Um futuro premeditado

imagemArticular o passado historicamente não significa conhecê-lo “tal como ele propriamente foi”. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampeja num instante de perigo. lmporta ao materialismo histórico capturar uma imagem do passado como ela inesperadamente se coloca para o sujeito histórico no instante do perigo. O perigo ameaça tanto o conteúdo dado da tradição quanto os seus destinatários. Para ambos o perigo é único e o mesmo: deixar-se transformar em instrumento da classe dominante. Em cada época é preciso tentar arrancar a transmissão da tradição ao conformismo que está na iminência de subjugá-la. Pois o Messias não vem somente como redentor; ele vem como vencedor do Anticristo. O dom de atear ao passado a centelha da esperança pertence somente àquele historiador que está perpassado pela convicção de que também os mortos não estarão seguros diante do inimigo, se ele for vitorioso. E esse inimigo não tem cessado de vencer.

Walter Benjamin

Milton Pinheiro

A vida humana está em perigo. A crise capitalista mundial avança com marcas bastante desiguais. Uma parte significativa de países encontra-se marcada pela lógica da espoliação, sem maior capacidade de responder ao ataque imperialista que tem pautado uma nova reconfiguração da extração de mais-valia. No centro do sistema, a prioridade é operar pequenas mudanças no processo fiscal sem, contudo, deixar brechas para o bem-estar social, mesmo aquelas de caráter mínimo e rebaixado.

Nos EUA, a crise política e societária aprofundada pela lógica do governo do agitador fascista, Donald Trump, nos seus quatro anos de mandato, alimentou o ovo da serpente do neofascismo; possibilitou o crescimento de forma mais organizada das hordas (milícias) armadas pelo país; projetou uma pauta de costumes extremamente retrógrada; impediu de forma organizada a presença de integrantes de povos periféricos em território estadunidense; comportando-se de forma leniente e negacionista diante do Covid 19; fomentando uma crise política que colocou em risco o caráter da democracia formal estadunidense, quando da invasão do congresso nacional (Capitólio) por hordas neofascistas, racistas e xenófobas após a sua derrota eleitoral.

A eleição do Joe Biden foi uma reação importante do povo estadunidense à barbárie em curso, no entanto, não significa uma mudança radical na ordem de prioridades da forma gerencial na estrutura política dos EUA. Significa sim, que o modelo gerencial do Trump colocava em crise o sistema e desarticulava os fundamentos básicos da dominação interna e externa desse país. Portanto, são mudanças para reorientar essa dominação…

Biden vai operar no campo da “normalidade institucional”, reconfigurando o papel da mediação política na forma da dominação, constituindo espaços de questionamento ao racismo, à imigração da periferia e ao desastre ambiental em curso pelo mundo, em particular, no Brasil. Além da mudança de posição sobre a questão do Covid 19, o governo Biden retira da cena política institucional o negacionismo e a paralisia diante da gigantesca mortandade causada pela pandemia no país.

Todavia, é importante refletir que o governo Biden representa uma melhor posição no bloco de poder das frações da burguesia estadunidense que advém da indústria do armamento e do petróleo. Não visualizamos, no atual governo, uma política externa que seja antiagressiva em relação aos povos em luta e/ou que deixe de exercitar seu caráter imperialista.

Os povos seguem em luta, e na América Latina tivemos levantes populares importantes; são pautas de caráter progressistas que têm levado à mudança na relação de força, com vitórias na Argentina (tributação das grandes fortunas, direito ao aborto, recuperação de direitos…), Bolívia (retorno ao governo, com ampla mobilização popular, de forças de esquerda…), Chile (amplo movimento pela modificação constitucional, mudança no sistema de direitos trabalhistas e previdenciários, reordenamento dos pilares da democracia formal…), Peru (com grandes manifestações populares…), etc.

Entre nós, a crise brasileira se aprofunda com vasta fermentação política e econômica. Saímos do processo eleitoral com a vitória do bloco da direita tradicional, sem ampliação significativa do bloco bolsonarista mais original, com uma importante derrota da esquerda social-democrata de caráter tardio e da esquerda nacional-desenvolvimentista, representada pelo PT e PC do B. Porém, tivemos um crescimento nas câmaras municipais de muitas capitais e grandes cidades da representação de vereadores/as do campo identitário que se movimentam pela conquista de políticas públicas para combater as opressões da sociabilidade capitalista (PSOL e PT).

O campo da esquerda que majoritariamente centraliza suas ações nos confrontos clássicos da luta de classes, sem, contudo, deixar de entender a importância das lutas específicas, também saiu derrotado desse processo. O cenário pós-eleitoral marcha, se não houver intervenção dos segmentos populares, para um avanço do bloco de direita na política brasileira.

Os descaminhos da crise sanitária tomaram conta do Brasil, concretamente pela incapacidade de gestão do governo federal, pautado no comportamento negacionista e na lógica criminosa das hordas bolsonaristas. A pandemia avançou de forma avassaladora, matando milhares de vida nesse começo de 2021 (o país avança para além das 230 mil mortes). Tudo isso agravado pela falta criminosa de oxigênio na região norte do país, em especial, no estado do Amazonas.

Em um primeiro momento, desse começo de ano, a crise pautada na “segunda onda” do Covid 19, na incapacidade gerencial do governo federal diante do episódio da falta de oxigênio, no debate sobre compras de alimentos supérfluos para o palácio, mobilizou uma massa crítica que se movimentou de forma mais ativa pelo impedimento do presidente. No entanto, alguns fatores adentraram na cena política e mudaram o clima político de frente ampla que começava a pedir o impedimento do agitador fascista, Jair Bolsonaro.

Bolsonaro agiu em duas frentes, usou a mídia corporativa para dizer que vai colocar na ordem do dia do parlamento as contrarreformas administrativa e tributária e, ao mesmo tempo, operou um forte movimento para eleger seus aliados para presidente das mesas do senado e da câmara dos deputados, respectivamente.

O governo federal agiu de forma muito “eficiente” em todas as frentes para mudar a correlação de forças: agindo sobre a mídia corporativa no sentido da pauta das “reformas”; operando no balcão de negócios da relação governo/parlamento (liberando 3 bilhões em emendas parlamentares para eleger seus candidatos); agindo de forma falaciosa na questão das vacinas e rearticulando, provisoriamente, o bloco burguês. Bolsonaro saiu vitorioso nessas contendas da ordem institucional.

O caos controlado da lógica de governo se rearticulou. A esquerda institucional continua, com o episódio da eleição nas casas do congresso nacional, mostrando-se incapaz de visualizar saídas que não se deixem capturar pela centro-direita no parlamento. O PT, PC do B, setores do Psol capitularam diante dos argumentos de Rodrigo Maia e foram derrotados no enfrentamento com a base bolsonarista no parlamento. Mesmo o Psol lançando a candidatura de Erundina, no primeiro turno, o debate interno sobre esse processo desvelou a postura oportunista de boa parte da bancada. Ao fim e ao cabo, Baleia Rossi, líder de uma parte do “Centrão”, teve mais fidelidade de segmentos da esquerda institucional (que nem sequer debateu uma pauta para mediar o apoio) do que dos seus comparsas de direita. Venceu a direita do centrão, venceu a ultradireita Bolsonarista; perdeu a esquerda institucional. Este último espectro não consegue ter nem uma pauta mínima em um momento de crise do Estado capitalista, a exemplo da tributação das grandes fortunas e do congelamento da dívida. A relação de forças entrou em um novo patamar.

O parlamento brasileiro é um disforme estatuto político. Os deputados em tese não seguem as definições ideológicas das suas agremiações. O parlamento sempre foi capturado pela lógica do balcão de negócios e da pequena política do governo de plantão. Nosso problema não é a quantidade de partidos, mas a forma política da relação parlamento/executivo. Temos 23 partidos com assento na Câmara dos Deputados: PSL 53, PT 52, PL 43, PP 40, PSD 35, MDB 34, PSDB 33, PR 31, PSB 30, DEM 28, PDT 27, Solidariedade 13, PTB 11, Podemos 10, PROS 10, PSOL 10, PSC 09, PC do B 09, NOVO 08, Avante 08, Patriota 06, PV 04 e Rede 01. Cada parlamentar tem 187.922,00 para gerir mensalmente o mandato. A Câmara tem 01 presidente e mais 06 membros (2 vices e 04 secretários) que, pelo seu regimento hierarquizado, não têm maior importância política.

Essa nova relação de força no parlamento pode ter reflexo na sociedade; movimentando o lixo da política contra os interesses da classe trabalhadora, unindo a mídia corporativa na informação/apoio sobre as contrarreformas e, provisoriamente, aliando um forte bloco burguês por mais ataques ao fundo público.

A grande questão da conjuntura, neste momento, se apresenta em dois sentidos, no campo institucional e da luta de classes: trata-se do enfrentamento à reforma administrativa e da batalha pelo impedimento do presidente, afirmando a consigna do Fora Bolsonaro e Mourão. O sentido da contrarreforma é para privatizar os serviços públicos, retirar o Estado do atendimento às questões sociais que afetam os trabalhadores/as, à população em geral e o povo pobre das mais diversas periferias. Querem acabar com o SUS, querem criar o fisiologismo das indicações para entrar no serviço público, destruindo o ordenamento no que diz respeito aos servidores públicos, querem abrir a possibilidade de constituir carteiras de negócios para a burguesia, naquilo que é de obrigação do Estado em todos os níveis: federal, estadual e municipal.

Apesar da lógica burguesa das contrarreformas com toda força, cabe ao conjunto da classe trabalhadora abrir um conjunto de lutas que tenha como centralidade a disputa pelo acirramento da luta de classes. Precisamos ter fôlego para denunciar de forma inovadora e ampla o sentido dessas contrarreformas ultra neoliberais; precisamos de formas organizativas ágeis que sejam marca registrada da unidade de ação do conjunto dos trabalhadores/as, segmentos populares, periféricos e de juventude. O momento é de rearticulação da organização da classe trabalhadora, do avanço do trabalho de base, da movimentação de formas presenciais de lutas (com a devida preocupação sanitária) e da construção de uma frente política, social e de esquerda que conforme um bloco proletário e popular na perspectiva da frente única de esquerda.

Lutamos em defesa da vida, das liberdades democráticas, dos serviços públicos, da vacinação para todos/as já. Lutamos em defesa do futuro, para isso, só as ruas podem derrotar Bolsonaro!

Milton Pinheiro
Cientista Político, professor de história política da UNEB, integra os conselhos editoriais de várias revistas marxistas, é pesquisador na USP. Autor/organizador de oito livros, entre eles: “Ditadura: o que resta da transição”. É membro do Comitê Central do PCB (Partido Comunista Brasileiro)