Pandemia capitalista e degradação do trabalho
Nota da Editoria: A Página Nacional do PCB reproduz essa importante matéria publicada no sítio do IHU-Unisinos no dia 1º de maio deste ano, na certeza de que as entrevistas com os renomados pesquisadores abaixo contribuem sobremaneira para a compreensão, na lógica dos interesses da classe trabalhadora, do complexo momento social, econômico e político em que vivemos, em meio ao aprofundamento da crise estrutural do capitalismo, agravada com a pandemia. Em que pese uma ou outra opinião distinta da linha editorial de nossa página, o conjunto da matéria nos traz dados e análises essenciais para que, a partir do entendimento das transformações que se operam no mundo do trabalho e nas relações sociais impostas pelo capitalismo, possamos intervir nessa realidade com o objetivo primordial de combater os terríveis ataques sofridos pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras e construir a contraofensiva na direção do poder popular e do socialismo.
IHU UNISINOS
Por: João Vitor Santos | Edição: Patricia Fachin e Ricardo Machado
O mundo do trabalho vem sofrendo bruscamente inúmeras transformações nos últimos tempos. A automação e as tecnologias de plataforma, que engrossam os avanços da Revolução 4.0, têm tornado os conceitos de trabalho e emprego cada vez mais distantes. Sem emprego com todas as proteções constitucionais, as pessoas têm sido obrigadas a buscar trabalho contentando-se apenas com a renda gerada por ele, seja através da clássica informalidade ou como novos ‘servidores’ do trabalho de plataformas a partir de empresas como Uber, iFood, entre outras. Esse cenário já sombrio é ainda mais grave no tempo atual, em que uma crise em escala mundial eclode a partir da propagação do novo coronavírus. Para pesquisadores ouvidos pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a crise leva à beira do abismo: podemos nos jogar e tentar nos agarrar no que for possível para sobreviver ou, com apoio estatal, saltar para uma nova era, com uma nova forma de vida, consumo, produção e trabalho, visando ao bem comum e ao pleno Estado de bem-estar social.
Para o professor Ricardo Antunes, é preciso ter consciência de que “o capital só pode se ampliar destruindo e é por isso que ele destrói a força humana de trabalho em proporções monumentais, destrói a natureza de modo visceral”. Por isso leva a um esgotamento do atual sistema e, num contexto de crise, pensa um outro desde o esfacelamento da humanidade. “Que trabalho os capitais querem? Um trabalho cada vez mais desprovido de direitos, mais informal, funcionando como um apêndice de uma máquina que domina o mundo”, aponta, na entrevista concedida à IHU On-Line via WhatsApp. Para ele, é preciso não deixar que o capitalismo dê as respostas. “Não podemos permitir que o lucro seja o ponto central; temos que fazer a defesa da vida. Não se trata de economia e vida; não, a economia é destrutiva e é causadora da pandemia. A economia do capital não visa saúde pública, educação pública, previdência pública, alimentação; é o destroçamento. Então, a questão crucial hoje é a luta pela vida”, indica.
O sociólogo Clemente Ganz Lúcio vai na mesma linha e compreende que se “trata de disputar a estratégia de saída que deve conter a perspectiva de superação do modelo vigente”. Mas ressalva: “não se trata de voltar ao mundo do passado recente. Voltar para a ‘normalidade’ é ingressar novamente no mundo que criou esse caos. Trata-se, portanto, de enfrentar o desafio criativo de inventar um novo mundo”. Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, indica que para concretizar isso é importante o “Estado atuar para promover crescente capacidade para o sistema de saúde proteger as vidas; atuar para garantir o abastecimento de alimentos, bens e serviços de primeira necessidade e os insumos para o sistema de saúde”. “A emergência da catástrofe ambiental acompanhará as novas crises sanitárias que virão. Isso exigirá novos protocolos e organização social e econômica. Um projeto de futuro deve colocar na centralidade o desafio social e ambiental”, acrescenta.
José Dari Krein reitera que a situação é crítica e que a recessão global pode ser ainda maior do que se projeta, assolando especialmente países periféricos como o Brasil. Assim, enfatiza que todos os esforços devem ser no sentido de, pelo menos, não aumentarem as desigualdades. “A possibilidade de uma explosão do desemprego reforça as desigualdades existentes no mercado de trabalho, com claro recorte de raça e sexo. As históricas discriminações e exclusões são reforçadas na crise”, alerta, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Para ele, “a travessia desejável da atual tempestade somente é possível por meio da atuação do Estado”, protegendo as pessoas de um capitalismo que se reconfigura diante da crise. “A realidade mostra que o mercado autorregulado é incapaz de responder ao tamanho da crise. Muitos, inclusive o governo brasileiro, acham que podem continuar com a sua agenda neoliberal, mas não há possibilidade de saída sem o Estado”, avalia. E faz um apelo: “não podemos continuar perdendo tantas vidas por falta de condições mínimas de trabalho, como está ocorrendo atualmente”.
Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, publicou recentemente Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil IV: Trabalho Digital, Autogestão e Expropriação da Vida (São Paulo: Boitempo, 2019), Politica Della Caverna: La Controrivoluzione di Bolsonaro (Itália: Castelvecchi, 2019) e O Privilégio da Servidão. O Novo Proletariado de Serviços na Era Digital (São Paulo: Boitempo, 2018).
Clemente Ganz Lúcio é sociólogo, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – Dieese e membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – CDES.
José Dari Krein é graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR, tem mestrado e doutorado em Economia Social e do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, onde atualmente é professor no Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho – Cesit.
Confira as entrevistas.
IHU On-Line – Que mudanças de fundo vislumbra no mundo do trabalho?
Ricardo Antunes – Primeiro é preciso dizer que a pandemia do coronavírus não é um elemento desconectado do sistema de metabolismo antissocial do capital de caráter profundamente destrutivo. Por que é destrutivo? Porque se trata de um sistema metabólico no qual a necessidade de valorização do “valor”, da criação de mais dinheiro, mais lucro e mais apropriação privada da riqueza transforma esse metabolismo, na sua interioridade e processualidade, em algo profundamente expansionista e, no limite, incontrolável. Dito de modo direto, o capital só pode se ampliar destruindo e é por isso que ele destrói a força humana de trabalho em proporções monumentais, destrói a natureza de modo visceral.
Isto tudo se agrava no contexto da pandemia, que não é, portanto, um efeito “natural” sem conexões com o sistema de metabolismo social do capital. Marx já apontava, em O Capital, como o capitalismo tem um traço epidêmico em sua interioridade e processualidade. O coronavírus é o enfeixamento desta tragédia de um sistema que é letal em relação ao trabalho, à natureza, à liberdade substantiva entre os gêneros, as raças, as etnias e tantas outras dimensões que temos tratado nos nossos trabalhos, especialmente no Privilégio da Servidão (Boitempo, 2018), que publiquei recentemente e já saiu uma segunda edição atualizada.
Em uma economia destroçada, num mundo social devastado e no pior cenário político do mundo, afinal não há nenhum país do mundo com um cenário político tão brutalmente achincalhado como o nosso, com essa figura grotesca na presidência da República, o que é possível vislumbrar em relação ao trabalho? Primeiro é preciso dizer uma coisa, tantos autores dos países capitalistas avançados, eurocêntricos em sua maioria, cansaram de dizer, nos anos 1970, 1980 e 1990, que o trabalho tinha perdido relevância e que não tinha mais importância. É uma miríade de autores e tenho tratado criticamente desta bibliografia há muitas décadas. A evidência do equívoco destas teses está limpidamente estampada agora. O trabalho, na medida em que paralisa, o valor não se produz. O desespero do capital e, em particular, do capitalismo global, é que sem trabalho o capital não se valoriza. Mas o capital sabe como enfrentar esta dilemática que lhe é crucial.
Trabalho e capital
Como o faz? Como ele sabe que não pode prescindir do trabalho, porque sem trabalho não há riqueza, ele pode depauperar, dilapidar e destroçar o trabalho, eliminando direitos – é um processo mundial desde 1973, que se agravou a partir de 2008/2009 com a crise estrutural do sistema de metabolismo social do capital, em que são raros os países do mundo onde isso não ocorre e por isso as reformas de [Michel] Temer [no Brasil], [Maurício] Macri [na Argentina] e [Emanuel] Macron [na França], no mesmo período, não são coincidências.
Que trabalho os capitais querem? Um trabalho cada vez mais desprovido de direitos, mais informal, funcionando como um apêndice de uma máquina que domina o mundo. Um dos elementos centrais do capitalismo decorre do fato de que há um processo técnico-informacional-digital que não para de se desenvolver, mas cujo desenvolvimento é estritamente voltado para o sistema de produção de riquezas.
Ou seja, trabalho uberizado, com trabalhadores e trabalhadoras (é preciso sempre pensar a divisão sócio-sexual e racial do trabalho), em que o capital pode se utilizar ilimitadamente deste trabalho. É por isso que eu tenho dito que o capitalismo da era das plataformas, o capitalismo de plataforma tem um claro traço e se assemelha à protoforma do capitalismo. Em pleno século XXI, com algoritmos, inteligência artificial, internet das coisas, big data, indústria 4.0, internet 5G e tudo o mais que temos deste arsenal informacional, há pessoas que têm trabalhado sob critérios típicos da servidão, por isso o “privilégio da servidão”, isto é, os que tiverem sorte serão servos, ou, mais criticamente ainda, cria-se uma massa de trabalhadores e trabalhadoras que padecem das vicissitudes e dos aspectos nefastos da escravidão digital.
IHU On-Line – O que se pode esperar em termos de desemprego e desigualdades? Qual deve ser o papel do Estado nesse contexto?
Ricardo Antunes – O que se pode esperar em termos de desemprego e desigualdade é aprofundamento. Se estamos em uma sociedade do trabalho pautada pela brutalidade das desigualdades, intensa exploração global das forças de trabalho e pela sua espoliação, no período da pandemia essas tendências vão se agravar com enorme profundidade. A Organização Internacional do Trabalho – OIT está prevendo níveis altíssimos de desemprego e eu tenho certeza que serão maiores do que a previsão, porque se trata de uma dinâmica difícil de medir. Afinal, os dados concretos que temos nas primeiras quatro, cinco semanas de coronavírus nos Estados Unidos indicam que mais de 26 milhões de trabalhadores e trabalhadoras entraram com a solicitação de seguro-desemprego. No mais rico império do mundo, explodiu o desemprego.
Estamos vivendo um capitalismo tóxico e pandêmico ou a pandemia do capitalismo. O que se pode esperar deste Estado? A questão é complexa, então vejamos:
1) o Estado não é um ente político neutral, o Estado do nosso tempo é calibrado, controlado, comandado e impulsionado pelos interesses das grandes corporações sob hegemonia do capital financeiro. Não podemos ter ilusão nenhuma do que devemos esperar do Estado;
2) Apesar disso, e por causo disso, toda a pressão tem que ser canalizada contra o Estado para exigir dele recursos aos trabalhadores e trabalhadoras da informalidade, que no Brasil somam 40 milhões, além dos desempregados, que somam 12 milhões no desemprego aberto mais 5 milhões no desalento, sem nenhum recurso para sobreviver.
Pandemia capitalista
Por isso a situação pandêmica é trágica. Ao mesmo tempo que os trabalhadores e trabalhadoras, como todo cidadão com o mínimo de dignidade, deveriam ficar em isolamento social para evitar a letalidade do capitalismo pandêmico, se ficarem em casa estão condenados a morrerem de fome. Então vão trabalhar onde é possível trabalhar. Na medida em que vão ao mercado de trabalho e à aglomeração social, são os candidatos potenciais à contaminação e à morte. É por isso que a pandemia chegou duramente, agora, de modo brutal na periferia onde moram os trabalhadores. Toda a pressão ao Estado é para migrar, transferir para as periferias os recursos que, especialmente, desde o advento do neoliberalismo têm sido usados para preservar o mais destrutivo de todos os sistemas de metabolismo que é o do capital e, mais ainda, o pior de todos, que é o capital financeiro.
IHU On-Line – Quais são as alternativas e propostas de saída para a crise?
Ricardo Antunes – Se deixarmos o capitalismo responder à crise, a resposta do capitalismo é clara: põe a força de trabalho para trabalhar e, se ela morrer, e “daí?”, como disse essa figura grotesca que chegou à presidência do Brasil e colocou o país na condição mais aviltada, mundialmente falando, que se viu em toda a sua história.
Quais são as saídas que nós temos? Se a lógica do sistema do capital der o tom, será a destruição e vamos conhecer o Inferno de Dante.
Temos que considerar um segundo ponto importante: este é um momento crucial em que a humanidade está se perguntando se temos que lutar pelo lucro, pela volta ao trabalho ou pelo enriquecimento de um minúsculo percentual de pessoas – todos sabemos que os seis empresários brasileiros mais ricos ganham o equivalente ao que produzem cem milhões de trabalhadores, o que mostra a absurdidade desta tragédia social. Então, não podemos permitir que o lucro seja o ponto central; temos que fazer a defesa da vida. Não se trata de economia e vida; não, a economia é destrutiva e é causadora da pandemia. A economia do capital não visa saúde pública, educação pública, previdência pública, alimentação; é o destroçamento. Então, a questão crucial hoje é a luta pela vida.
Luta pela vida
O que significa lutar pela vida? Reinventar um modo de vida. A humanidade hoje tem uma oportunidade excepcional, vive um momento excepcional da história, em que ela pode reinventar o modo de vida. Vou dar alguns exemplos que são muito simples. Tem sentido milhões de trabalhadores trabalharem 10, 12, 14, 16 horas por dia, como os trabalhadores uberizados e os dos aplicativos, enquanto centenas de outros milhões de trabalhadores não têm nenhum trabalho e vivem nos bolsões de indigência? Pense, por exemplo, na parcela monumental da classe trabalhadora que compreende os trabalhadores imigrantes do mundo global que vivem perambulando de um canto a outro em busca de trabalho. Então, temos que tratar a questão do trabalho numa dimensão central e trabalhar só no estritamente necessário para a produção de bens socialmente úteis, com poucas horas de trabalho diário para a produção de coisas úteis. Mas isso fere e ataca o sistema de metabolismo social do capital.
É preciso reinventar o trabalho humano e social, o trabalho humano como atividade livre, autodeterminada, fundada no tempo disponível contra o trabalho forçado, animalizado, estranhado, que tipifica a sociedade do capitalismo informacional da era digital.
Meio ambiente
A questão da natureza é outra coisa importante. A destruição nos coloca, como István Mészáros disse anos atrás, lembrando Rosa Luxemburgo, que o futuro imediato nos coloca a questão do socialismo ou barbárie, se tivermos sorte. Esta adição de Mészáros é espetacularmente atual: corremos o risco de não termos nem barbárie porque estamos num patamar mais profundo, que está num degrau inferior e mais abaixo do que a barbárie. A questão da natureza evidencia isso.
Hoje, estamos vendo que as cidades brasileiras que estão em isolamento social reduziram muito o nível de poluição ambiental por dois motivos: os carros pararam de circular feito loucos e as indústrias pararam de produzir. Não é difícil perceber que recuperar uma dimensão da natureza é vital e isso significa que é preciso parar o consumo destrutivo. É importante entender que essa noção que vem de Marx, com a qual trabalhamos, do sistema de metabolismo social do capital, coloca uma questão vital: o sistema de metabolismo social do capital destrói o trabalho, destrói a humanidade e destrói a natureza. É preciso reinventar um outro sistema de metabolismo social contrário aos imperativos destrutivos do sistema de capital. Isso vale para quando pensamos na questão da liberdade substantiva, da emancipação efetiva entre os gêneros. Isso é vital quando se pensa na luta contra o racismo, contra a xenofobia, contra a homofobia, contra o sexismo, contra a cultura visceral e indigente da ignorância.
Temos hoje o mundo dos ignorantes; é como se cultuar a ignorância fosse o top. Isso mostra a indigência do mundo em que estamos. Só sairemos disso através das lutas das periferias, das comunidades indígenas, da classe trabalhadora masculina, feminina, branca, negra, indígena, da juventude, do movimento dos negros, da revolução feminista – há uma revolução feminista em curso e é vital que ela adira, como muitos dos seus setores vêm fazendo, a uma luta contra a opressão masculina, contra a opressão de gênero e contra as formas de opressão e dominação do capital. Estamos num momento em que o imperativo é reinventar outro modo de vida e a questão vital do nosso tempo é: temos que lutar pela vida e não pelo lucro.
IHU On-Line – Que mudanças de fundo vislumbra no mundo do trabalho?
Clemente Ganz Lúcio – O mundo do trabalho já passava, mesmo antes da crise sanitária, por um processo disruptivo, ou seja, um novo mundo do trabalho irrompia na base do sistema produtivo. Trata-se de uma transformação profunda e radical promovida pelos avanços tecnológicos em termos de energia, transporte e comunicação, com a expansão para todos os setores econômicos da inteligência artificial, com os novos materiais, entre tantos outros elementos e fatores que irrompem no sistema produtivo e em um ambiente de globalização comandada hegemonicamente pelos interesses financeiros. Postos de trabalho são fechados, ocupações desmobilizadas e profissões destruídas.
A crise sanitária é inédita na velocidade de difusão da contaminação, da agressividade sobre a saúde, os impactos sobre o sistema de saúde levam-no ao colapso, com mortes que tendem a chegar a milhões. O isolamento social é a única alternativa de combate à epidemia, mas que leva ao travamento de todo o sistema produtivo em todos os países, de maneira global e no mesmo tempo. Desemprego em massa e destruição de empresas. Recessão em magnitude incalculável neste momento (projeções atuais de -6% PIB no Brasil) com risco de descambar para a depressão econômica no país e no mundo.
A tragédia econômica pode conduzir para um colapso social com gravíssimos desdobramentos sobre a coesão social.
Como prospectar o futuro próximo no qual a expansão da crise pode se desdobrar para uma situação de caos econômico e social com reflexos complexos do ponto de vista político? É conduzir a nau do mundo em mar revoltoso e com um nevoeiro absoluto.
Um mundo novo é possível
Sim, os riscos de saídas autoritárias existem e devemos articular um amplo leque de resistência. As saídas devem ser mobilizadas para a perspectiva de que “um mundo novo é possível”. Trata-se de disputar a estratégia de saída que deve conter a perspectiva de superação do modelo vigente. Não se trata de voltar ao mundo do passado recente. Voltar para a “normalidade” é ingressar novamente no mundo que criou esse caos. Trata-se, portanto, de enfrentar o desafio criativo de inventar um novo mundo. Mas isso é um campo de disputa dura.
Há um alto risco de um mundo ainda mais desigual, com mais pobreza e miséria, com regimes autoritários de diferentes matizes. Os impactos para o mundo do trabalho serão dramáticos. As condições de vida e o meio ambiente serão ainda mais agredidos se vencer a volta ao passado.
IHU On-Line – O que se pode esperar em termos de desemprego e desigualdades? Qual deve ser o papel do Estado nesse contexto?
Clemente Ganz Lúcio – Podemos ter no Brasil mais de 20 milhões de desempregados, mais 35 milhões de subocupados, postos de trabalho flexíveis e precários se expandindo no mundo formal. Essa destruição agravará as desigualdades com pobreza e miséria em alta.
Cabe ao Estado proteger as empresas e organizações do sistema produtivo e os empregos. Para isso, é fundamental sustentar a renda do trabalho por meio do aporte do Tesouro para pagar os salários e o abono emergencial para garantir renda dos trabalhadores informais, sustentando a demanda econômica. Inúmeras outras medidas devem ser mobilizadas que poderão custar o equivalente a mais de 20% do PIB. Exige-se uma operação complexa de economia política.
De imediato, é fundamental o Estado atuar para promover crescente capacidade para o sistema de saúde proteger as vidas; atuar para garantir o abastecimento de alimentos, bens e serviços de primeira necessidade e os insumos para o sistema de saúde. O Estado deve mobilizar e organizar a capacidade da sociedade para estruturar formas de distanciamento social que garantam a saúde daqueles que gradualmente voltarão às atividades dos diferentes setores, e de imediato, de todos os que estão nas frentes de saúde e de serviços essenciais. O Estado deve, ainda, produzir um plano de retomada da atividade econômica como parte de um projeto de desenvolvimento econômico e social.
Mas tudo isso com esse governo federal? Estamos em uma situação muito crítica.
IHU On-Line – Quais são as alternativas e propostas de saída para a crise?
Clemente Ganz Lúcio – Apesar das gravíssimas e desafiadoras adversidades, a vida continuará e será sobre essas condições objetivas que se deve atuar no campo político para se criarem as condições de resistência e avanço.
A emergência da catástrofe ambiental acompanhará as novas crises sanitárias que virão. Isso exigirá novos protocolos e organização social e econômica. Um projeto de futuro deve colocar na centralidade o desafio social e ambiental, como partes inseparáveis, e imaginar criativamente um novo modelo de existência coletiva e de produção econômica cooperada.
Contra a meritocracia e a competição, a solidariedade e a cooperação. Esse novo projeto de desenvolvimento social, econômico, político e ambiental deve visar criar ocupações para todos, com jornada de trabalho reduzida para que todos trabalhem, com renda garantida e ampla proteção social por meio de políticas de educação, saúde, moradia, transporte, segurança, entre outras, universais.
O trabalho deve voltar a ter centralidade no projeto de desenvolvimento. O incremento da produtividade deve gerar ganhos sociais coletivos para produzir o bem-estar de todos e um bom modo de coletivamente viver, com as virtuosas diferenças que nos constituem como ser humano em uma sociedade intencionalmente igualitária.
IHU On-Line – Que mudanças de fundo vislumbra no mundo do trabalho?
José Dari Krein – O cenário mais provável no curto prazo é um grande avanço na desestruturação do mercado de trabalho com a explosão do desemprego aberto, dada pela perspectiva de que estamos começando um período de queda muito acentuada da economia, inclusive com muitos indicando que estaremos entrando em uma depressão. O problema é potencializado pelas políticas hegemônicas de caráter neoliberal, a forma de inserção na globalização financeira em curso, particularmente como o Brasil respondeu à crise de 2015/2016, adotando uma agenda fiscalista e de redução de direitos e proteção social, como pode ser exemplificado na reforma trabalhista.
A situação se complica ainda mais, pois estão em curso expressivas inovações tecnológicas, que redesenham o mundo do trabalho e tendem a, na maioria dos setores, serem poupadoras de trabalho. As fortes inovações, em um contexto de hegemonia neoliberal, foram acompanhadas de políticas públicas de que os indivíduos são responsáveis pela sua inserção no mercado de trabalho (empregabilidade e empreendedorismo), combinadas com a lógica de redução dos serviços sociais do Estado. Processo, por um lado, que fez redistribuir desigualmente os ganhos de produtividade para o capital em detrimento do Estado e dos trabalhadores.
Por outro lado, na perspectiva de submeter todos à lógica da concorrência, deixou os trabalhadores em condições mais vulneráveis com as retiradas de direitos e proteções sociais. Ou seja, os ganhos de produtividade nos setores mais dinâmicos não foram acompanhados, como aconteceu após a Segunda Revolução Industrial, por uma redução da jornada de trabalho e nem pela ampliação expressiva de serviços públicos (grande gerador de emprego). Ademais, a abertura fez com que muitas atividades que eram produzidas internamente passassem a ser realizadas fora do país, fazendo com que a indústria perdesse participação progressiva no PIB e no emprego.
Assim, gera-se uma situação nova de reconfiguração da classe trabalhadora, com a alocação no setor de serviços e criação de situação de crescente polarização das ocupações e renda, em uma concorrência desenfreada de todos contra todos para ocupar as insuficientes ocupações existentes. A maioria teve que se inserir em atividades mais precárias, de baixos salários, pois dependem da força de trabalho para sobreviver, o que reforçou que o trabalho é simplesmente um meio para adquirir renda. Outra importante parte não conseguiu se inserir no emprego formal e teve que encontrar estratégias de sobrevivência na informalidade e por conta própria, buscando oportunidades de auferir renda, oferecendo serviços e produtos. Assim há o fenômeno da precarização estrutural do trabalho e da viração.
Agravamento de um quadro
É verdade que não são fenômenos novos, especialmente no Brasil, que nunca chegou a estruturar o mercado de trabalho. A novidade é que a viração, processo de adaptação para sobreviver, não é mais um fenômeno restrito aos setores que estão na base da pirâmide social, pois atinge também segmentos médios da sociedade brasileira. Por exemplo, muitos de nós conhecemos profissionais que tiveram que inventar algum trabalho para sobreviver porque não conseguiram se reinserir no mercado de trabalho – um engenheiro qualificado que vira motorista de Uber, um cientista social que abre um “empreendimento”. Pós-crise de 2015/2016 houve um aumento forte do número de cozinheiros(as), confeiteiros(as), motoristas, vendedores(as) de todo tipo etc.
Esse processo de adaptação também está relacionado com as tecnologias disponíveis, o padrão de consumo, a desigualdade social e com o modo de vida prevalecente de mercantilizar todas as esferas da vida.
Polarizações das ocupações e rendas
É o fenômeno da polarização das ocupações e renda, em que as diferenças de rendimentos e tipo de ocupação se acentuam. É a “mcdonalização” dos empregos x empregos qualificados e socialmente reconhecidos em que o rendimento é muito acentuado. Dois exemplos. Um executivo de uma empresa ganhava 30 vezes mais do que um trabalhador no chão de fábrica no final da década de 1960. No final da primeira década dos anos 2000, passou a ganhar 296 vezes mais. Agora outro exemplo vinculado bem atual. O salário médio do médico, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNADC, é dez vezes maior do que do profissional de nível médio da saúde. Não que o médico ganhe muito, mas o profissional de nível médio é que ganha muito pouco, pois a maioria dos ocupados está em condição muito precária.
Também há uma progressiva concentração nas atividades de serviços. O grande setor cresceu 11% em tamanho entre 2012 e 2019, segundo a PNADC, e representa 78% do total dos ocupados. No mesmo período a ocupação agrícola caiu 17% e a indústria, 7%. O setor de serviços é marcado por uma profunda heterogeneidade e muito mais segmentado. No geral, muitas ocupações de serviços apresentam relação com a reorganização na forma de produção de bens e serviços, terceirização, concentração de renda (pessoais, tais como o peso dos serviços domésticos na nossa estrutura ocupacional), mudanças de hábitos/lazer, mudança do perfil da população, demandas de novos padrões de consumo, estratégias de sobrevivência etc. É parte também de um processo de mercantilização de todas as esferas da vida, mas também do fenômeno da viração. O importante é que grande parte dos serviços também significou a ampliação de ocupações precárias. Por exemplo, cresceu muito fortemente nos últimos tempos os serviços de terceirização (1/3 do total dos empregos formais um ano após a reforma trabalhista entrar em vigor).
O impacto da tecnologia
É preciso ainda afirmar que a tendência é uma aceleração da introdução de inovações tecnológicas (automação, inteligência artificial, internet das coisas), em geral poupadoras de força de trabalho, especialmente em setores mais dinâmicos da economia nos três setores econômicos (agricultura, indústria e diversos serviços). É verdade que se criam novas ocupações, mas em número menor do que é necessário para proporcionar trabalhos úteis para os que precisam trabalhar. As inovações vão reconfigurando a forma de realizar o trabalho em muitos segmentos, inclusive redefinindo as funções e as ocupações. O processo deve se intensificar.
Por um lado, acho que há uma tendência de deslocalização da produção de bens para as regiões mais próximas dos consumidores, com uma crescente desglobalização, que deve se acelerar com a atual pandemia. Essa opção tende a constituir plantas de produção mais enxutas e utilizando maior tecnologia na busca de reduzir os custos de produção. Por outro lado, muitas tecnologias disponíveis tenderão a ser mais utilizadas após a experiência do isolamento social, do home office, da compra por internet etc.
Também é verdade que algumas ocupações ganharam visibilidade na crise, especialmente aquelas consideradas essenciais para preservação da vida e a necessidade de um olhar mais atento aos problemas ambientais, que podem ser geradores de empregos.
Ou seja, dentro dos parâmetros políticos atuais, a situação do trabalho é muito preocupante no futuro próximo, pois não haverá ocupação para todas as pessoas. É um imenso desafio a ser enfrentado por aqueles que pensam na necessidade de ter uma sociedade pelo menos civilizada.
IHU On-Line – O que se pode esperar em termos de desemprego e desigualdades? Qual deve ser o papel do Estado nesse contexto?
José Dari Krein – Caso prevaleça a orientação atual de política econômica, a tendência é em poucos meses ocorrer uma explosão do desemprego, especialmente do desemprego aberto, com o fechamento de muitas empresas, sobretudo pequenas e médias, que irá atingir de forma diferenciada os diversos setores de atividade. Apesar das medidas adotadas (Medida Provisória 927 e 936), a queda da massa de rendimentos será enorme, mesmo que os empregos sejam mantidos temporariamente.
A perda começa a se evidenciar nas atuais políticas de redução de salário e jornada, de suspensão do contrato, de corte brutal da renda dos informais e por conta própria. Estudos dos colegas do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho – Cesit, Pietro Borsari e Marcelo Manzano, projetam uma queda de 8,9 bilhões ao mês caso as medidas sejam bem-sucedidas. No entanto, a previsão é uma queda substantiva do nível de atividade econômica com consequência séria nas empresas e negócios e, consequentemente, de despedidas. Assim como levará a um agravamento financeiro dos estados e municípios com a queda da arrecadação, que terá um efeito cascata de inibição do investimento e, consequentemente, de despedidas.
Ou seja, a perspectiva é de uma brutal recessão ou até depressão da economia, especialmente se o governo continuar com a tese de acentuar uma política baseada na austeridade fiscal, que implica reduzir o gasto público. O governo anunciou que não irá renovar as ajudas emergenciais adotadas em abril: R$ 600,00 por três meses para os informais e por conta própria, financiamento da suspensão dos contratos por dois meses e da redução de jornada e salários por três meses. A crise atual pode colapsar a economia nacional, inclusive desestruturando elos de produção e prestação de serviços, combinado com entraves nas engrenagens da economia internacional.
Na crise, mais desigualdade
A possibilidade de uma explosão do desemprego reforça as desigualdades existentes no mercado de trabalho, com claro recorte de raça e sexo. As históricas discriminações e exclusões são reforçadas na crise. A desigualdade dos rendimentos do trabalho voltou a crescer nos últimos anos. O índice de Gini entre os com renda positiva (exclui os sem rendimentos e os desempregados) subiu entre 2017 e 2019.
Um indicador para mostrar a desestruturação do nosso mercado de trabalho é que 450 milhões de pessoas foram elegíveis para receber o auxílio emergencial de R$ 600,00, sendo que estão excluídos os de maior renda, os contratados disfarçados como pessoa jurídica (PJs). É um número impressionante que corresponde a mais de metade do total dos ocupados na PNADC, em final de 2019.
Função do Estado
A ação primeira do Estado é garantir a renda para as famílias e, consequentemente o emprego. Assume a função de financiar a renda das famílias e ao mesmo tempo assegura que não pode ocorrer demissão. Na contramão de muitos outros países, o governo brasileiro ao adotar as medidas não exige contrapartida de manutenção do emprego das empresas beneficiadas.
A travessia desejável da atual tempestade somente é possível por meio da atuação do Estado. A realidade mostra que o mercado autorregulado é incapaz de responder ao tamanho da crise. Muitos, inclusive o governo brasileiro, acham que podem continuar com a sua agenda neoliberal, mas não há possibilidade de saída sem o Estado.
O desejável é que o Estado garanta a renda das famílias no momento do isolamento social, que irá contribuir para preservar vidas – o que é fundamental – e também facilitar a recuperação econômica pós-pandemia. Mas é preciso ir além, o Estado tem a função de garantir as condições de funcionamento da economia na perspectiva de assegurar a segurança alimentar, uma reconversão industrial para suprir a falta de equipamentos hospitalares, a ampliação das estruturas de atendimento das pessoas e os problemas de logística e infraestrutura, entre outros, em um momento excepcional. Inclusive muitas atividades, especialmente as essenciais para preservação da vida, precisam ser desmercantilizadas na perspectiva de garantir um acesso universal e geral para o conjunto da população. Ou seja, como está no documento do GT – mundos do Trabalho: Reformas, do CESIT, “Emprego, Trabalho e Renda para garantir o direito à Vida”, o “momento exige uma profunda transformação do papel do Estado. Para isso, sua atuação precisa voltar-se para a crescente desmercantilização das relações econômicas, ampliando seu papel na coordenação e no planejamento da produção e distribuição de bens e serviços, seja para enfrentar as urgências desse momento de crise, seja para evitar, no pós-crise, que a sociedade se limite a atender exclusivamente as demandas dos negócios particulares. Além disso, para dar conta dos problemas recorrentes da ‘parada súbita’ dos mercados, é inescapável a tarefa de injetar liquidez na economia, com direcionamento do crédito e crédito subsidiado, a fim de garantir a rearticulação das relações entre os agentes econômicos”.
Condições dignas de trabalho
Também é importante destacar que é papel do Estado garantir que todos os trabalhadores precisam ter asseguradas condições dignas de trabalho, os seus direitos e a proteção social. Inclusive muitos que estão em atividades essenciais trabalham na informalidade e sem direitos. Por exemplo, os entregadores por aplicativo com o delivery, trabalham para enriquecer proprietários de plataformas que lhes sonegam o direito de ter carteira assinada. A Remir (Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista) fez uma nota pública chamando atenção para o absurdo desta situação de não reconhecimento do vínculo de emprego e consequentemente de proteger esses trabalhadores.
Uma crise politica e um governo que descoordena as ações trazem problemas adicionais para enfrentamento da crise e manejar o barco da travessia e pós crise.
IHU On-line – Quais são as alternativas e propostas de saída para a crise?
José Dari Krein – A primeira questão de curto prazo é garantir renda para as famílias, trabalho, os direitos trabalhistas e a proteção social e assegurar condições de trabalho para todos que estão inseridos em atividades essenciais, permitindo a efetivação do isolamento – que é a principal recomendação científica para enfrentar a atual pandemia – e a continuidade da subsistência e dos cuidados da população.
A renda é fundamental tanto para os formais quanto para os informais; assim, seria importante tornar a renda emergencial em permanente na perspectiva de assegurar uma condição mínima de acesso a todos e todas de condições sobrevivência. Mas precisa vir acompanhada de outras iniciativas como veremos abaixo.
Valorizar os profissionais e assegurar condições de trabalho aos que estão na linha de frente, em atividades essenciais, é fundamental. Não podemos continuar perdendo tantas vidas por falta de condições mínimas de trabalho, como está ocorrendo atualmente. Por isso, é fundamental assegurar uma jornada compatível com a atividade (no caso da saúde a Organização Mundial da Saúde – OMS recomenda que seja de 6 horas diárias), intervalos de descanso, meio ambiente de trabalho salubre e não estressante, equipamentos de proteção, salários condizentes, direitos, alimentação e logística para o trabalho.
A crise pode nos levar a repensar o nosso padrão de consumo e de vida social, o que implica também redefinir socialmente que atividades são importantes de serem desenvolvidas para o bem-estar geral da sociedade. Neste sentido, há a necessidade de redefinição das atividades úteis e uma redistribuição delas entre todas as pessoas, pois a tendência não é ter emprego para todos, o que levará necessariamente a pensar o nosso padrão de desenvolvimento, que inclua a dimensão da sustentabilidade ambiental e que assegure uma condição de vida digna para o conjunto da sociedade.