamentalmente de aplicações financeiras no mercado de capitais, para que as universidades realizem as transformações pró-mercado do capitalismo acadêmico.

Evidentemente, como os recursos são muito escassos, as disputas entres as universidades, e no interior de cada universidade entre os centros, unidades, departamentos e cada professor e professora será muito acirrada, desencadeando uma brutal corrida pelo produtivismo. De fato, este é um dos objetivos: aumentar a produtividade do trabalho docente mensurado com os critérios do cálculo econômico do mercado de capitais. Também um outro efeito, caso venha a ser aprovada esta nova contrarreforma, é a constituição de dois tipos de universidades: as universidades de classe mundial ou excelência internacional e as universidades de ensino voltadas para a qualificação da força de trabalho.

3) O método das reformas incrementais ao longo de um período dilatado de tempo

Os ataques que as Instituições de Ensino Superior tem recebido, seguem a lógica de fazer mudanças estruturais incrementais ao longo de um período prolongado de tempo mudando substantivamente o caráter da universidade pública, sua autonomia, financiamento, a carreira docente, as condições de trabalho, o tripé ensino, pesquisa e extensão, e sua função social. Por enquanto, o projeto apresentado, não mexe com a cobrança de matrículas na graduação nem na pós-graduação stricto sensu , deixando o cobro de matrícula somente na pós-graduação lato sensu , como já foi reconhecido pelo STF.

O caminho da mudança estrutural das universidades segue a lógica de conseguir, aos poucos, passo a passo, apoio da opinião pública e de setores internos na própria universidade para fazer uma proposta de contrarreforma a cada vez, e assim se aproximar ao perfil de uma organização social pública não estatal de prestação de serviços de educação e pesquisa universitários. No horizonte, podemos postular uma situação na qual os grandes conglomerados empresariais educacionais (como a Kroton Educacional ) poderiam aos poucos, através do investimento direto ou indireto em Organizações Sociais, participar progressivamente na gestão das instituições de
ensino superior, até chegar a se tornar acionistas principais delas, culminando assim o processo de privatização.

Segue também o método adotado pelo programa REUNI (2008) e pela EBSERH (2011) de adesão voluntária de cada universidade o que enfraquece a resistência do conjunto dos universitários, já que as instituições aderem voluntariamente, uma a uma, em função de conjunturas internas, após um intenso processo de desgaste entre os segmentos, os sindicatos e os colegiados.

O Programa FUTURE-SE anunciado pelo MEC para “modernizar” as universidades, foi apresentado como uma resposta conjuntural às mobilizações, lutas e atos de ruas que ocorreram nesse início de 2019, contra os cortes do orçamento público. Mesmo que repleto de lacunas explicativas e com fragilidades jurídicas, é um projeto estratégico e não conjuntural que conjuga fundamentalmente os interesses dos setores empresariais da educação, segmentos
elitistas e privatizadores da comunidade científica, com os interesses da fração ideológica que tomou conta do MEC nesse governo Bolsonaro. Depois de vários tropeços e cenas ridículas transmitidas via internet, ataques preconceituosos contra a comunidade acadêmica e até mesmo desencontros com as elites econômicas ligadas aos “reformadores” da Educação (Todos pela Educação , Fundação Roberto Marinho , entre outros), aparentemente, a equipe ligada ao Ministro Abraham tenta com o FUTURE-SE acertar os ponteiros entre a agenda moralista e de
perseguição ideológica (contra o “marxismo cultural”) com os interesses econômicos dos grupos que disputam a política educacional nos últimos governos, materializados na orientação privatizante da gestão do fundo público do último PNE (2014-2024).

No mesmo movimento, o FUTURE-SE tenta rearticular interesses privatistas já instalados no interior da própria universidades. Muitos desses grupos tiveram papel fundamental na viabilização da incorporação interna, por exemplo, das Fundações de Apoio ligadas às universidades e do Marco Legal da Ciência e Tecnologia . Com o FUTURE-SE o rumo dos grupos privatistas dentro da universidade pode ganhar novo fôlego e já se evidencia o fortalecimento de movimentos favoráveis a uma política de financiamento e gestão do ensino superior pautado nas parcerias com os investimentos financeiros do setor privado.

Tem que ser levado em consideração, na atual correlação de forças interna nas instituições de ensino superior, a forma de escolha de reitores que está acontecendo neste período. Estamos pensando em processos como na UniRio onde o reitor empossado foi indicado pelo restrito colégio eleitoral sem sequer ter participado da consulta interna. Em outros casos, o governo tem escolhido dentro da lista tríplice, quem não foi o primeiro indicado pela consulta. Há também situações onde o MEC designa diretamente diretores interventores como aconteceu no CEFET-RJ. Digamos, sobre este tópico, que mesmo nos casos em que são respeitados todos os processos institucionais, há um claro déficit democrático no processo da consulta, da indicação e da nomeação do reitor realizada em forma heterônoma pelo governo.

Podemos afirmar que o FUTURE-SE se apresenta como um passo decisivo do projeto de ajuste da universidade a lógica do capital em disputa frontal com o projeto de Universidade pública popular. O anúncio do governo do corte do orçamento para as instituições de ensino superior, no início deste ano, levou para as ruas os estudantes e trabalhadores, na defesa da universidade pública, gratuita, laica, popular e de qualidade socialmente referenciada.
A luta entre projetos de universidades não nasceu em 2019. A Universidade popular vem sendo gestada pelos lutadores e lutadoras no Brasil e na América Latina; se alimenta da resistência juvenil universitária contra a ditadura civil-empresarial militar no Brasil; das lutas dos trabalhadores e trabalhadoras, do campo e da cidade, de professores e professoras no período da redemocratização; de uma longa tradição de luta que se iniciou nas terras latino-americanas pela rebeldia dos estudantes de Córdoba e sua aproximação com a classe operária, em 1918; as
experiências concretas de Universidades Populares no Peru, Chile, Cuba e México na primeira metade do século XX; da práxis educativa, intelectual, política e científica de Julio Antonio Mella, Nise da Silveira, Florestan Fernandes, Paulo Freire e Marta Harnecker e Angela Davis, dentre muitos expoentes que ajudaram os povos oprimidos na luta por uma formação humana no sentido da emancipação.

O ataque representado pelo FUTURE-SE deve ser respondido por uma maior articulação, organização e luta por uma Universidade Popular que expresse as necessidades e interesses da maioria da população trabalhadora. O momento é decisivo para dar um salto de qualidade na luta, não apenas resistindo, mas reafirmando um projeto de Universidade para além do capital.

4) A proposta da reforma gerencial das universidades

O projeto em consideração se inscreve na lógica de reforma “gerencial” do Estado, que foi promovida no governo FHC e seu Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado Bresser-Pereira em 1995, que defendeu que algumas atividades empresariais do Estado deveriam ser privatizadas, outras geridas por organizações sociais privadas com financiamento público em regime de concorrência com a iniciativa privada (“ transformar os serviços sociais e científicos prestados pelo Estado em organizações sociais, ou seja, em organizações públicas nãoestatais
financiadas pelo orçamento do Estado e supervisionadas através de contratos de gestão” nas palavras do próprio Bresser-Pereira), e outras, as típicas do estado, deveriam permanecer exclusivamente na órbita do Estado com financiamento público. As Organizações Sociais se inscrevem nesta lógica (“No campo dos serviços sociais e científicos, ou seja, das atividades que o Estado executa mas não lhe são exclusivas, a ideia é transformar as fundações estatais hoje existentes em ‘organizações sociais”).

Para viabilizar esta reforma foi aprovada a Emenda Constitucional nº 19/98, que entre outros dispositivos estabeleceu: “ A autonomia gerencial, orçamentária e financeira dos órgãos e entidades da administração direta e indireta poderá ser ampliada mediante contrato, a ser firmado entre seus administradores e o poder público, que tenha por objeto a fixação de metas de desempenho para o órgão ou entidade, cabendo à lei dispor sobre: I – o prazo de duração do contrato; II – os controles e critérios de avaliação de desempenho, direitos, obrigações e
responsabilidade dos dirigentes; III – a remuneração do pessoal .” Uma tentativa posterior, em 1998, de incluir as universidades na lei das Organizações Sociais foi barrada pela pressão do movimento docente e universitário, porém deve ser lembrado que em 2015 o STF considerou constitucional esta lei das OS, abrindo, portanto, as portas para que Administração Pública repasse para entidades privadas sem fins lucrativos como associações e fundações privadas qualificadas como organizações sociais a gestão de escolas públicas, universidades, hospitais,
unidades de saúde, museus, entre outras autarquias, fundações e empresas estatais que prestam serviços públicos sociais.

Como dizíamos, a estratégia dos interesses do capital, é ir conquistando apoio interno, ainda que de setores minoritários, a assim ir avançando paulatinamente. Neste sentido, cabe lembrar, que a SBPC, naqueles anos, foi favorável à lei das Organizações Sociais e se manifestou contrária ao recurso de Ação Direta de Inconstitucionalidade apresentado naquela oportunidade pelo PT e o PDT ao STF. A SBPC fez pressão junto ao STF contra a ação de inconstitucionalidade, atuando como amicus curiae no processo, partindo dos mesmos pressupostos privatistas defendidos por Bresser Pereira.

5) A “cruzada” contra o “marxismo cultural” nas universidades públicas

Se para o setor das engenharias a proposta do FUTURE-SE indica claramente a apropriação privada e mercantilização da produção científica e tecnológica, para as ciências humanas o FUTURE-SE se articula implicitamente (como sendo o verso da moeda da contrarreforma universitária) a já propalada cruzada pseudo-religiosa, antimoderna e antiiluminista que enquadra todas as perspectivas críticas no que tacanhamente se intitula “marxismo cultural” a ser extirpado das universidades. A cruzada contra o “marxismo cultural” nas universidades alardeada pelos setores mais reacionários e protofascistas do governo Bolsonaro, assim como de outros governos da mesma índole, surgem e avançam no bojo da crise geral sistêmica que abala o capitalismo. Esta cruzada
se fundamenta numa interpretação forçada e que não se sustenta numa simples aproximação textual que diz que em Antonio Gramsci, revolucionário sardo que escreveu suas principais reflexões no cárcere do fascismo italiano, há uma substituição da classe trabalhadora (operária) pela “classe” intelectual (dos docentes das universidades públicas) que realiza a tarefa de destruição do capitalismo através da conquista moral e intelectual da sociedade, ocupando para isto, os aparelhos privados de hegemonia ou, no dizer de Althusser, os aparelhos ideológicos do
Estado.

Daí que para se blindar contra esta estratégia do que seria o “marxismo cultural” gramsciano, a defesa da “ordem” capitalista e junto com ela da família nuclear burguesa e dos costumes tradicionais, adota a forma de uma luta contra os intelectuais e as universidades públicas. É uma verdadeira cruzada contra a cultura, a arte, a filosofia, com o pretexto da luta contra este “marxismo cultural” e as “ideologias” atribuídas à ele: a razão, o progresso e o bem-estar social. Estes modernos cruzados buscam de fato, na forma de uma utopia reacionária , extirpar as conquistas culturais, civilizatórias da modernidade ocidental iluminista e em especial, a possibilidade da radicalização dessas conquistas como fruto da luta dos trabalhadores e trabalhadoras para socializar a ciência, a filosofia e as artes como conhecimentos historicamente produzidos e sistematizados, ferramentas de luta nas mãos dos subalternos. Diante da modernidade inacabada e deformada pela forma burguesa, colocam de forma idealizada ao homem simples, afastado dos grandes centros urbanos, “vítima” de globalização, que busca resultados prático-utilitários (como o homem de “bem”, o homem de negócios que não precisa de formação universitária para ser bem sucedido), organizado naturalmente e espontaneamente em famílias e grupos de interesses que pauta seu comportamento pelo “senso comum”, desprezando a produção do conhecimento filosófico, artístico e acadêmico. Fazem uma apologia do mercado como uma instituição que surgiu espontaneamente a partir de escolhas racionais limitadas realizadas por indivíduos simples autorreferenciados. Contrapõem este funcionamento espontâneo da sociedade, às elaborações dos “intelectuais” que pretendem instaurar, através da luta de classes, uma forma consciente de controle do metabolismo social com a natureza.

Obviamente desprezam, e desqualificam as pesquisas científicas que demonstram, os resultados deletérios (como o aquecimento global, a poluição, as crise financeira, etc.) da atual forma fetichizada de metabolismo social com a natureza. Com base nesta ideologia, os setores conservadores, desencadeiam uma forma de “macartismo” contra os intelectuais , especialmente aqueles que trabalham nas universidades públicas, denunciando e desqualificando como sendo falsas e imorais, as produções acadêmicas, como acontece com a denúncia da “ideologia de gênero”, da ideologia patriarcal ou aquecimento global. Este idealizado homem simples, do senso comum, é o homem do capitalismo tecno-financeiro, distanciado e alienado das complexidades da vida social globalizada e dos problemas que ela coloca: aquecimento global, multiculturalismo, desigualdades sociais, alienação da vida cotidiana, entre outros, deixando nas mãos dos especialistas em big data , engenheiros do comportamento social e individual, especialistas em técnicas de empoderamento, em suma, dos intelectuais orgânicos do capitalismo tecno-financeirizado a solução destes complexos problemas estruturais contemporâneos. Diríamos, parafraseando a Lukács, é o projeto anti-iluminista do assalto à razão , que complementa o domínio da razão instrumental na área das engenharias das ciências puras e aplicadas.

6) Enfrentar a contrarreforma em todos os espaços de luta

Evidentemente, este projeto não é somente mais do mesmo. Há aqui um passo novo, que modifica qualitativamente o quadro que já vinha sendo desenhado como ameaça nas décadas anteriores, e assim sendo, pode (e deve) ser procurado o apoio de até entidades representativas do alto escalão da ciência e tecnologia, como a SBPC, para a luta e enfrentamento deste novo ataque e assalto à universidade pública. Também, a grande maioria dos reitores das
universidades organizados na Andifes e os reitores dos Institutos Federais, organizados na Conif, podem vir a rejeitar a proposta do FUTURE-SE assim como está formulada inicialmente.

Devemos trabalhar, nos nossos sindicatos e movimentos sociais para que uma grande frente de cientistas, acadêmicos, artistas, reitores e movimentos sociais de docentes, TAEs e estudantes, se organize para rejeitar esta formulação que, reiteramos ataca frontalmente o caráter público, a autonomia, o tripé de ensino, pesquisa e extensão da educação superior, a pesquisa em ciência e tecnologia, a arte e a cultura, oferecendo em troca a ilusão dos rendimentos na bolsa de valores de aplicações financeiras do patrimônio estatal como suplemento ao congelamento e diminuição do orçamento público. Até aqueles setores que são favoráveis a algum nível de empresariamento
das IES, conhecem pela experiência internacional, que a autonomia e o financiamento público são fundamentais para ter sucesso na política de pesquisa científica e tecnológica. Nesta proposta o governo trabalha com a hipótese (uma verdadeira chantagem) da manutenção do congelamento dos investimentos públicos nas universidades, institutos e CEFETs estabelecido pela Emenda Constitucional 95 até o ano de 2036, e se aproveita desse fato para propor um “choque de capitalismo” nas instituições de ensino superior.

6.1) Unidade e luta no campo sindical em defesa da educação

Além da articulação com entidades acadêmicas, científicas e por dentro das instituições pressionado as congregações e colegiados, as nossas ações táticas e estratégicas no campo sindical e popular devem apontar para envidar esforços na construção unitária de frentes pela defesa da educação pública e popular, que as mesmas estejam articuladas e/ ou vinculadas ao Fórum Sindical, Popular e de Juventudes, de luta por direitos e liberdades democráticas. No processo de reorganização da classe trabalhadora, deve ficar cada vez mais patente que o projeto
democrático-popular não é, e/ou nunca se efetivou de modo estratégico e que o ciclo do programa de conciliação de classes deste projeto enfrenta uma crise terminal.

As ações do primeiro semestre de 2019, evidenciam que o campo e os setores da educação progressivamente têm conseguido estabelecer amplas ações unitárias, como vimos no 15 e 30 de Maio, 12 de Julho e 13 de Agosto. É uma construção complexa já que a unidade é sempre unidade na diversidade, portanto, há diferenças e contradições que têm que ser tratadas corretamente para não desviar os principais objetivos imediatos destas lutas. Estamos num
momento de aprofundar as ações em defesa da educação pública, laica, gratuita e popular e de avançar na construção das lutas para alcançar o patamar de mobilização que possibilite derrotar este projeto anti-universitário, a contrarreforma da previdência e o governo protofascista do Bolsonaro.

Neste sentido, entendemos que o enfrentamento a este projeto coloca a centralidade entre a contradição Capital x trabalho, que também implica a contradição entre fascismo x democracia, nação x imperialismo, e fundamentalmente a disputa entre a Universidade do capital e a Universidade popular. Esta construção unitária precisa de conquistar, aglutinar e ampliar o raio de ação restrito da militância mais engajada nas seções sindicais, nos institutos, departamentos, também em todas as organizações de base. Devemos ser capazes de construir a luta diária em cada espaço de trabalho, estudo e moradia em torno de bandeiras que apontem a necessidade de unidade da classe e articulem os interesses que se apresentam muitas vezes de modo fragmentado. Temos a tarefa de apoiar as organizações da classe trabalhadora, movimentos populares e de juventude numa ação qualitativamente superior.
Há experiências de luta muito interessantes, na perspectiva da Educação e Universidade Popular, que nem sempre são muito conhecidas como por exemplo a construção da RETEP – Rede Tecnológica de Extensão Popular. Um movimento articulado entre os campi que constituem a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica constituídos pelos Institutos e Centros Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IF’s e CEFET’s), a partir da unidade de ações coordenadas, envolvendo estudantes, técnico-administrativos e docentes e dos núcleos e Grupos de Pesquisa e Extensão sob a perspectiva do aperfeiçoamento e ou desenvolvimento de ações integradas entre as instituições públicas de ensino tecnológico e as comunidades e populações empobrecidas. Como parte das iniciativas, também têm buscado construir publicações específicas para jovens trabalhadores(as), por meio da promoção de cursos de extensão para formação de jovens trabalhadores(as) nas periferias das médias e grandes cidades, estabelecendo a organização de entidades de base de estudantes de escolas técnicas e fortalecendo as que já existem, assim como também o apoio a projetos de extensão que possibilitem cursinhos populares nas periferias das cidades operárias como forma de auxiliar na formação integral da juventude trabalhadora.

A articulação das lutas dos docentes por dentro das universidades, institutos federais, departamentos, seções sindicais, junto com os técnicos e estudantes das universidades, institutos federais e colégios de aplicação são um caminho para implementar frentes em defesa da educação pública e popular e fortalecer os Fóruns estaduais de lutas por direitos e liberdades democráticas, apontando na possibilidade de construção autônoma democrática e popular evidenciada na construção dos ENEs, e na perspectiva da construção de um ENCLAT no processo de reorganização da classe trabalhadora.

7) O contraponto com a Universidade Popular

Diante desta proposta de uma universidade do capital cabe reforçar a luta pela Universidade Popular. A Universidade Popular, não é uma entidade, é um processo de lutas no interior das universidades públicas e particulares, articulado às lutas mais amplas por uma nova sociabilidade para além do capital, de modo a garantir o acesso e permanência da juventude trabalhadora e de todas as classes oprimidas nos espaços e processos de produção e socialização dos
conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos. Mas, não é só isso, é também igualmente, um processo de luta por uma outra organização da vida acadêmica, pelo financiamento público, pela política de assistência estudantil e condições de vida dos estudantes, pelas cotas sociais e étnico-raciais para estudantes e professores, assim como pelos conteúdos e pelo currículo numa perspectiva crítica, pelo reconhecimento do saber na sua dimensão universal e dos conhecimentos historicamente produzidos dos povos originários e tradicionais, das lutas dos movimentos sociais, dos grupos sociais oprimidos e, fundamentalmente daqueles que vivem do seu trabalho, na longa batalha para se constituir em sujeitos da transformação radical da sociedade.

A proposta de Universidade Popular não desdenha dos acúmulos da ciência e da tecnologia produzida até o atual estágio de desenvolvimento da humanidade. Pelo contrário, a tecnologia e os conhecimentos científicos são entendidos como espaços da luta social no qual projetos políticos alternativos estão em pugna e, o desenvolvimento tecno-científico é determinado pelas dimensões culturais, políticas e econômicas, enraizados no modo de produção da vida, nas ideologias, na religião, nas potencialidades e limites da natureza, ou seja, na totalidade da vida social. É portanto, uma luta que se trava, tanto por dentro das instituições de ensino superior públicas e particulares, “lutas dentro da ordem”, quanto por fora e contra elas, “lutas contra a ordem”, articulada às diferentes formas de lutas que permeia o mundo contemporâneo.

As lutas pela Universidade Popular se inscrevem no processo da superação da estratégia democrático-popular e suas formulações no campo educacional, diante de suas debilidades e radicalizando suas conquistas. Também incorpora as bandeiras históricas dos estudantes e docentes das IES e que em grande medida estão condensadas nas construções ideopolíticas do movimento docente e estudantil, especialmente do Andes-SN na sua maior elaboração, o Caderno No. 2. As formulações deste caderno, que gravitam em torno da defesa da universidade pública, gratuita, laica, de qualidade e socialmente referenciada, são uma base fundamental, necessária, para o conjunto do movimento docente na formulação de um projeto democrático e classista de universidade e educação popular, nos espaços de construção da unidade das entidades da educação e do movimento geral da classe trabalhadora, como são os Encontros Nacionais da Educação.

A Universidade Popular que aqui defendemos busca colocar em movimento esse histórico processo de luta em torno da questão da universidade, da cultura, da razão substantiva, reforçando a relação dessa proposta com luta pela superação da sociedade capitalista e a construção da emancipação humana, no contraponto com a Universidade para o Capital, do projeto FUTURE-SE.

Agosto de 2019

Frações do Andes-SN e do Sinasefe da Unidade Classista

1 Ver Glenn Rikowski (2017) – Privatização em educação E formas de mercadoria. In: Revista Retratos da
Escola, Brasília, v. 11, n. 21, p. 393-413, jul./dez. 2017. Disponível em: <http//www.esforce.org.br>