Mineração e morte nos rios da Amazônia
Amazônia
IHU-UNISINOS
Por: João Vitor Santos | Edição: Ricardo Machado
A absoluta falta de imaginação política e de investimento em pesquisas e tecnologia industrial é a âncora que mantém o Brasil preso à exploração ambiental, mineral e a uma balança comercial baseada em venda de bens primários sem valor agregado, ou seja, commodities. Isso faz com que a região mais rica do país em termos de biodiversidade seja, sistematicamente, atacada por projetos de desenvolvimento não somente insustentáveis do ponto de vista ambiental, mas também etnocidas. “Em suma, os índios e suas terras na Amazônia estão há anos sob o cerco inclemente de três processos invasivos: a expansão do arco de desmatamento da floresta pela ação da agropecuária; a invasão e intrusão de levas de trabalhadores dos garimpos e dos enclaves de mineração; e a construção de barragens e usinas hidrelétricas”, afirma Gerôncio Rocha, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Há um vetor conjuntural que agrava, ainda mais, a situação, as políticas e as declarações de Jair Bolsonaro. “As falas do presidente da República sobre a exploração mineral e a garimpagem e suas restrições às terras indígenas têm efeito imediato e empolgam seus seguidores e eleitores na região. Ele produz e estimula dois efeitos deletérios, simultâneos: no front interno, de governo, esvazia os órgãos públicos ligados às questões indígenas e ambientais, desmoraliza e intimida os funcionários que exercem a fiscalização e, com isso, estimula os invasores; no meio político, insinua uma pauta de legalização da atividade garimpeira, abrindo as portas a projetos casuístas das empresas e dos donos de garimpos no Congresso”, destaca.
Atualmente, uma das questões mais sensíveis é o garimpo de ouro, cujo uso de mercúrio na coleta do minério produz efeitos devastadores nas comunidades locais e nos trabalhadores. Rocha classifica em três pontos os problemas relacionados à mineração com mercúrio: “a) contaminação com mercúrio vapor diretamente sobre os trabalhadores garimpeiros; b) poluição das águas e sedimentos, com a possibilidade de metilação do mercúrio e sua absorção pelos peixes, afetando a cadeia alimentar das populações locais; c) contaminação com mercúrio vapor nos numerosos pontos de venda do mercúrio, onde ele é mais uma vez queimado”, pontua.
Gerôncio Rocha é geólogo, funcionário aposentado do Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo. Entre 1994 e 2003 foi assessor do Comitê da Bacia Hidro. É autor de Um copo d’água (Editora Unisinos, 2002).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Numa perspectiva histórica, de que forma as atividades de mineração vão se configurando uma ameaça aos povos originários?
Gerôncio Rocha – Para começo de conversa, convém fazer um breve retrospecto da exploração da Amazônia nos últimos 50 anos.
A partir de 1970, o poder central no tempo da Ditadura (governo Médici) definiu-se pela integração ao mercado internacional e passou a oferecer vantagens e atrativos aos grandes grupos econômicos, sob a forma de redução de impostos, energia elétrica subsidiada, grandes obras de infraestrutura, mão de obra barata e nenhum rigor contra a poluição. Consolidaram-se, assim, os segmentos das construtoras (rodovias, portos, barragens); da mineração e metalurgia; da agropecuária e da energia hidrelétrica. Na retaguarda, os grandes bancos nacionais e internacionais.
No chamado Plano de Integração Nacional, a exploração agroflorestal e pecuária passa a ser a frente mais ampla e extensiva na Amazônia, desestruturando o modo de produção extrativista e introduzindo um vertiginoso processo de especulação da terra, de concentração fundiária e de devastação da floresta. Os vetores do processo foram a construção da rodovia Transamazônica e a colonização induzida numa faixa de 100 quilômetros de cada lado da estrada. Simultaneamente, milhares de hectares, em vários pontos do território, foram destinados a projetos agropecuários a cargo dos grandes grupos econômicos.
A partir de 1975, o governo federal passou a reorientar sua política para a criação de “polos de desenvolvimento”, áreas preferenciais para projetos minerais, agropecuários e agrominerais.
A segunda frente de penetração na Amazônia é a exploração mineral. Desde 1967, abriu as concessões de pesquisa e lavra a empresas nacionais e internacionais indistintamente. Assim, a produção mineral segue um esquema tripartite – estatais, multinacionais e empresas nacionais – quase sempre em associação de capitais.
O lugar do Brasil no cenário internacional é o de promover a exportação de bens minerais semibeneficiados para os países desenvolvidos. A voracidade capitalista de exploração, ao lado da frente agropecuária, provocou fortes impactos sociais: a proliferação de grandes contingentes de trabalhadores rurais volantes, desempregados, atuando nos garimpos, e a violação da integridade cultural e territorial dos povos indígenas. Nesta última década, Carajás tornou-se a maior província mineral do mundo: ferro, manganês, cobre, níquel, ouro, prata e molibdênio. Mas há o contraditório: o estado do Pará, que produz toda essa riqueza, apresenta baixos índices de desenvolvimento humano, de desenvolvimento juvenil e de saneamento. Segundo o jornalista Lúcio Flávio Pinto, “o trem do progresso está passando pela estação Pará e os paraenses não estão embarcando nele”.
O terceiro vetor de penetração na Amazônia é a exploração de recursos hídricos para a produção de energia elétrica. Em 1987, O consórcio Eletrobras/Eletronorte fez um plano descomunal – chamado Plano 2010 – de construção de 79 barragens na região, algumas delas com lagos artificiais cujas dimensões variam 1 mil a 6 mil quilômetros quadrados. A energia seria destinada aos projetos minero-metalúrgicos e também para atender a futuros desequilíbrios na região Sudeste. Três barragens construídas são paradigmáticas deste megaprojeto.
A hidrelétrica de Balbina, situada no vale do rio Uatumã, no Amazonas, não atende a qualquer necessidade regional, sendo extremamente predatória e alagando um território desproporcional de 2,4 mil quilômetros quadrados, com capacidade irrisória de 250 MW (CIMI, 1986).
Outra, a hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, com lago de 2,4 mil quilômetros quadrados e capacidade nominal de 3,6 mil MW, tem energia destinada à indústria minero-metalúrgica do alumínio, com tarifas reduzidas. Com o enchimento do lago em 1984, foram submergidos 14 povoados, duas reservas indígenas e deslocadas 5 mil famílias de agricultores.
A terceira, chamada eufemisticamente “Complexo de Altamira” (para evitar associações com os índios do Xingu), previa a construção de dois grandes lagos; depois de questionamentos ao longo de mais de dez anos, o projeto foi reduzido a um lago menor e menor capacidade, devendo ser inaugurada no final deste ano, agora com o nome de Belo Monte. Há inconformidade geral: a obra isolou a Volta Grande do Xingu – uma notável feição geológica – e afetou duas aldeias indígenas, além de moradores ribeirinhos, que ficaram sem água suficiente para suas necessidades; ao lado da barragem. O caso segue as vias judiciais.
Em suma, os índios e suas terras na Amazônia estão há anos sob o cerco inclemente de três processos invasivos: a expansão do arco de desmatamento da floresta pela ação da agropecuária; a invasão e intrusão de levas de trabalhadores dos garimpos e dos enclaves de mineração; e a construção de barragens e usinas hidrelétricas.
IHU On-Line – De que forma a atual conjuntura e os discursos vindos do governo de Jair Bolsonaro a respeito do meio ambiente influenciam o avanço de mineradoras e empresários do ramo sobre áreas destinadas a povos indígenas?
Gerôncio Rocha – As falas do presidente da República sobre a exploração mineral e a garimpagem e suas restrições às terras indígenas têm efeito imediato e empolgam seus seguidores e eleitores na região. Ele produz e estimula dois efeitos deletérios, simultâneos: no front interno, de governo, esvazia os órgãos públicos ligados às questões indígenas e ambientais (Fundação Nacional do Índio – Funai, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama e outros), desmoraliza e intimida os funcionários que exercem a fiscalização e, com isso, estimula os invasores; no meio político, insinua uma pauta de legalização da atividade garimpeira, abrindo as portas a projetos casuístas das empresas e dos donos de garimpos no Congresso. O que se observa nas últimas semanas é o aumento do número de invasões de madeireiros e garimpeiros, inclusive com atitudes agressivas frente aos fiscais.
O discurso de Bolsonaro sobre os direitos indígenas é de uma brutalidade inominável. Antes mesmo de assumir o cargo, ele chegou a dizer que não iria demarcar mais nem um centímetro de área. E que os índios devem ter as mesmas oportunidades da sociedade envolvente; como se os índios quisessem ter o mesmo modo de vida dos brancos.
O presidente parece fazer questão de demonstrar sua enorme ignorância, repetindo coisas de “ouvir dizer”, sem nenhum compromisso com a verdade. Não tem comparação com o coronel Rondon que, há cem anos, desenvolveu um notável trabalho de aproximação com índios de diversas etnias, desde o Centro Oeste até o extremo Norte, em Rondônia, Acre, Roraima, na região transfronteiriça. Lançou as bases para um Serviço de Proteção aos Índios (atual Funai). Alguém poderia ler para ele a recente biografia de Rondon feita pelo jornalista Larry Rohter. Quem sabe ele poderia entender como se faz um humanista.
IHU On-Line – Quais os maiores avanços e os limites da Constituição de 1988 no que diz respeito à regulação da atividade de mineração e preservação de terras destinadas a povos indígenas?
Gerôncio Rocha – Em 1998, participei da Sessão Amazônia, do Tribunal Permanente dos Povos, em Paris. Ali, apresentei o relato Mineração, ouro e miséria na Amazônia. A certa altura, afirmei: “triste ironia da democracia brasileira: o destino dos povos indígenas e de suas terras está mais ameaçado agora do que nos tempos da Ditadura”. Outro dia, voltei a utilizar a frase. Desejo desconsiderá-la porque é errônea: em qualquer situação, é preferível a regra democrática à decisão monocrática. (Perdão, leitores).
Voltemos à nossa democracia. Estamos num período de transição, da Ditadura para a Nova República. Desde 1983, com o decreto do presidente Figueiredo abrindo as terras indígenas à mineração, as pressões sobre os índios têm evoluído de forma crescente, embora com variações de tática. De um lado, as empresas de mineração tentam ganhar no papel a legalização das áreas de pesquisa e lavra, como segurança para seus investimentos. De outro, os empresários de garimpo fomentam invasões e intrusões de garimpeiros em terras indígenas, buscando antecipar-se às empresas por meio do fato consumado.
A partir de 1985, durante o governo Sarney, acentuou-se a investida do poder econômico em diversas frentes: campanhas de opinião pública, especialmente em Roraima e no Amazonas; pressão política lobista no Congresso; mobilização do empresariado e ação de cúpula junto ao governo federal. Tudo parecido com o que se faz hoje.
Os defensores da mineração garimpeira ou empresarial em terras indígenas têm um variado arsenal de argumentos, utilizados de acordo com a ocasião, que revelam um traço comum: a ideia economicista e salvacionista de expandir a fronteira mineral e levar o desenvolvimento para a Amazônia, em nome do interesse nacional. Um dos líderes dos empresários de garimpo – José Altino – dirá que eles pedem “tão somente a oportunidade de explorar, como brasileiros que são, as riquezas do subsolo pátrio, independentemente de existirem ou não indígenas em suas proximidades”. Mistificação.
Em 1987 foi perpetrada a grande invasão da área dos Yanomami, José Altino à frente, chegando a 40 mil o número de garimpeiros. Recorde-se: 1987 foi o ano de intensos debates no Congresso para a elaboração da nova Constituição, em 1988.
Na década de 1980, com a descoberta de Serra Pelada, houve um vertiginoso crescimento da atividade garimpeira, com mais de vinte campos de garimpo de ouro, cassiterita (estanho) e pedras preciosas em exploração. Em tempo de aguda crise econômica e social, a ideologia oficial cultivava e difundia o fetichismo do ouro, ressaltando-lhe a opulência e ignorando a miséria dos que produzem a riqueza. É um exército de 600 mil homens desfigurados, tangidos pela fome e o desemprego, expulsos da terra, induzidos a buscar a única alternativa de trabalho e de vida que lhes resta: a ilusão, a sorte e o logro, num empreendimento profundamente excludente, em que apenas algumas centenas de pessoas são beneficiadas. Agora, mais de 30 anos depois, acham que podem repetir a história?
IHU On-Line – Além da mineração, que outros empreendimentos ameaçam as terras indígenas? O que prevê o Estatuto dos Povos Indígenas no que diz respeito à atividade de mineração e outras formas de exploração de terras destinadas a povos indígenas?
Gerôncio Rocha – Melissa Curi [1], geóloga e antropóloga, fez em 2007 um competente estudo dos aspectos legais da questão, iniciando com a seguinte abertura: “A regulamentação da mineração e do potencial energético em terras indígenas, o processo demarcatório bem como as inúmeras ocupações ilegais de madeireiros, garimpeiros, agricultores etc., compõem os capítulos atuais e contínuos da história do contato desrespeitoso entre sociedade envolvente e os povos indígenas”. A partir daí, lista e descreve os principais requisitos necessários à aprovação do Congresso: a) consulta às comunidades indígenas afetadas; b) participação da comunidade nos resultados da lavra; c) obrigatoriedade de estudo de impacto ambiental; d) necessidade de laudo antropológico; e) necessidade de licitação para exploração mineral; f) garantia de recuperação de área degradada.
Existem na Câmara Federal vários projetos de lei específica versando sobre a mineração em terras indígenas, todos eles discutidos em diferentes legislaturas, sem lograr aprovação. Ao lado deles, existe uma proposta mais ampla – o Estatuto dos Povos Indígenas, de 2009, da Comissão Nacional de Política Indigenista [2], que abriga no seu título VI- Do aproveitamento dos recursos minerais e hídricos – os citados requisitos. No conjunto, o novo Estatuto normatiza direitos e obrigações em áreas indígenas, como demarcação de terras, uso de recursos florestais, proteção ambiental, saúde, educação e atividades produtivas, além de normas penais e punições de crimes contra os índios.
Considerando que essa nova versão do Estatuto trata de uma ampla e atualizada base jurídica de convivência do Estado com as sociedades indígenas; que o texto resultou de reuniões regionais de consulta e consenso, parece-nos mais lógico e producente pautar no Congresso a discussão deste documento. Naturalmente, teria de haver consulta prévia às entidades indigenistas. Se esse encaminhamento prevalecer, será um passo histórico do Congresso Nacional.
O efeito mais imediato da exploração descontrolada do ouro ocorre sobre o sistema hídrico: a remoção do solo à beira dos cursos d’água modifica as várzeas e provoca o assoreamento e a turvação das águas, comprometendo, inclusive, o abastecimento público. Em certos rios, como o Madeira, as dragas operam diretamente sobre seu leito, retirando-lhe os sedimentos de fundo.
Todavia, o perigo maior para as populações e o ecossistema está no uso intensivo do mercúrio utilizado na extração do ouro. O processo se inicia com a preconcentração do ouro por meios gravimétricos. O material preconcentrado é misturado com o mercúrio, ocorrendo amalgamação com as partículas de ouro. Este amálgama é então queimado com tochas de gás propano, liberando vapor de mercúrio diretamente na atmosfera; o excesso, na forma de metilmetano, é despejado na água, indo se depositar nos sedimentos de fundo.
A produção de ouro com o uso de mercúrio engendra, dessa maneira, três vetores que podem afetar a saúde pública: a) contaminação com mercúrio vapor diretamente sobre os trabalhadores garimpeiros; b) poluição das águas e sedimentos, com a possibilidade de metilação do mercúrio e sua absorção pelos peixes, afetando a cadeia alimentar das populações locais; c) contaminação com mercúrio vapor nos numerosos pontos de venda do mercúrio, onde ele é mais uma vez queimado. Esses efeitos maléficos ocorrem de modo generalizado em todos os cursos de água em que é praticada a garimpagem de ouro.
Atenção! Os efeitos tóxicos do mercúrio incluem danos ao cérebro, rins e pulmão. Os sintomas das várias doenças dependem do modo de exposição e do tipo químico de sua ocorrência.
IHU On-Line – O senhor tem acompanhado as discussões em torno do Sínodo Pan-Amazônico?
Gerôncio Rocha – O Papa Francisco é um cara legal; está sempre do lado dos ofendidos e humilhados. É, também, de sabedoria discreta. A encíclica Laudato Si’ é uma esperança de vida ante o colapso da mentalidade capitalista. Creio que este Sínodo será um pontapé inicial de reação dos povos todos, do continente amazônico, por democracia de fato.
Notas:
[1] Melissa Curi: aspectos legais da mineração em terras indígenas. Revista de estudos e pesquisas, Funai, 2007. (Nota do entrevistado)
[2] Ministério da Justiça / Comissão Nacional de Política Indigenista: proposta de estatuto dos povos indígenas, 2009. (Nota do entrevistado)
Foto: Helena Andrade