De Que Lado Você Está?

imagemLeonardo Silva Andrada

Paula Campos Pimenta

Durante a Grande Depressão que caracterizou o capitalismo do entreguerras, a classe operária foi duramente atacada para que seus esforços cobrissem os prejuízos do capital. Nos diferentes ramos da produção, cada categoria era submetida a um processo que era universal em seu significado: a redução dos salários, a precarização de suas condições de vida e trabalho, a eliminação de garantias mínimas. Igualmente generalizada era a estratégia da burguesia para garantir seus interesses e evitar que a classe trabalhadora percebesse a condição em que se encontrava, identificando um caminho para transforma-la. Tratava-se de impedir a organização e consolidação da ferramenta de luta dos trabalhadores, a sua união em sindicatos. Entre tantos casos, um acabou se tornando histórico, e reter a atenção sobre ele pode ajudar a dar contornos mais definidos ao que chamamos de luta de classes.

Em 1931, como estratégia para garantir seus lucros, a associação de empresas de mineração de Harlan County, nos EUA, determinou um corte de 10% nos salários dos mineiros. O sindicato nacional da categoria tentou organizar os trabalhadores da área, obtendo como resposta patronal a demissão dos sindicalizados e despejo, com suas famílias, das moradias que eram propriedade das empresas. A categoria não se intimidou, e os trabalhadores ainda empregados iniciaram uma greve de solidariedade, com a adesão de mais de 5000 companheiros na luta. O que estava em questão, afinal, era o direito de se organizar e lutar por melhores salários e condições de trabalho. Os que se decidiram por furar a greve contavam com a proteção da polícia, sob o comando de um xerife que não tinha pudores de declarar abertamente que estava ali para garantir os interesses dos patrões e perseguir os comunistas.

Sem a proteção de qualquer garantia trabalhista, os grevistas enfrentavam a fome com organização e solidariedade. O sindicato comunista estruturou refeitórios nos bairros operários, que também eram alvo de perseguição. O recrudescimento da repressão e a decisão por resistir levou ao confronto aberto, com emboscadas, tiroteios, explosões de bombas e mortes ao longo de quase toda a década, entrando para a história como A Guerra de Harlan County. Um episódio marcante na história das lutas da classe trabalhadora abordado em filmes, discutido em livros, e imortalizado em uma música que conta com dezenas de versões. Seu título-pergunta é um chamado ao posicionamento nesse embate que move a história: “De que Lado Você Está?”. A canção intimação foi composta por Florence Reece, casada com um dos sindicalistas caçados pela polícia, e sua declaração em um documentário sobre os eventos é testemunho eloquente de como se expressa a luta de classes em sua forma repressiva na vida cotidiana dos trabalhadores:

“Xerife J.H. Blair e seus homens entraram na nossa casa procurando Sam – esse era meu marido – ele era um dos líderes do sindicato. Eu estava sozinha em casa com nossos sete filhos. Eles reviraram a casa inteira e depois permaneceram de vigia do lado de fora, esperando para atirar em Sam quando ele voltasse. Mas ele não voltou aquela noite. Depois disso eu arranquei uma folha do calendário na parede e escrevi a letra de “Which Side Are You On?” (De Que Lado Você Esta?) com a música de um velho hino batista, “Lay The Lily Low”. Minhas músicas sempre vão para os desvalidos – os trabalhadores. Eu sou uma deles, e eu senti que deveria estar com eles. Não existe essa coisa de neutralidade. Você tem que estar de um lado ou de outro. Alguns dizem “eu não tenho lado – eu sou neutro”. Isso não existe. No seu íntimo, você está em um lado ou outro. Em Harlan County não havia neutros. Se você não era um capanga, você era sindicalista. Você tinha que ser.”

A composição de Florence Reece, surgida em meio à luta dos mineiros, se tornou um clássico em diferentes versões. Com emoção e harmonia, canta a união entre patrões e poder público para o controle da classe operária e a importância de união e organização para os trabalhadores defenderem seus interesses. As referências da letra são emblemáticas, com cenas que podem ser reconhecidas por todos os que de alguma forma já tomaram parte na luta. Eventos que, de tão repetidos, parecem ensaiados e encenados, mas ficam mais evidentes quando detalhados e nomeados.

É imperativo para a classe trabalhadora, se organizar para se contrapor ao poder do capital. A organização forma entidades que são fontes de aprendizado, socialização e formação. É no sindicato e no partido que os interesses de classe podem ser identificados, formulados, definidos em um programa de ação. São esses os espaços em que os iguais na luta podem se identificar, e nessas situações que pode emergir o que chamamos de consciência de classe. Permite a percepção de que a tragédia diária não é solitária, não é sua culpa ou falha. Existe algo de comum que é partilhado, emerge a possibilidade de entender que se o problema é coletivo, a solução também deve ser. Na discussão coletiva desses problemas, brotam as possibilidades de como transformar a semelhança em unidade. Surge assim um programa, uma estratégia e um órgão que coordena a ação de todos. Está no Manifesto de 1848 a indicação do papel de formação ideológica da classe, pois o partido põe em discussão a subalternidade e a passividade a que são submetidos os trabalhadores. Partido e sindicatos, organizando-se de forma autônoma, representam o surgimento ameaçador de classes até então ausentes na disputa política. Cumprem o imprescindível papel de elevar a massa, de seu estágio amorfo e infantilizado, à vida política consciente. São as classes dominadas que dependem dessas entidades, pois precisam do esforço organizado prolongado para elaborar uma cultura e uma visão política autônomas. Por isso, também, o recorrente uso da lei e a ordem para impedir que essa organização se concretize.

A possibilidade de emergência desses instrumentos de luta coletiva sempre precisou ser obstruída pela classe dominante, para evitar a ação. Historicamente foram mobilizadas as leis e instituições do Estado burguês, utilizando instrumentos repressivos e transfigurando ideologicamente a repressão como garantia da ordem. Desde que se tornou impossível eliminar completamente a participação politica dos trabalhadores, com os avanços da luta organizada, trata-se de garantir pelo menos sua domesticação e controle. A estratégia passa a ser evitar que a classe trabalhadora se reconheça como tal, e partindo desse reconhecimento, articule seus interesses politicamente. Um objetivo que não está ao alcance, quando existem as organizações onde o trabalhador pode identificar seus interesses de classe e intervir politicamente de forma autônoma. A incorporação política controlada se faz acompanhada de um ataque repressivo e ideológico às suas organizações, para garantir que se mantenha permanentemente em um estágio de massa amorfa e infantilizada. Para que o controle seja garantido, as classes dominadas devem ser mantidas à distância das grandes questões e princípios, incapacitadas de alcançar a abstração de projetos políticos. À emancipação política se associa a neutralização dos sindicatos, pois a dominação só se completa se ao monopólio das armas, se associa o monopólio da produção espiritual. Destituídas de suas fontes de formação, a classe trabalhadora fica sujeita à orientação fornecida por aparelhos ideológicos controlados pelo capital, com destaque para a mídia.

O embate em Harlan County nos anos 1930 foi também a trajetória dos trabalhadores de Chicago, em 1886, que deu origem ao 1° de maio como Dia do Trabalhador; ou de Betim e Osasco em 1968, em plena ditadura civil militar no Brasil. O enredo da musica de Florence Reece é a historia da luta de classes, materializada na batalha que ela vivenciou. O caminho que ela aponta é o único disponível para a classe trabalhadora.