O (neo)colonialismo pandêmico

imagemLojas fechadas na cidade de Bangalore, Karnataka, Índia, em 22 de Abril de 2021, após o governo local ter ordenado o confinamento devido ao surto de novas infecções Covid-19 registrados no país, que ascenderam a mais de 300 mil casos por dia.
CréditosJAGADEESH NV / EPA

Raquel Ribeiro

ABRIL ABRIL

As dinâmicas de dependência neocoloniais continuam absolutamente evidentes. A Covid-19 só as pôs ainda mais a nu.

O Reino Unido já não está em pandemia, dizem especialistas citados pelo Telegraph. A situação evoluiu de tal maneira positivamente, que as infecções poderão reduzir-se em 90% com a vacinação. E 49,8% da população já recebeu a primeira dose da vacina. Fazendo eco do relatório apresentado pela equipa da COVID-19 Infection Survey, uma parceria entre a Universidade de Oxford, o Instituto de Estatísticas Nacionais e o Departamento de Saúde e Acção Social, o primeiro-ministro do País de Gales disse: «Na sua definição, neste momento não estamos mais numa pandemia. Continuo a avisar que isto não é uma rua de sentido único». Isto é, as coisas podem sempre voltar a piorar.

Mas é um fato, como o estudo revela, que a redução em infecções e infecções sintomáticas é muito significativa após a segunda dose da vacina (70% e 90%, respectivamente). Entrando então no que seria um momento de «endemia» de Covid-19, os especialistas no Reino Unido explicam que um reforço da vacinação no Outono vai ser certamente necessário para a continuação do controle das infecções e redução da mortalidade. E, depois disso, talvez anual.

Entretanto, a antiga colônia, jóia do império britânico, a Índia, que antes produzia os diamantes para a coroa dos reis ingleses e que agora produz uma enorme porcentagem de vacinas para o Ocidente, ironicamente também produz muitas das que os britânicos estão tomando. O setor farmacêutico da Índia representa 50% do consumo global de vacinas, 40% do mercado de genéricos dos EUA e 25% de todos os medicamentos do Reino Unido. O país está enfrentando uma escalada de infecções e mortes brutal e devastadora. São já 16 milhões de infecções, 340 mil casos por dia. As notícias dão conta de um inferno, em tudo igual ao que temos assistido no Brasil: novas variantes do vírus (neste caso «mutante»), pacientes sem oxigênio, incêndios em hospitais, cremações em massa.

No podcast semanal de comentário anticapitalista, «Give the people what they want», Prasanth R dizia, em conversa com o investigador Vijay Prashad (director da Tricontinental) e a jornalista Zoe PC, que «assistimos ao colapso total» do serviço de saúde na Índia. «Basicamente, as pessoas estão lutando por si mesmas.» A verdadeira extensão da crise é «muito, muito pior», diz Prasanth R. E tudo isto é «responsabilidade do governo» que, no início do ano, anunciou «que o pior já tinha passado», não se preparou convenientemente com camas, ventiladores e oxigênio para uma possível (e provável) segunda onda e permitiu celebrações religiosas sem qualquer controle. Vijay Prashad lembra que Kerala foi um dos estados que melhor se preparou e hoje «exporta» oxigênio para outros estados da Índia, sobretudo no norte, onde está o epicentro da crise. «O governo central de Nova Delhi, liderado por Narendra Modi, tem uma atitude completamente negligente em relação ao investimento em infraestrutura», diz Prashad. «A “variante indiana” é a privatização da economia».

«O governo central de Nova Delhi, liderado por Narendra Modi, tem uma atitude completamente negligente em relação ao investimento em infraestrutura […] a “variante indiana” é a privatização da economia»

Vijay Prashad, director da Tricontinental

Isto é em tudo idêntico ao Brasil: a extrema-direita mata, a política de extermínio de Bolsonaro e Modi são irmãs. As previsões no Brasil estão já no milhão de mortes até outubro. A variante brasileira já se alastrou por toda a América Latina e está exponencialmente ceifando vidas no Peru, na Colômbia, na Venezuela. A Venezuela tem dinheiro retido no BES, no banco de Londres e nos EUA devido às sanções. O país precisa do dinheiro para comprar medicamentos e para entrar com fundos na Covax (iniciativa de partilha de vacinas dos países ricos com países pobres ou menos ricos, apoiada pela OMS). Só que a Covax no continente americano é gerida pela Organização de Saúde Pan-Americana, que espera da Venezuela o pagamento de 100 milhões de dólares para que o país possa receber entre 1,4 e 2,4 milhões de doses da AstraZeneca que lhe foram destinadas. Depois há quem se admire da razão pela qual Cuba não participa do Covax e tenha decidido desenvolver, diante de uma gravíssima crise econômica, as suas próprias vacinas.

«Enquanto num lado se preparam crematórios e se abrem valas comuns, noutro um poderoso bloco econômico-financeiro assina um acordo com a vacina mais cara do mercado»

Vários países que deveriam se beneficiar da Covax receberam apenas um quinto das vacinas programadas até maio. Neste caso é a AstraZeneca, que curiosamente é a vacina da grande maioria da população no Reino Unido. Países grandes como a Indonésia e o Brasil receberam, até agora, uma em cada 10 doses da AstraZeneca que esperavam até maio. Enquanto Bangladesh, México, Myanmar e Paquistão não receberam absolutamente nenhuma.

Mas não são só os britânicos. O headline do Guardian na tarde de sexta-feira era sintomático: «Índia vê número global de casos aumentar pelo segundo dia; UE assina maior acordo do mundo em vacinas com a Pfizer.» Enquanto num lado se preparam crematórios e se abrem valas comuns, noutro um poderoso bloco econômico-financeiro assina um acordo com a vacina mais cara do mercado. Mas até nisso dos contratos entre as vacinas e os Estados há relações neocoloniais: diferentes países estão pagando diferentes preços por elas. A África do Sul, por exemplo, revelou em janeiro estar pagando 5.25 dólares/dose pela AstraZeneca, mais que o dobro do que a empresa cobrou à União Europeia (2.15 dólares/dose), segundo a revista semanal do sindicato de Médicos no Reino Unido, BMJ.

«O (neo)colonialismo é um vírus, tomou conta do mundo como uma pandemia, e manifesta-se e propaga-se, incessante. Onde houver recursos, a mão invisível do «progresso» está lá»

A Organização Mundial do Comércio, reunida na semana passada, recebeu um pedido urgente de mais de 100 países (liderados pela Índia e pela África do Sul) para libertar as patentes das vacinas contra a covid-19. A proposta encontrou forte oposição dos países ricos como EUA, Reino Unido, Canadá e UE, que argumentaram que as isenções desincentivam a «inovação» e podem prejudicar os interesses das grandes empresas farmacêuticas envolvidas na produção das vacinas. Também afirmam que a quebra de patentes irá desencorajar futuros investimentos. A jornalista Valentina Lares explicava, num artigo no portal Persuasion, que enquanto os países ricos continuam acumulando vacinas sem as distribuir, a Rússia prossegue a sua «diplomacia de Sputnik»: sem que ninguém lesse muito sobre a notícia, a Argentina tornou-se o primeiro país da América do Sul a produzir a vacina russa. A União Africana confirma ter recebido a oferta de 300 milhões de doses da Rússia, que também já assinou acordos para produzir milhões de doses da Sputnik na China, no Brasil, Irã e na Sérvia.

De regresso ao Reino Unido, espera-se que os passaportes Covid estejam prontos a partir de 17 de maio (menos de um mês), para britânicos com smartphone poderem viajar à vontade. Provavelmente para países tropicais em resorts de luxo, onde não terão qualquer contacto com pessoas infectadas ou que ainda não foram vacinadas. O Ocidente soube sempre aproveitar uma crise com oportunidade: o apartheid das vacinas não surgiu no vazio, já antes havia apartheid econômico e social, dos países ricos a norte a viajar para o sul global para curtir praias e caipirinhas ao lado de cidadãos que vivem abaixo do limiar da pobreza. Também era assim no século XIX: um passaporte britânico era mais valioso do que qualquer outro, e o sol nunca se punha naquele grande império que agora foi recuperado com o Brexit.

O (neo)colonialismo é um vírus, tomou conta do mundo como uma pandemia, e manifesta-se e propaga-se, incessante. Onde houver recursos, a mão invisível do «progresso» estará lá.