A fascistização da educação pública

imagemCrédito: Marcelo Camargo/EBC

As Escolas Cívico-Militares do Governo Bolsonaro e o projeto de fascistização da educação pública

Rodrigo Lima

No dia 05 de setembro de 2019, o Presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) assinou o Decreto nº 10.004 que instituiu o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), que prevê a implementação do modelo de gestão militar em 216 unidades escolares nos próximos quatro anos, sendo 54 escolas por ano.

O Pecim é voltado para escolas públicas dos ensinos fundamental e médio e será realizado em colaboração com as redes estaduais e municipais, sob coordenação do Ministério da Educação contando com o apoio do Ministério da Defesa.

A militarização das escolas de educação básica faz parte do projeto de educação do governo bolsonarista. Jair Bolsonaro, quando candidato, apresentava tal proposta no sentido de cumprir dois objetivos: combater nas escolas o que ele define como “doutrinação” ideológica e disciplinar crianças e adolescentes, sob a alegação de evitar a violência contra os professores no ambiente escolar.¹

Logo no início do seu governo, no dia 02 de janeiro de 2019, uma das primeiras medidas tomadas foi a criação da Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares (Secim), através do Decreto nº 9.665.

Contudo, o Pecim do Governo Bolsonaro não criou um modelo novo de educação autoritária e militarizada, pois o projeto de escolas cívico-militares faz parte de um processo mais amplo, que já vem sendo construído e implementado por redes estaduais e municipais de educação no país desde o final da década de 1990.

O atual modelo de militarização das escolas teve no Estado de Goiás um dos seus primeiros laboratórios, durante o primeiro mandato do tucano Marconi Perillo (PSDB) como Governador (1999-2002), quando iniciou-se a transferência da gestão de unidades escolares da rede pública estadual para a Polícia Militar do Estado de Goiás.

Durante a década de 2010 o modelo ampliou-se significativamente no contexto goiano e expandiu-se para outros estados. Segundo reportagem da Revista Época², entre 2013 e 2018, o número de unidades escolares estaduais com gestão da Polícia Militar avançou para 14 estados da Federação, saltando de 39 para 122 escolas, um aumento de 212%.

Importante ressaltar que o modelo vem sendo implementado por governos de diferentes partidos políticos, não ficando restrito apenas a governos considerados conservadores. Legendas situadas no chamado “campo progressista” também têm aderido à militarização como forma de organização e gestão educacional. Se em Goiás as escolas militarizadas foram implementadas por governos do PSDB, na Bahia o modelo foi implementado pelo Governador Rui Costa do Partido dos Trabalhadores (PT), sob o nome de “Vetor Disciplinar”.

Além do controle militar, outra característica em comum ao modelo que vem sendo implementado em diferentes regiões do país é a de que a maioria das escolas selecionadas encontram-se na periferia de centros urbanos, direcionadas para estudantes e comunidades que vivem em bairros pobres.

Sob o Governo Bolsonaro o projeto de escolas militarizadas avança de um cenário de experiências regionalizadas, coordenadas por iniciativas estaduais e municipais, para uma política nacional que conta com uma orientação geral, com diretrizes unificadoras, com metas a serem atingidas e com a disponibilidade de recursos financeiros da União destinado aos sistemas escolares, para que a implementação do Pecim seja realizada.

Após a assinatura do Decreto nº 10.004/2019, 15 estados (Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Ceará, Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina) e o Distrito Federal³ aderiram ao modelo de escola cívico-militar, a ser iniciado no ano de 2020.

A adesão foi feita por estados governados pelos seguintes partidos políticos: PSL, PT, PDT, Novo, PSDB, DEM, PHS, PP, MDB, PDT, PSC e PSD, siglas que aparentemente apresentam-se como antagônicos no espectro político-ideológico, mas que estão em acordo com o projeto de militarização das escolas que foi elaborado e organizado pelo governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro.

Antes de avançarmos na análise do Pecim e suas implicações na educação brasileira, é importante, a título de esclarecimento, diferenciarmos as escolas cívico-militares dos tradicionais colégios militares existentes no país.

Os colégios militares tiveram sua origem em 1889, nos últimos meses de existência do Império, com a criação do Imperial Colégio Militar que foi instalado na cidade do Rio de Janeiro em março daquele ano, atendendo uma demanda dos militares por uma instituição escolar que preparasse os filhos dos integrantes do Exército.

Atualmente, existem 14 colégios militares no país, localizados nas cidades do Rio de Janeiro, Porto Alegre, Fortaleza, Manaus, Brasília, Recife, Salvador, Belo Horizonte, Curitiba, Juiz de Fora, Campo Grande, Santa Maria, Belém e São Paulo (este em fase de construção).

Eles estão diretamente ligados ao Sistema Colégio Militar do Brasil, que é subordinado ao Exército Brasileiro e ao Ministério da Defesa. O ingresso nestas instituições, que ofertam ensino fundamental e médio, se dá por meio de concursos públicos ou amparo regulamentar que é uma forma de ingresso que atende as demandas educacionais de dependentes dos militares. São escolas frequentadas por um seleto grupo de estudantes, com perfil de renda familiar muito alta. O custo de um aluno dos colégios militares chega a ser três vezes maior do que o de quem estuda em escolas da rede pública.⁴

São escolas que sustentam seus planos pedagógicos em um modelo autoritário, baseado na disciplina e hierarquia:

É neste cenário que se inserem os Colégios Militares, educandários fortemente ancorados nos valores éticos e morais, nos costumes e nas tradições cultuados pelo Exército Brasileiro. É deste somatório que emerge a identidade do Sistema, o diferencial capaz de gerar vínculo, apego e sentimento de pertença aos Colégios. Como estabelecimentos de ensino filiados aos códigos do Exército, os Colégios Militares sustentam-se sobre os mesmos pilares: a hierarquia e a disciplina. Esta peculiaridade, que os distinguem no todo maior da educação nacional, reforça a imagem que os Colégios Militares vieram lapidando ao longo de mais de cento e vinte anos: sua marca particular .⁵
Além dos colégios ligados ao Exército, também existem colégios mantidos pela Marinha, pela Força Aérea, pelo Corpo de Bombeiros e pelas Polícias Militares estaduais, que organizam escolas próprias, geridas diretamente por estas instituições.

Ainda que preze pela organização a partir de uma doutrina militar, o modelo de escolas cívico-militares proposto pelo Governo Bolsonaro difere substancialmente dos colégios militares. Se estes servem para preparar uma pequena elite de estudantes, tendo como um dos principais objetivos a manutenção do ciclo de privilégios das famílias dos militares, o primeiro atenderá uma ampla massa de estudantes pobres e carentes, com o objetivo de disciplinar e militarizar o ensino, como um mecanismo de controle social da pobreza e dos movimentos sociais ligados à educação, além de servir como uma base de difusão do nacionalismo de direita e contemplação de bases sociais ligadas ao bolsonarismo, como é o caso dos militares da reserva que poderão atuar nessas instituições.

O modelo autoritário e disciplinador proposta pela política educacional do Governo Bolsonaro fica explícito no documento⁶ criado pelo Ministério da Educação para as Ecim. O “Manual das Escolas Cívico-Militares”, divulgado no mês de fevereiro de 2020, apresenta a concepção do modelo educacional e aborda vários aspectos sobre a forma de organização escolar.

O documento de 342 páginas é subdividido nos seguintes tópicos: Regulamento das Ecim; Projeto Político-Pedagógico; Projeto Valores; Normas de Apoio Pedagógico; Normas de Avaliação Educacional; Normas de Psicopedagogia Escolar; Normas de Supervisão Escolar; Normas de Gestão Administrativa; Normas de Conduta e Atitudes; Normas de Uso de Uniformes e de Apresentação Pessoal dos Alunos e Cartilha para os Responsáveis.

A lógica de funcionamento de um quartel permeia toda a organização escolar. A direção escolar será composta por diretor e vice-diretor civis, escolhidos conforme critérios estabelecidos por cada secretaria estadual de educação, que serão assessorados por um Oficial de Gestão Escolar, um militar que terá entre outras atribuições a de atuar na supervisão às atividades da gestão educacional, didático-pedagógica e administrativa, agindo como uma espécie de tutor dos diretores. Ele será o elo de ligação da escola com o Ministério da Defesa.

Subordinados diretamente ao Oficial encontram-se os “monitores”, um corpo de militares que atuará diretamente com os/as alunos/as. A estrutura organizacional da escola toma ares de quartel, pois todos os setores da escola, da secretaria à biblioteca, contarão com a figura de “Chefes”, que realizarão a supervisão das atividades, e “Divisões” como nova forma de denominação dos departamentos. A militarização e o controle estarão presentes em todo o ambiente escolar.

As entidades de representação estudantil estarão totalmente subordinadas à direção escolar, perdendo sua autonomia e liberdade de organização, o que fere frontalmente a Lei do Grêmio Livre (Lei n° 7398/1985). Segundo o Regimento das Ecim, os/as estudantes só poderão participar das organizações associativas se forem autorizados pela direção da escola e supervisionados por um orientador civil ou militar.

Os/as estudantes tampouco poderão estabelecer relações com organizações e/ou entidades “estranhas” à escola sem o conhecimento do Diretor. Tais regras, além de serem inconstitucionais, revelam a preocupação do controle total sobre os/as estudantes e suas organizações, uma forma de cerceamento das mobilizações, o que consiste numa resposta conservadora e autoritária a movimentos estudantis recentes, como as ocupações de escolas.

Com relação aos trabalhadores em educação das escolas cívico-militares, ainda que o Manual não toque diretamente em temas relativos à sindicalização, reuniões sindicais na escola, participação em mobilizações, lutas e greves da categoria, é possível supor que um ambiente militarizado, controlado e organizado por militares da reserva impactará negativamente na organização dos/as trabalhadores/as em educação, com restrições e perseguições de todo tipo.

O sistema disciplinar das Ecim baseia-se em normas de condutas e atitudes que estabelecem recompensas e punições, criando um sistema de pontos para avaliar o comportamento dos/as estudantes, assim como um regime de imposições e castigos, apontando para uma formação educacional autoritária, na qual os/as estudantes se comportam com receio de possíveis punições. Um ambiente escolar pautado pelo medo.

A militarização está presente em todos os aspectos da vida escolar. Os alunos terão de realizar o hasteamento diário da bandeira nacional, permanecer em ordem unida, e as turmas terão de se deslocar no ambiente escolar em forma e em passo ordinário. O manual prevê rondas dos monitores militares no interior da escola com o objetivo de controle das ações dos/as alunos/as.

O uso do uniforme e apresentação dos/as estudantes também implica numa série de imposições, como o tamanho das saias para as meninas (na altura dos joelhos), um modelo único de corte de cabelo para os meninos e a restrição do uso de acessórios.

Além da militarização das escolas, o modelo das escolas cívico-militares cumpre um papel político fundamental para o Governo Bolsonaro, ao contemplar amplamente os militares inativos das Forças Armadas, das polícias militares e do corpo de bombeiros militares. Eles atuarão nas escolas como prestadores de tarefa por tempo certo (PTTC), que é definida enquanto a execução de atividades de natureza militar por militares inativos, em qualquer área da administração pública. Nesta modalidade, os militares recebem 30% de remuneração sobre o valor dos seus vencimentos, além de serem contemplados com auxílios transporte e alimentação, para o exercício da atividade.

No caso das Ecim a primeira contratação dos militares no regime de PTTC valerá inicialmente por 12 meses, podendo ser renovada de forma sucessiva, tendo como limite inicial o período de 10 anos, que também poderá ser renovado. A partir deste regime de contratação, os militares da reserva receberão um aumento considerável em suas remunerações, para um tipo de vínculo que pode se estender para toda a vida.

Grande parte da verba anual dos R$ 54 milhões previstos pelo MEC para a implementação das Ecim, será destinada para o pagamento dos salários dos militares que atuarão nas escolas.⁷ O Pecim prevê a necessidade de um quantitativo de 18 militares para uma escola com mil alunos matriculados. Desta forma, Bolsonaro conseguirá atender uma base social considerável, mantendo os militares da reserva coesos como um dos pilares de sustentação do bolsonarismo.

À guisa de conclusão cabe analisar o quanto as escolas cívico-militares cumprem o papel de formação de segmentos importantes da população nos marcos da doutrinação militar e da ideologia autoritária de extrema-direita propalada pelo Governo Bolsonaro. Em sua guerra ideológica e cultural contra o movimento estudantil e suas entidades, professores e seus sindicatos e contra as universidades públicas e os institutos federais, sob a falsa bandeira de combate ao “marxismo cultural”, o líder da extrema direita brasileira aposta na expansão das escolas cívico-militares enquanto um referencial do seu projeto educacional.

O Pecim, portanto, consiste em um projeto de fascistização das escolas de educação básica brasileiras. Nacionalismo, militarismo, autoritarismo, controle e disciplinamento são bases do movimento político e social conservador que orientam as políticas educacionais do Governo Bolsonaro. A título de comparação, o modelo de massificação das escolas cívico-militares encaixa-se perfeitamente nos moldes do pensamento educacional do fascismo italiano. Em 1935, Cesare Maria De Vecchi, ministro da educação nomeado por Benito Mussolini, deu o seguinte depoimento sobre o modelo de militarização das escolas implementado na Itália Fascista:

elimina-se toda separação entre vida civil e vida militar; são demolidas as barreiras existentes entre as instituições civis e as instituições militares; opera-se uma íntima fusão entre as beneméritas Organizações juvenis, as gloriosas Forças Armadas e a Escola; a educação militar, assumindo um altíssimo valor moral, torna-se um elemento substancial da educação geral; e à Escola, principalmente, cabe a honrosa e lisonjeira missão da formação do italiano novo, do Cidadão Soldado.⁸
Qualquer semelhança não é mera coincidência!

As escolas cívico-militares do Governo Bolsonaro também retomam princípios do modelo educacional autoritário vigente durante a ditadura empresarial-militar, que durou entre 1964 e 1985, no qual disciplinas como Educação Moral e Cívica e Organização Social da Política Brasileira serviam para legitimar o regime e seus valores e que tinham no autoritarismo na organização do cotidiano escolar um de seus pilares. Através da hierarquia, do disciplinamento e do medo, os militares cercearam qualquer possibilidade de pensamento crítico e autônomo das crianças e adolescentes da época. O Governo Bolsonaro toma essa inspiração e vai além, ao inserir militares da reserva na gestão direta de escolas públicas de educação básica. A ditadura empresarial-militar não foi tão ousada!

Plano de Governo de Jair Bolsonaro: “O CAMINHO DA PROSPERIDADE Proposta de Plano de Governo” (slide 46). Disponível em: <https://static.cdn.pleno.news/2018/08/Jair-Bolsonaro-proposta_PSC.pdf> Acesso em 10 fev. 2020.
CAMPOREZ, Patrick. Número de escolas públicas militarizadas no país cresce sob o pretexto de enquadrar os alunos. Revista Época, 2018. Disponível em <https://epoca.globo.com/numero-de-escolas-publicas-militarizadas-no-pais-cresce-sob-pretexto-de-enquadrar-os-alunos-22904768> Acesso em 10 fev 2020.
TOKARNIA, Mariana. Quinze estados e DF aderem ao Programa das Escolas Cívico-Militares. Agência Brasil, 2019. Disponível em <http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2019-10/quinze-estados-e-df-aderem-ao-programa-das-escolas-civico-militares> Acesso em 12 fev 2020.
CAFARDO, Renata. Estudante de Colégio Militar custa três vezes mais que o de escola pública. Portal Uol, 2018. Disponível em <https://noticias.uol.com.br/politica/eleicoes/2018/noticias/agencia-estado/2018/08/26/estudante-de-colegio-militar-custa-tres-vezes-mais-que-o-de-escola-publica.htm> Acesso em 12 fev 2020.
SISTEMA COLÉGIO MILITAR DO BRASIL.Diretoria de educação preparatória e assistencial, Ministério da Defesa, 2020. Disponível em <http://www.depa.eb.mil.br/sistema-colegio-militar-do-brasil> Acesso em 12 fev 2020.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Subsecretaria de fomento Às escolas cívico-militares. Manual das escolas cívico-militares. Disponível em: <http://www.consultaesic.cgu.gov.br/busca/dados/Lists/Pedido/Attachments/837270/RESPOSTA_PEDIDO_ECIM_Final.pdf> Acesso em 12 fev 2020.
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DE VECCHI, Cesare apud HORTA, José Silvério Baia. A educação na Itália fascista (1922-1945). Revista Brasileira de História da Educação, n° 19, p. 47-89, jan./abr. 2009. (pg. 73)

Referências

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HORTA, José Silvério Baia. A educação na Itália fascista (1922-1945). Revista Brasileira de História da Educação, n° 19, p. 47-89, jan./abr. 2009.

KONDER, Leandro. Introdução ao Fascismo. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979.

ROSA, Cristina Souza da. Pequenos soldados do fascismo: a educação militar durante o governo Mussolini. Revista Antíteses, Londrina, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 621-648.

VELOSO, Ellen Ribeiro; OLIVEIRA, Nathália Pereira de. Nós perdemos a consciência? apontamentos sobre a militarização de escolas públicas estaduais de ensino médio no estado de Goiás. In: OLIVEIRA, Ian Caetano de; SILVA, Victor Hugo Viegas de Freitas (org.). Estado de exceção escolar: uma avaliação crítica das escolas militarizadas. Aparecida de Goiânia: Escultura, 2016. p. 71-84.

Fonte: https://natrincheiradasideias.wordpress.com/2020/02/26/as-escolas-civico-militares-do-governo-bolsonaro-e-o-projeto-de-fascistizacao-da-educacao-publica-no-brasil

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