A República Partida e o Partido Fardado
(Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)
por Pedro Marin | Revista Opera
As últimas semanas nos deram mais uma vez manifestação clara de que, ao contrário do que imaginavam os mais esperançosos, a República não opera na mais perfeita normalidade, e o Partido Fardado segue todavia vivo e atuante. Deixemos que as palavras refresquem nossa memória.
Primeiro, o vazamento do documento da Escola Superior de Guerra (ESG) “Cenários de Defesa 2040” levou os militares às páginas dos jornais. Como argumentei, o relatório, adornado pelo melhor que a Doutrina Monroe pode oferecer, demonstrava a força dos militares dentro do governo.
Depois, no dia 9 de fevereiro, o miliciano Adriano Magalhães da Nóbrega foi morto em uma ação policial na Bahia, após passar um ano foragido. Ex-policial e apontado como chefe da milícia de Rio das Pedras, Adriano fora homenageado diversas vezes pela família Bolsonaro. Flávio concedeu a ele a maior honraria da Assembleia Legislativa do Rio, a Medalha Tiradentes, além de ter empregado sua mãe e esposa como funcionárias de seu gabinete, e o atual presidente – à época deputado – o elogiou em discurso na Câmara, chamando-o de “brilhante oficial”. Pesavam sobre Adriano ainda uma infinitude de perguntas não respondidas sobre a morte da vereadora Marielle Franco.
Coincidentemente, poucos dias depois, o general Braga Netto, interventor no Rio quando Marielle foi assassinada, foi apontado para chefiar a Casa Civil, no lugar de Onyx Lorenzoni. O presidente prometeu que o general faria no governo o que fez no Exército. Intervir? Ou, talvez, manter-se bem calado?
Neste ínterim, o vice-presidente Hamilton Mourão – também ele um general – foi apontado por Bolsonaro para chefiar o Conselho da Amazônia. Se o documento da ESG falava ontem de perigos franceses na região, hoje temos um general coordenando as políticas públicas para ela. Como disse, a força dos coturnos sobre o presidente, não a dele sobre eles.
Nesse meio tempo enfim virou coisa corrente falar de militarização no governo. Afinal, até o presidente celebrou um governo “completamente militarizado”. Miguel Reale Jr., autor do processo de impeachment contra Dilma Rousseff, lembrou que Bolsonaro é concorrente a igual processo. A Istoé estampou o impeachment em sua capa. E a Folha de São Paulo declarou: Bolsonaro não tem vocação para o longo prazo.
No dia 19 de fevereiro, no Ceará, policiais encapuzados rondaram a cidade de Sobral com suas viaturas e pistolas, aterrorizando a cidade e mandando comerciantes fecharem suas lojas. O senador Cid Gomes foi à cidade e, com uma retroescavadeira, avançou sobre a barricada dos policiais aquartelados. Levou dois tiros no peito. Apesar de temeroso, não é absurdo que, em uma situação de tensão envolvendo policiais grevistas, haja disparos. Mas que eles venham de três pontos diferentes, taticamente postos, em sincronia, e que não haja nenhum disparo de advertência, para cima, é de fato de saltar aos olhos. De qualquer maneira, ao Ceará – de onde havia partido dois dias antes uma das assinaturas na carta dos 20 governadores criticando Bolsonaro – o Exército já foi enviado, por meio de medida de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
Mas enfim chegamos à situação atual. Também no dia 19, o general Heleno, chefe do GSI, acusou o Congresso de fazer chantagem contra o governo para ter controle sobre recursos. Disse que o presidente deveria deixar claro à população que está sob pressão. E emendou: “foda-se”.
A fala do general gerou reações na Câmara e no Senado. Mas também entre a base bolsonarista, que fomentada por deputados e pelo próprio presidente, passou à convocação de manifestações para o dia 15 de março contra o Congresso e em apoio aos militares.
Tracemos os cenários para tal ato:
1 – As manifestações do dia 15 são grandiosas. Os generais e Bolsonaro dobram o Congresso e se estabelecem como um superpoder. O Congresso, por sua vez, vira um poderico acuado, que só sobrevive aceitando sua posição humilhante de poder tutelado.
2 – As manifestações são irrisórias. O Congresso decide ir pra cima de Bolsonaro com toda a força. Trava o governo. Abre um processo de impeachment. Quem assume?
3 – O Congresso decide ir pra cima de todos: Bolsonaro, generais, etc. Mas só pode fazê-lo com a legitimidade da lei, que afinal de contas só se confirma pela interpretação do Judiciário – até o momento calado – e só existe pela inexorável legitimidade imposta pelas armas. O Congresso é intimidado, tutelado, humilhado e, em última instância, dobrado pela força das armas – agora com o agravante de ter se rebelado contra o presidente.
Fica assim claro que não é por princípio que temos insistido na posição central que os militares têm alcançado nos últimos quatro anos na República – agora oficialmente partida – como um fenômeno central. Nem é por princípio que argumentamos que a única força capaz de detê-los é a organização do povo, feita a determiná-lo para o combate de todo tipo. Se o primeiro cenário se consolida, e as manifestações têm envergadura, o Congresso terá de dar um passo atrás. Se o caso é o segundo cenário, e o Congresso decide levar a peleja até a última rodada, será sob um general que ficará o comando da Nação. E se se confirmar o terceiro cenário, no qual o Congresso busca impedir tanto o presidente quanto o vice, é certo que vale também para o Parlamento as lições dadas por Eduardo Bolsonaro sobre o STF: para fechá-lo, basta um cabo e um soldado.
Vemos que em todos os cenários de conflito a preponderância será militar. Como dissera Clausewitz, a guerra não é um ato de paixão sem sentido, mas sim um fenômeno controlado pelo propósito político. E “quando o dispêndio de esforços ultrapassar o valor do propósito político, este deverá ser abandonado e a paz deverá ser a consequência inevitável.” Dissera também que “o lado que tiver o menor anseio pela paz naturalmente virá a obter o melhor acordo”. Assim, ou o Congresso se dobra ou é dobrado.
As figuras que aparecem, portanto, rasgando elogios a este ou aquele general que agora, como antes, é “um verdadeiro democrata”, “um nacionalista”, “uma figura comprometida”, não poderiam ser mais míopes. Confiam na salvação de um terceiro sobre o qual não têm controle nenhum – uma sandice estratégica; o antimaquiavel buscando um principado pelas armas de outros. Confiam a tarefa da oposição ao governo, ainda, a uma figura que fez parte precisamente deste governo. E, por fim, confiam-na aos militares, em um momento de aguda crise política na República. Não se esqueceram só de 1945, 1954, 1961 e 1964: esqueceram-se de 1889. Não é só à Folha que o presidente é descartável; mas também ao Partido Fardado. A Patrona da Família Militar já não se encontra aqui para ver o que fazem seus filhos. E eles já passaram a marchar.