Por que nunca diminui a verba do Pentágono

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Mandy Smithberger

ODIARIO.INFO

Seguindo a moda de uma imprensa dominante embevecida que celebra os primeiros 100 dias de Biden, uma coisa deve ser destacada: estes 100 dias foram um alento para o Pentágono. Melhor dizendo, continuaram a ser. Uma gigantesca fatia do orçamento dos EUA (ao qual se acrescentam ainda copiosos fundos secretos) é para a “defesa”, ou seja para a guerra. Guerra que vai sendo cada vez mais real no próprio país, com as forças policiais que o Pentágono militarizou e se comportam “como em qualquer país ocupado”.

Os primeiros 100 dias da administração do presidente Joe Biden já se foram. Embora de algum modo exagerado, esse marco é normalmente considerado o período de lua de mel para qualquer novo presidente. Impulsionado por um recente triunfo eleitoral e pela tomada de posse, espera-se que esteja no auge do seu poder quando se trata de apresentar os maiores e mais ousados itens da sua agenda.

E, de fato, no que diz respeito a, digamos, metas para a infraestrutura ou vacinação contra a pandemia, Biden tem cumprido de forma destacada. Entretanto, financiar cegamente o Pentágono e as suas prioridades na forma estratosférica que se tornou a essência de Washington, provou inteiramente outra coisa. Cem dias depois, é notável como pouco mudou quando se trata de despejar dinheiro na vasta infraestrutura militar deste país e nas guerras, em andamento ou imaginárias, que a acompanham.

Na última década, o debate sobre o orçamento do Pentágono foi governado, em parte, pela Budget Control Act, que pelo menos impôs limites nominais aos níveis de gastos tanto para as agências de defesa como de não-defesa. Na realidade, porém, ao contrário de tantas outras agências governamentais, o Pentágono nunca foi restringido por esse limite. O Congresso continuou a aumentar os seus limites à medida que os orçamentos militares só aumentavam e, não menos importante, os gastos com defesa tinham uma válvula de escape que permitia que quantias enormes de dinheiro fluíssem sem uma contabilidade séria para um fundo não orçamentário destinado especialmente às suas guerras e designado como “conta para operações exteriores de contingência”. O Congressional Research Service estimou que esses gastos suplementares, de 11 de setembro de 2001 ao ano fiscal de 2019, totalizaram uns espantosos US $ 2 milhões de milhões acima e além do orçamento do Pentágono acordado pelo Congresso.

Agora, no entanto, o Budget Control Act expirou, deixando a esta administração uma notável oportunidade de reorientar o país para fora dos orçamentos de segurança nacional de mais de um trilhão de dólares e de guerras sem fim, embora haja poucos sinais de que tal caminho venha a ser seguido.

Se há coisa que os norte-americanos deveriam ter aprendido nos últimos anos é que o gasto interminável do Pentágono não nos torna realmente mais seguros. A pandemia, a insurreição no Capitólio e a persistente ameaça do extremismo nacionalista branco deveriam ter deixado suficientemente claro que defender este país contra os riscos mais significativos para a saúde e segurança públicas domésticas não cabe nas competências do Pentágono. Além disso, o Departamento de Defesa é talvez a maior fonte de desperdício e má gestão do país.

Infelizmente, no entanto, é provável que prossiga o business as usual, com o dinheiro continuando a fluir da forma de costume. É então impressionante e indesculpável que, quando se trata do Pentágono, a administração Biden tenha visivelmente desperdiçado os seus primeiros 100 dias de mandato com mais do mesmo. O que já sabemos, por exemplo, é que, apesar de uma planejada retirada das tropas norte-americanas do Afeganistão e de afirmações sobre o encerramento das “guerras eternas” dos EUA, o primeiro orçamento do Pentágono proposto por Biden de US $ 715 bilhões representa efetivamente um modesto aumento em relação às estarrecedoras verbas que o Pentágono recebeu no último ano da administração Trump.

É certo que há pelo menos algumas boas notícias sobre as finanças do Pentágono na era Biden (embora já estivessem incluídas no último orçamento do Pentágono da administração Trump). O fundo secreto de operações de contingência no exterior está finalmente sendo eliminado. Embora alguns o tenham visto como uma consequência natural do fim do Budget Control Act, foi definitivamente uma vitória sobre think tanks financiados pela indústria do armamento, como o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, que estavam tentando persuadir legisladores e o público a “reformar” esse fundo.

Além disso, a decisão do governo Biden de trazer para casa as últimas tropas do Afeganistão podia ser um importante passo inicial para acabar com as infinitamente dispendiosas guerras deste país. Estima-se que os Estados Unidos terão gasto mais de US $ 2,5 trilhões de dólares apenas na guerra do Afeganistão (incluindo aproximadamente US $ 12,5 bilhões anuais durante os próximos 40 anos para cuidar dos seus veteranos), um conflito em que, segundo o Projeto Custos de Guerra da Brown University, mais de um quarto de milhão de pessoas foram mortas.

Mas Biden deve fazer mais se quiser cumprir sua promessa de pôr fim às guerras eternas. Isso inclui encorajar o Congresso a revogar autorizações de guerra cujo prazo há muito terminou e o compromisso de não permitir que nenhum conflito tenha início sem efetiva declaração de guerra do Congresso. Entretanto, a retirada das tropas do Afeganistão e de outras frentes de guerra deveria resultar em reduções significativas no orçamento do Pentágono, como tem acontecido historicamente após as guerras – mas não contemos com isso.

O Pentágono, Colosso do Desperdício

Se quiser um termômetro para medir a influência do Pentágono nos EUA, tome em consideração o seguinte: mesmo os mais desastrosos programas de armamento são regularmente aprovados e é improvável que a era Biden acabe com essa realidade.

De momento, vários perdulários e problemáticos programas do Pentágono, mais notoriamente o F-35 Joint Strike Fighter da Lockheed Martin, estão oficialmente sendo revistos. Só o custo de criação e manutenção desse jato garantiu já que ele será o programa de armamento mais caro da história: estimados US $1.7 trilhões ao longo da sua vida útil. Mesmo funcionários do departamento e membros do Congresso – e isso é raro – hesitaram ao ver quão caro e pouco confiável provou ser aquele caça-caça. O secretário de Defesa de Trump, Christopher Miller, chamou “pedaço de…” ao F-35, deixando significativamente a última palavra no ar, mas posteriormente referindo-se ao avião como “um monstro”. Entretanto, o deputado Adam Smith (D-WA), presidente do comitê das Forças Armadas da Câmara, deixou claro que gostaria de parar de lançar dólares dos contribuintes naquele específico “ninho de ratos”.

Em tempos, foi garantido aos norte-americanos que, enquanto futuro caça a jato do país, o F-35 seria “mais Chevrolet do que Porsche”; isto é, na faixa inferior (e barata) de qualquer nova combinação de poder aéreo futuro. Muito mudou desde então. Os custos totais do programa duplicaram, enquanto o preço futuro de manutenção dos aviões levantou voo – ao contrário dos próprios aviões. Frequentemente, na verdade, não estão em suficientes condições para voar, levantando sérias preocupações sobre se estarão disponíveis suficientes F-35s para combates futuros. O chefe do Estado-Maior da Força Aérea afirma agora que não é o Chevrolet, mas o “Ferrari” dos caças a jato e que portanto deve, no futuro, ser usado com moderação. A evolução previsível desse avião foi descrita pelo lendário coronel Everest Riccioni como uma moderna versão de desarmamento unilateral por parte do Pentágono”.

No mínimo, não devem ser comprados mais F-35s até a testagem ser concluída com sucesso, mas tal bom senso não tem sido, na memória recente, característica do Pentágono – não no mundo da “porta giratória” do complexo militar industrial. Neste sentido, o programa F-35 tem sido típico dos tempos que correm. Em 2017, quando atrasos e custos explosivos levaram o Departamento de Defesa a considerar reduzir a dimensão do programa, o então comandante do Corpo de Fuzileiros Navais, General Joe Dunford, opinou sobre o assunto. Ignorando largamente os dados de testagem do F-35, declarou de imediato que o programa havia efetivamente atingido a capacidade operacional inicial (o que provavelmente não tinha ocorrido). Sem surpresa, logo após a sua reforma em 2019, passou a integrar o conselho de administração da Lockheed.

O futuro do Pentágono será em larga medida moldado pelo pessoal selecionado para o dirigir. Em demasiados casos, vêm diretamente de uma indústria de defesa que lucrou à larga com o seu crescente orçamento. No governo Trump, por exemplo, foram escolhidas personalidades para o cargo de secretário de defesa que havia trabalhado para as principais empresas de defesa. O general aposentado Jim Mattis fazia parte da administração da General Dynamics (e regressou logo após o fim da sua passagem pelo Pentágono); Patrick Shanahan veio da Boeing; e Mark Esper veio da Raytheon.

Embora Joe Biden tenha emitido uma forte ordem executiva sobre ética a ser aplicada aos políticos seus indicados para toda a equipe, até agora a sua administração não parece muito diferente das anteriores quando se trata do Pentágono. Afinal, o seu secretário de defesa, o general aposentado Lloyd Austin III, veio diretamente do comando da Raytheon; enquanto Frank Kendall, nomeado secretário da Força Aérea, vem do conselho da Leidos, outro contratante de topo do Pentágono, embora seja antes fornecedor de serviços do que construtor de armamentos. (Embora frequentemente ignorados, os contratos de serviço representam quase metade de toda a despesa de contratação do departamento.)

A difusão dos contratos de defesa entre os distritos parlamentares, prática conhecida em Washington como “engenharia política”, também tem de acabar. A Lockheed, por exemplo, afirma que o programa F-35 criou empregos em 45 estados. Segundo a sabedoria convencional, é essa realidade que torna o Pentágono grande demais para falir. Embora raramente seja observado, dinheiro semelhante aplicado em financiamento não militar, como infraestrutura ou energia limpa, quase invariavelmente prova ser um maior criador de emprego do que a versão militar do mesmo.

Aqui, então, está uma questão que pode valer a pena considerar nos primeiros meses do governo Biden: haverá mais contundente acusação da abordagem deste país ao orçamento militar do que continuar a comprar uma arma porque o nosso sistema político é demasiado corrupto para mudar de curso?

Militarismo doméstico

Na nossa história recente, Washington tem claramente sido um tipo de lugar onde o Pentágono é prioritário. Muitas vezes esquecido é como tal abordagem teve impacto negativo não apenas sobre as comunidades no Afeganistão, Iraque, Somália e Iêmen, mas também internamente. Para dar um exemplo, o Pentágono desempenhou um papel fundamental na militarização das forças policiais deste país, contribuindo apenas para o ciclo destrutivo que foi primeiro amplamente notado depois de a polícia ter usado armas de nível militar contra os que protestavam contra a morte de um adolescente negro desarmado, Michael Brown, em Ferguson, Missouri, em 2014. A violência policial contínua contra a comunidade negra alcançou finalmente maior atenção pública após o assassínio de George Floyd e a resposta policial ao movimento Black Lives Matter no verão passado. Como escreveram colegas meus do Projecto de Supervisão do Governo, a militarização da nossa polícia torna o público “menos seguro e menos livre”.

O Pentágono teve impacto negativo no policiamento dos EUA através do seu programa 1033, que nos últimos anos transferiu uma quantidade impressionante de equipamento militar em excesso, por vezes diretamente dos campos de batalha das “guerras eternas” dos EUA, para os departamentos de polícia em todo o país. As ferramentas de guerra agora transferidas para as forças policiais locais incluem tanques, veículos protegidos contra emboscadas resistentes a minas, espingardas de assalto e baionetas, entre muitos outros artigos militares. O grupo Open The Books, dedicado à transparência governamental, descobriu que desde 1993 o programa transferiu para a polícia 581.000 artigos de equipamento militar no valor de US $ 1,8 bilhões. Sem surpresa, um estudo de 2017 descobriu que os departamentos de polícia que receberam esse equipamento tinham maior probabilidade de matar os civis que deveriam proteger e servir.

No início do governo Biden, parecia que o programa 1033 iria ser reduzido. Em janeiro, a Reuters informou que o presidente se preparava para assinar uma ordem executiva naquele mesmo mês, que pelo menos colocaria limites significativos no programa. Até ao momento, mais de três meses depois, a Casa Branca não tomou tal iniciativa, embora em março o deputado Hank Johnson (D-GA) tenha apresentado legislação para restringir o programa. Segundo o Security Policy Reform Institute, a National Association of Police Organizations reivindicou o crédito de atrasar a ação do presidente.

Assim, hoje, os militares continuam fazendo com que a polícia deste país pareça cada vez mais estar ocupando alguma terra estrangeira.

The China Chickenhawks

E se os falcões virados para a China, que conquistaram um poder significativo entre a equipe de política externa de Biden, tiverem algo a dizer sobre isso, o financiamento do Pentágono continuará na ordem do dia.

Nada surpreendentemente, o governo Biden enfrenta uma pressão crescente sobre a China e os perigos da guerra, uma narrativa que parece a resposta a um crescente consenso público de que não podemos continuar colocando em primeiro lugar as necessidades do Pentágono. As Forças Armadas já estão começando a virar-se umas contra as outras enquanto lutam pela sua fatia no futuro bolo orçamentário. Preocupadas com que o comboio do dinheiro possa finalmente estar preparando-se para sair da linha, tem havido um persistente rufar de tambores de exageros sobre a ameaça militar representada pela China.

Nesse contexto, o documento-chave que os incentivadores do Pentágono continuam citando, embora tenha sido publicado em 2018, é um relatório da National Defense Strategy Commission. Recomendava cortes nos programas de direitos que compõem a rede de segurança social deste país para pagar um aumento anual de 3% a 5% nos gastos do Pentágono. A maioria dos intervenientes nessa comissão eram consultores da indústria de defesa, membros das administrações de gigantes fabricantes de armamentos ou lobistas dos mesmos. É desnecessário dizer que tinham interesse financeiro em levantar a preocupação de que a China ultrapassaria militarmente os Estados Unidos num futuro razoavelmente próximo.

Na verdade, é um fato da vida que a competição com a China é agora um desafio, mas é importante manter um sentido de realismo sobre a natureza dessa ameaça. Como John Isaacs do Council for a Livable World mostrou recentemente, as forças armadas dos EUA superam muitas vezes as da China em capacidade e força. “Parece que a China se tornou o novo espantalho da União Soviética”, escreveu Isaacs. “Mas existe uma grande diferença: embora as forças armadas e o arsenal nuclear soviético estivessem razoavelmente a par dos Estados Unidos, as da China simplesmente não o estão”. A nova guerra fria com a China, que o governo Biden já está promovendo, apenas ameaça enfraquecer este país à medida que recursos são desviados do combate às ameaças mais sérias de nosso tempo, como pandemias, alterações climáticas e supremacia branca.

Infelizmente, em fevereiro, o governo Biden, tendo comprado amplamente essa retórica, anunciou o estabelecimento de uma nova Task Force do Pentágono para a China. O resultado mais provável, como o meu colega Dan Grazier aponta, é que o presidente e sua equipa de política externa irão fornecer ampla “cobertura para que os governantes eleitos apoiem impopulares recomendações de políticas que acabarão atendendo a lista de desejos da indústria de defesa”.

Como observou o correspondente de longa data da Atlantic e especialista em reforma da defesa James Fallows, as guerras sem recrutamento geral do século XXI essencialmente garantiram que os EUA se tornassem uma “nação chickenhawk”. Para os que não estão familiarizados com o termo, chickenhawk refere-se a “aqueles que desejam ir para a guerra, desde que sejam outros a ir em seu lugar”. O resultado líquido é que o público norte-americano, neste século, se mostrou extremamente complacente sobre como Washington tem usado a força, “presumindo alegremente que venceríamos”. Já era suficientemente mau com o Afeganistão, Iraque e outros países em guerra eterna, mas quando se trata da China, é difícil imaginar qualquer coisa que não sejam os mais negativos resultados da parte daqueles que encorajam o conflito militar.

Entretanto, como acontece com tanta coisa relacionada com o Pentágono, as consequências em casa do bicho papão chinês já estão à vista. Tal como tem ficado crescentemente óbvio nos últimos tempos, a inflamada retórica sobre os perigos da China levou a um aumento dos de crimes de ódio contra norte-americanos de origem asiática em todo o país. Embora a retórica anti-China do ex-presidente Trump (”Kung-flu”, “Vírus da China”) pareça ter contribuído significativamente para este aumento em crimes de ódio, o mesmo aconteceu com a instilação do medo da ameaça da China e o reforço do que ainda é chamado política de “defesa” que transporta.

Este país se beneficiaria sem dúvida de mais competição (e também da cooperação com) a China, o que fortaleceria a economia e geraria aqui mais prosperidade. Por outro lado, uma nova atmosfera de guerra fria permitirá ao Pentágono acumular recursos que, de outra forma, seriam encaminhados para as nossas maiores necessidades de saúde pública e segurança.

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