Racismo, desigualdade e Covid-19
O que nos dizem os números das mortes no coração do sistema capitalista
*Por Fábio Bezerra
Um processo de crise social traz à tona e desvela todo um conjunto de contradições que muitas vezes são subsumidas pela alienação que a rotineira sociabilidade do modo de produção capitalista produz.
Nesse instante os mitos neoliberais caem dos céus e se esborracham no solo árido da realidade, onde as falácias do propalado “Estado mínimo e não interventor” ou a sagacidade da “mão invisível do mercado”, expoentes do mantra liberal tão cantado e decantado nos últimos anos como veio para o “desenvolvimento civilizatório”, se resumem ao nada frente ao caos nos mercados e a restrição de circulação social causados pelo avanço do Covid-19 em todo o mundo. No coração do sistema capitalista e fonte de inspiração para governos subservientes e lacaios do imperialismo, os índices de óbitos nos revelam muito mais do que a expansão do vírus na nação mais rica do mundo.
Os EUA assumiram na última semana o posto de principal país infectado e com o recorde de óbitos diários. É o país onde o vírus muito provavelmente fará o maior número de vítimas fatais e infectará o maior número de habitantes em todo o planeta!
A ausência de um Sistema Único de Saúde, integrado e público tem sido um dos principais fatores do aumento de vítimas fatais, em especial entre os pobres e nesse aspecto é gritante o percentual de mortos entre a população afro-americana e latina.
Na cidade de Nova York a mortandade entre latinos já ultrapassa os 34% e entre afrodescendentes chega a 28% do total de óbitos. Juntos, esse percentual chega a algo em torno dos 62% de mortos. Em Chicago, cidade onde Barack Obama fez carreira, até o último dia 07, a taxa de mortes pelo novo coronavírus entre a população afrodescendente, que compõe cerca de 30% dos habitantes locais, era de mais de 68%! Esses dados se repetem em praticamente todos os grandes e médios centros urbanos no país do Tio Sam.
A grande maioria da população afrodescendente nos EUA vive em condições desiguais: em sua maioria, trabalhadores(as) negros(as) recebem salários mais baixos, o que compromete financeiramente o uso de planos de saúde privados, segregando e dificultando ainda mais o acesso a cuidados com a saúde e a prevenção de doenças que aumentam o risco para pacientes com Covid-19.
Essas condições objetivas – que têm um lastro histórico constituído e pautado pela desigualdade e o racismo como base do desenvolvimento de acúmulo de riqueza nos EUA -, ajudam a explicar o aumento de doenças cardiorrespiratórias, diabetes e hipertensão, entre a população afrodescendente estadunidense, fatores de risco que aumentam os riscos de internação e óbitos. Além disso, um outro fator, associado à precarização no mundo do trabalho, nos ajuda a entender o alto número de infecção nessa parcela da população (latinos e afrodescendentes), ou seja, a exposição a trabalhos que não são promovidos na modalidade “home service” (serviço em casa) que exigem maior exposição diária com a circulação em vagões e ônibus lotados e contatos com outras pessoas no ambiente de trabalho, sem materiais ou condições de segurança.
No caso da população latina, geralmente ligada a trabalhos muito precários e de exposição diária – taxistas, pintores, faxineiros, trabalhadores(as) construção civil, entre outros -, que impedem o isolamento social, aumenta a probabilidade de contágio, além de muitos(as) trabalhadores(as) estarem em situação migratória irregular, impedindo-os de procurar as autoridades de saúde por receio de deportação devido ao enrijecimento das medidas antimigratórias de Donald Trump. O número de mortes em casa entre os latinos já é o maior em Nova York, onde são enterrados em valas comuns às centenas!
Essa situação se agrava ainda mais com o aumento da taxa de desemprego, que poderá chegar até o final do ano de 2020 à surpreendente marca de 45 milhões, a maior desde a crise de 2008! Em março, o setor produtivo fechou mais de 700 mil postos de trabalho, em especial aqueles relacionados à prestação de serviços, setor que aloca a maioria da população latina e afrodescendente. Como ressaltado acima, grande parte de imigrantes latinos não possuem reconhecimento formal e estariam dessa forma desamparados, sem acesso a qualquer programa de assistência estatal, inclusive ao seguro-desemprego.
Ou seja, é no conjunto da classe trabalhadora mais precarizada e discriminada por décadas em relação a direitos e condições de existência básicas que avançam de modo mais imediato e avassalador os contágios e as mortes, revelando a face desumana e cruel da exploração da força de trabalho no país mais rico do mundo, modelo idealizado de sociedade por muitos intelectuais conservadores, políticos, youtubers e os lacaios do imperialismo presentes na imprensa brasileira.
Entre tantas contradições que a pandemia do Covid-19 tem nos revelado, sem sombra de dúvidas, entre elas, está a falsa ilusão na democracia liberal estadunidense e na liberdade de condições que o mercado proporciona ao cidadão. Nesse momento, todas essas mentiras capitalistas vão se despindo de suas falácias jurídicas e filosóficas para expor de forma “nua e crua” a discriminação e o preconceito como pilares da exploração e da produção desigual da riqueza naquele que é o modelo ideal de sociedade!
Esse pilares são mitigados e camuflados, entre outras formas e arranjos ideológicos, pela propagação de teorias identitárias, que fizeram escola nas terras do Tio Sam e que, a partir de um recorte da identidade específica, desassociado do modo de produção e da situação de classe, iludem e desarmam trabalhadoras(es) no que tange à compreensão dos inevitáveis e contínuos mecanismos de exploração, subjugação e alienação, que, indissociáveis, fazem parte do amálgama estrutural presente na produção e reprodução da sociabilidade do capital.
Há um jargão muito comum nos debates sobre análise de conjuntura, de que “as crises abrem janelas de oportunidades”… Sim, é vero! E dentre as janelas de possibilidades que se abrem, escancaradas, sem cortinas e sem gradil, a oportunidade de denunciar e desmascarar as mentiras e as contradições do modo de produção capitalista torna-se uma das nossas principais tarefas nesse momento! Pois não tardará, muito breve, como de costume, os asseclas e lacaios do sistema saírem de suas catacumbas para assombrar corações e mentes com sua verborragia mítica, romântica e venenosa, sobre as vicissitudes da economia de mercado e do paraíso liberal nas terras do Tio Sam!
A solidariedade de classe não está dissociada da agitação e da propaganda revolucionária, que, por sua vez, é também um potente mecanismo de formação combativa. E uma das necessárias tarefas que nos cabe nesse momento é desmascarar esse sistema desumano e genocida junto à classe trabalhadora, que, em seus momentos de crise sistêmica, agudizam a destruição de força de trabalho e a exposição e a eliminação de vidas!
No Brasil, essas referências ideológicas sobre a sociedade estadunidense, tais como o “American way of life” ou estilo de vida americano, que tanto foi aclamado nas guerrilhas virtuais em tempos de propaganda pró Bolsonaro, durante a campanha eleitoral de 2018 – e que ainda são utilizadas pelas hordas virtuais neoliberais -, têm em suas versões pós modernas tais como as teorias pautadas pelo identitarismo cheio de ilusões com o capital, um sofisticado mecanismo voltado a iludir e alienar, para encobrir a dinâmica e a essência do sistema capitalista.
Essa dinâmica e essência se revelam nas contradições que expõe o Deus Mercado, no coração do Império, expondo a sua nudez mais grotesca, deletéria e selvagem.
Professor e membro do CC/PCB
Fonte da imagem: http://www.cpusa.org/article/town-hall-taking-care-of-our-working-class/