A produção social de doenças e crises
De 2002 a 2010/2011, os preços internacionais das commodities atingiram altas históricas.
(Thomas Bauer)
Por Cássio Arruda Boechat [*]
Até aqui, o agronegócio não parou durante a pandemia de coronavírus e se vangloria de ser responsável por ter evitado uma crise econômica que chegou a ser anunciada como a pior da história, com prognósticos que apontavam para uma queda superior a 8% do PIB no Brasil. Com isso, reforça-se a ideologia vitoriosa do assim chamado “agro”, que se coloca como a cura para os males nacionais. É bom lembrar, porém, do phármakon, de onde provém a palavra “farmácia”, que pode curar ou intoxicar, sendo ao mesmo tempo remédio e veneno. Ou seja, procuramos uma reflexão de até que ponto a suposta solução é parte da causa dos problemas.
Visitando recentemente o interior paulista, em meio a uma seca terrível, observei alguns poucos trabalhadores aplicando defensivos num canavial recém-cortado por monstruosas máquinas em terras arrendadas por uma grande usina francesa. O cenário era inóspito, desabitado e soando desértico. Queimadas despontavam no horizonte. Os homens, irreconhecíveis, caminhavam mascarados sob o sol ardente. Alguns com tubos de PVC na mão jogavam alguma coisa aqui e ali pelo interior dos tubos até o chão; outros, com um recipiente atado às costas, aplicavam um líquido periodicamente. Faziam a chamada “catação”: matavam mato e formigas, respectivamente, aplicando produtos químicos na entrada dos formigueiros e nas touceiras de capim–colonião (que tem o hilário nome científico Panicum maximum ). “Inimigos” persistentes da produtividade da lavoura.
A cena poderia representar a solução para a angústia antediluviana do lavrador, expressa pelo viajante Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), que teria afirmado – antes, claro, de ser lembrado por Macunaíma – que “ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”. A bem da verdade, como os próprios mascarados me contaram, não se tratava de acabar com as formigas ou com as ervas daninhas, mas de controlá-las. Independentemente de quanto veneno é posto, elas voltam todo ano. Ingênua pergunta: “Mas e o veneno, para onde vai?”. Silêncio… A solução ali dada, desse modo, não parece ser suficiente ou definitiva para acabar com “nossos” problemas, cujas raízes estão muito além das saúvas e podem estar também nas formas de enfrentarmos as doenças e as crises.
A memória e os estudos nos permitem voltar no tempo para comparar aquela cena da profilaxia recente de formigas e mato com algumas outras profilaxias, inclusive de trabalhadores, de um passado não muito distante, e avaliar a produção social de doenças e de crises no agronegócio.
Próximo de onde se encontra aquele canavial, vi quando criança, assombrado, uma cena semelhante àquela da chegada dos federais norte-americanos (seriam da Nasa?) para cercar a casa suburbana dos meninos que acolheram o E.T. no filme de Spielberg. Completamente cobertos, técnicos da Fundação de Defesa da Citricultura (Fundecitrus) vinham isolar um pomar e erradicar laranjeiras num enorme raio para evitar a propagação do cancro cítrico, causado pela bactéria Xanthomonas citri.
Naquela época, o noroeste de São Paulo tinha mais laranjais do que canaviais. A paisagem era dominada por laranjeiras enfileiradas até onde a vista alcançava. Uma medida tão dura como aquela da erradicação chamava a atenção para a ocorrência de epidemias que afetavam a “população” de árvores. Depois de arrancadas as laranjeiras infectadas e suas vizinhas, a pilha de troncos ainda carregados de laranjas era incinerada em altas fogueiras. A área isolada ficava em quarentena, e os técnicos vestidos de branco da cabeça aos pés rodavam todas as propriedades produtoras em buscas de novos casos. Ao menor indício de câncer, estava dada a sentença.
Esse controle epidemiológico era mais aceito nos anos 1980 do que nos dias atuais, em que medidas de quarentena são questionadas, talvez porque ainda estivesse fresca na memória de muitos citricultores a lembrança da praga da tristeza, que dizimou rapidamente os pomares paulistas nos anos 1940. Essa epidemia só chegou a ser “superada” graças aos estudos de pesquisadores que descobriram que o enxerto das laranjeiras em raízes de limão–cravo as tornava resistentes ao vírus CTV ( Citrus tristeza virus ). Graças à “vacina” pelas práticas de enxertia, descoberta pela pesquisa pública, os negócios puderam ser retomados e a citricultura foi restabelecida em “moldes industriais”.
Não parece ter sido cogitado efetivamente que as causas da rápida proliferação e da alta letalidade da tristeza talvez estivessem na forma como a monocultura e a busca pela produtividade agrícola haviam aglomerado espécimes de umas poucas variedades de citros em vastos pomares quase contínuos. Até aproximadamente os anos 1930, a produção de citros era completamente descentralizada e se dava em pequenos pomares dispersos. O sistema de cultivo havia mudado radicalmente desde então, incorporando uma busca constante pelo aumento da produtividade dos pomares, e com ele vieram as primeiras epidemias fitossanitárias. Como de praxe em nossa sociedade, a busca pela solução de um problema é procurada num produto mágico e raramente é apontada uma crítica à maneira como as mercadorias são produzidas. Reitera-se, na cabeça de médicos, agrônomos e de quem quer que seja, o fetichismo da forma social, pautada por relações entre pessoas sempre mediadas por coisas.
Assim, uma enxurrada de novas pestes se acumularia posteriormente nos pomares, que, desde os anos 1960, já eram regularmente “tratados” com pesticidas químicos, apontados corriqueiramente como os “remédios” do cotidiano da agricultura. Desse modo, a citricultura moderna paulista convive com epidemias devastadoras desde sua instalação. As “vacinas” científicas solucionam temporariamente o problema, que retorna rápida e periodicamente, na forma de crises sanitárias agravadas, com variedades resistentes de ácaros, insetos (moscas e cigarrinhas sugadoras), vírus (CVC) e bactérias (como a causadora do greening), desafiando as soluções de agrônomos e vendedores de agrotóxicos, ao mesmo tempo que justificam a própria existência desses profissionais especializados. No entanto, a gestão disso implica custos crescentes que nem sempre podem ser externalizados da contabilidade das firmas, como o são no caso da pesquisa pública.
A crise da citricultura tem outra dimensão quando observamos a eliminação recente de mais de 20 mil citricultores (dados da Associtrus), em geral pequenos sitiantes que trabalhavam com suas famílias, excluídos do setor nos últimos vinte anos por não darem conta dos custos crescentes de manutenção dos pomares diante dos preços decadentes da laranja paga pelas indústrias de suco, altamente concentradas nas mãos de dois grupos econômicos.
A eliminação acelerada dos citricultores mais vulneráveis também teve uma conotação higienista, na alegação de que eram aqueles agricultores familiares que cuidavam menos de seus pomares e, assim, aceleravam a proliferação das pragas. Ao lado da imputação de falta de controle sanitário, a citricultura tentava lidar com a superprodução não exatamente de pragas, mas também de laranjas e do próprio suco de laranja. A disputa com outras mercadorias industrializadas (refrescos, refrigerantes etc.) e a crescente produtividade dos pomares adensados anunciavam certa saturação do mercado.
Desse modo, foram os pequenos e médios agricultores os escolhidos para ser tratados como sendo a própria “praga” e efetivamente “erradicados”, com contratos que pagavam menos que os custos de produção mais básicos e com a imputação de novos custos, como os da colheita, antes a cargo das indústrias. Contraditoriamente, eram eles os que entregavam laranjas a preços mais baixos às agroindústrias e ao mercado em geral, porque se valiam do trabalho familiar e não precisavam remunerar alguns “fatores de produção”. Com sua eliminação, as pragas em si não foram eliminadas – é, inclusive, questionável que a situação esteja mais controlada –, mas uma importante fonte de acumulação das próprias indústrias deixou de existir.
O exemplo mostra como os preconceitos e as soluções fetichistas dos gestores do agronegócio reproduzem às suas costas as doenças e também as crises. Como consequência, tornaram-se frequentes novas fogueiras de laranjeiras, empilhadas nos pomares por todo o noroeste paulista. Dessa vez, a “epidemia” não era de cancro, como em minha lembrança de infância, mas de laranjas e citricultores mesmo. A própria fruta, que supostamente traz saúde a quem a consome, se tornara uma praga para quem a produzia. A erradicação partia agora não mais da Fundecitrus, e sim dos próprios produtores, cansados dos prejuízos – quantos não terão adoecido com a situação? –, e o arrendamento das terras às usinas de cana surgia como “remédio” para uma sobrevida das famílias, ao longo dos anos 2000. O carvão de laranjeira ainda é vendido em supermercados para fazer churrasco.
A utilização de tratores, arados, adubos e pesticidas químicos, expressão da indústria nacional que se desdobrava sobre o campo, altamente fomentada pelo crédito rural subsidiado pelo Estado, foi uma grande novidade dos anos 1960/1970. São Paulo assumiu aí a dianteira na adoção da chamada Revolução Verde. Embora ainda não se autoproclamasse assim, era o surgimento do “agro” com as feições que hoje são positivadas em propagandas televisivas.
O trabalhador de turma, assalariado precariamente e tornado boia-fria irreconhecível perante os próprios patrões, também foi novidade na época. O adoecimento do bóia-fria se dava corriqueiramente na forma de lesões pelo trabalho repetitivo, embora também fossem (e ainda sejam) comuns as intoxicações por agrotóxicos. Porém, o não pertencimento à comunidade local, a pressão por trazer dinheiro de volta à família e cidade de origem e o ritmo ditado pelas máquinas agrícolas ou pelas esteiras das agroindústrias também compunham um contexto de gradativa internalização da necessidade de trabalhar no limite, muitas vezes até a morte. Um triste exemplo: entre 2004 e 2007, mais de vinte cortadores de cana morreram por exaustão em serviço!
Afinal, o que as máquinas e outros “avanços científicos” representam para o trabalho na agricultura e, assim, para a reprodução do próprio agronegócio? Em que situação as pessoas são elas mesmas tratadas como ervas daninhas e o que isso ocasiona? Até menos de dez anos atrás, cortadores manuais eram recrutados aos montes em cidades do norte de Minas e do Nordeste para passar a maior parte do ano em São Paulo. Embora fossem tratados como “os de fora”, estigmatizados como “nortistas arruaceiros” nas cidades interioranas, engoliam o orgulho ferido e a fuligem da cana queimada e, com facões afiados, batiam anualmente recordes de produtividade. Assim como a formiga e o mato, retornavam todo ano, mas não representavam apenas custos. Também produziam a maior parte da “riqueza” do setor. Em 2008, eram quase 300 mil; hoje, menos de 30 mil. A rápida mecanização do corte, com a introdução de gigantescas colhedoras, erradicou seus empregos. No campo desabitado, a cana é agora cortada por uns poucos operadores de máquinas, que se revezam dia e noite.
De 2002 a 2010/2011, os preços internacionais das commodities atingiram altas históricas, num afluxo de escala inédita de capital fictício para a produção de mercadorias agrícolas e minerais no mundo todo e no Brasil. Essa abundância monetária percolou o solo da sociedade brasileira. No campo paulista, as usinas de cana se esbaldaram em novos projetos, novas aquisições, ampliando os canaviais para os pastos e para o Cerrado de estados vizinhos. Renovaram e aumentaram as dívidas, abriram capital em Bolsa e emitiram papéis para financiar a euforia, que tinha lastro frágil na promessa de que o etanol viria logo a substituir o petróleo e nos livrar de seus males.
De modo contraditório, porém, a energia supostamente “limpa” se valia de produzir sistematicamente queimadas, para abrir caminho para o corte da cana, feito pelos migrantes. Como equacionar essa prática com o discurso ambiental? “Proíbam-se as queimadas…” Entretanto, como cortar cana crua sem cortar todo o cortador nas finas folhas afiadas da cana? Para acabar com as queimadas e “limpar” o agrocombustível seria necessário transformar o processo de trabalho. Porém, com isso, impunha-se “varrer” os próprios cortadores do interior paulista e substituí-los por colhedoras mecânicas, desde que as máquinas se tornassem acessíveis para serem compradas. Assim, a mecanização se apresentava como a “vacina” para o problema. No entanto, ela exigia investimentos e adaptação, que o boom das commodities tornava possíveis.
Usinas avalizaram empréstimos bancários de seus fornecedores e se valeram de linhas especiais de financiamento estatal, como do BNDES e do Moderfrota, para comprar colhedoras. Desse modo, a “cura” para o adoecimento dos trabalhadores rurais e para a poluição das queimadas nos canaviais chegou com a aquisição de maquinário pesado para a mecanização do corte. Os trabalhadores haviam se tornado a “praga” a ser erradicada, em prol de uma produtividade bancada pelo capital financeiro. Sendo eles, todavia, a verdadeira fonte de valor adicional que pode ampliar o capital, como poderá o próprio capitalismo curar a “praga” da falta de lucratividade que ele mesmo assim cria?
As respostas para os problemas reiterados no campo têm sido, assim, dobrar a aposta na produtividade, que vai levando ao extremo a noção de monocultura, a qual parece querer se produzir por si mesma, sem diversidade ambiental e sem gente. A crítica a essa forma de pensar, produzir e consumir reclama as derradeiras questões: de onde pode vir a acumulação do agronegócio se não pela exploração do trabalho? Qual mágica se espera? Será que o recurso à dívida pública e ao capital financeiro pode sempre e sistematicamente substituir a extração da mais-valia? Que custos sociais e ambientais estamos assumindo para reiterar essa ficção? Até quando?
[*] Professor de Geografia Econômica e Rural da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e pesquisador do Grupo de Estudos sobre Mudança Social, Agronegócio e Políticas Públicas (Gemap) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Ufrrj) e do Laboratório de Geografia Urbana (Labur) da USP.
O original encontra-se em Le Monde Diplomatique Brasil
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