Do recuo ao impulso

imagemChittaprosad, 1951. “Nós prevaleceremos”

Por: Marcelo Bamonte

Os nossos fluxos temporais pouco fazem sentido. Se por um lado o encadeamento de definição de tempo nos situa dentro da realidade concreta, por outro, oculta a face de que a mudança de um algarismo pouco representa uma modificação da estrutura social. O ano que se inicia, com o baile dos ponteiros, deve nos fazer refletir que o período que se esvai nos forneceu lições e derrotas, apesar das pequenas centelhas de esperança — e talvez seja nelas que devamos nos agarrar.

A maior crise sanitária de nosso século provou a plena incompetência do modelo liberal de gerir a vida em sociedade. Claro que este já se encontrava em processo de autodestruição, sempre regado de uma dialética de retroalimentação entre o fortalecimento e fraqueza, mas suas contradições foram expostas como nunca. Países considerados modelos da democracia moderna, termo usado para disfarçar a ditadura de classe, mostraram-nos que a própria condição para sua existência se pauta meramente no viés econômico, priorizando a expansão do grande capital, diluindo suas formas repressivas para manutenção da hegemonia cultural, geopolítica e, com isso, conseguem fortalecer as bases de suas próprias estruturas de poder em cima das costas do povo.

A elevação do termo democracia ao campo do sentir, fugindo de sua função de organização política, promoveu a reabilitação do fenômeno liberal como o motor da história, mostrou a sua ascensão prática, como bem apontado por Losurdo, que nada mais é do que a hipocrisia e capilaridade de opressão expandida e personalizada em uma falsa liberdade dos comuns, que não passa de uma democracia limitada, restrita àqueles que fomentam a desigualdade e apenas explicitam a real engrenagem que move o tecido social global: a luta de classes.

O tempo não apaga falhas, nos escancarando o concreto. O precipício de onde é empurrado nosso povo — sempre mais curto para a população preta, periférica e LGBTQ+ — continuou nos compelindo em direção à sina imposta pelo sistema do capital. Com o quimérico planejamento de um governo que jamais se propôs a voltar seus olhares à população, a classe trabalhadora foi forçada a uma escolha: morrer de fome ou morrer do vírus. De morte matada em morte morrida, a escolha culminava no perecimento. O auxílio emergencial, única fagulha que manteve a pequena parcela de existência da classe, foi uma mera migalha de dignidade fornecida, através de luta, ao povo. A roda econômica continuou girando, submetendo seus chicotes às costas da classe trabalhadora que continuou presa, se expondo em ambientes de lotação, se submetendo à informalidade trabalhista e cada vez mais se dissolvendo na tão difícil luta pela sobrevivência dentro do sistema capitalista de produção.

De mudança em mudança, a gestão nos provou que nada mais somos que parafusos da engrenagem. Substituíveis, de fácil manutenção. Como despertar o sentimento de luta se, com a falta de comida no prato, é duvidável até se estaremos vivos no dia seguinte? Muitas vezes não estamos, mas seguimos. O foco, ao invés de preservar a vida, voltou-se à preservação da exploração dos poucos acima dos muitos. O resultado, esperado: uma funesta coleção de caixões, cinzas e lástimas daqueles que perderam tudo. O hino nacional transformou-se no clarão das salas superlotadas de unidades de tratamento intensivo, com a bandeira verde e amarela, cansada e insalubre, sendo meramente o fragmento têxtil que abraçou o corpo frio do próprio país, mais de duzentas mil vezes, a contar as subnotificações.

A tarefa principal a se pensar no 2021 que se aproxima é o da reconstrução da luta. O processo, dificultado bruscamente com as condições sanitárias impostas, deve ser superado para a constituição de unidade de classe, no estabelecimento do valor de luta comum de toda a classe trabalhadora. Isso, claro, exige foco, organização e principalmente coordenação dos diversos movimentos sociais, partidos e da participação ativa da classe trabalhadora em si. Fugindo de ilusões, alusões à espontaneidade e movimentismo desmedido, observar a realidade concreta se mostra mais do que necessário para que, dentro de nossas contradições de classe, possamos transformar a teoria em práxis efetiva, alterando o campo do real, não das aparências. A labuta é exaustiva, exige tempo de coordenação, estudo, estabelecimento claro de uma estratégia que contemple a questão da correlação de classes, forças sociais e meios de organização, mas deve ser feita para nossa sobrevivência.

Repito, tivemos algumas poucas vitórias ao longo do ano. A citar o saudoso movimento feminista argentino, a provisória reversão do golpe na Bolívia e a crescente dos movimentos de unificação da esquerda dentro de nosso próprio país, devemos resgatar estes acontecimentos para pensarmos no que deve ser o nosso único foco: o Brasil. A tarefa urgente reside em nossas terras, bairros, sindicatos, empregos, corpos estudantis e braços de luta. Os esforços devem focar na manutenção da pequena parcela de direitos que ainda temos, assim como mirar a expansão dos mesmos. Devemos lutar por uma educação pública de qualidade, por um sistema de saúde não sucateado, pelo direito à moradia, lazer, cultura e saneamento básico. Pela popularização do que de fato é forjado pelo povo, mas que não tem o acesso a isso. Pelo fim do genocídio do povo preto, pobre, indígena e LGBTQ+. As lutas são incontáveis. Se toda relação de hegemonia é pedagógica, como dizia Gramsci, o balanço para coordenação da retomada da luta é a fagulha do senso de urgência que deve tilintar em nossa práxis, obviamente com as devidas tomadas de decisão táticas e estratégicas dentro do escopo político da realidade material.

Não basta sermos revolucionários e partidários do socialismo ou comunistas em geral. É necessário saber encontrar em cada momento particular o elo igualmente particular da cadeia a que temos de nos agarrar com todas as forças para reter toda a cadeia em si e preparar solidamente a passagem para o elo seguinte. Relembrando Lenin, a ordem dos elos, a sua forma, o seu encadeamento, a diferença entre uns e outros na cadeia histórica dos acontecimentos não são tão simples nem tão rudimentares como uma cadeia vulgar feita por um ferreiro. A identificação destes fatores se dá através do processo dinâmico da correlação de forças e do desenvolvimento da luta de classes, que jamais devemos excluir de nossa equação.

Para a burguesia, é lucrativo e necessário encobrir do povo o caráter burguês da democracia burguesa, ocultando que nossa única maneira de sobrevivência é através da ditadura do proletariado. Organizemo-nos, lutemos e sigamos. Por um Brasil socialista, onde o conceito de nação seja o mirante do trabalhador, do popular e do nacional. Que a classe trabalhadora sobreviva e, alimentada do ódio de classe, não perca a ternura necessária para o refinamento de seu combate. Se a classe trabalhadora como tal, como classe consciente, não pode existir no regime normal do capital, se sua irrupção colapsa o sistema, lutemos para mostrar que eles devem nos temer.

“O desafio da modernidade é viver sem ilusões e sem desiludir-se” — Antonio Gramsci