O império da espionagem
José Goulão
ABRIL ABRIL
O caso da Dinamarca não é único. Trata-se apenas de mais uma via de atuação da espionagem global norte-americana e à qual outros governos «amigos», no interior e no exterior da OTAN, se submetem de bom grado.
Jornalistas de vários meios de comunicação corporativos e estatais europeus confirmaram de nove fontes diferentes que a Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos recorre aos serviços secretos militares da Dinamarca para espionar dirigentes e altos funcionários de países da União Europeia, designadamente França, Alemanha, Suécia, Noruega, Holanda e do próprio governo dinamarquês.
O assunto não é novo, obviamente, embora seja tratado como tal. O que fica por apurar é a extensão, profundidade e alcance deste mecanismo agora comprovado e denunciado: a investigação incidiu sobre um documento resultante de uma simples situação numa gigantesca e ao mesmo tempo capilar malha de devassa. O conhecimento da verdadeira dimensão do escândalo será, porém, barrado porque irão prevalecer os «segredos de Estado», as «seguranças nacionais» e, no fim, os silêncios cúmplices. Que não tenhamos ilusões: procedeu-se a um brioso ato de denúncia, que não removerá obstáculos de monta no caminho da transparência. É como um piparote num carro blindado de última geração.
Conduzida pela televisão pública dinamarquesa DR, a investigação assenta nas informações prestadas por nove fontes diferentes que tiveram acesso ao chamado Relatório Dunhammer, um documento do governo dinamarquês sobre a colaboração entre a NSA norte-americana e os serviços secretos militares de Copenhaga, Forsvarets Efterretningstjeneste (FE), na espionagem de membros do governo dinamarquês, dirigentes, deputados e altos funcionários de países da União Europeia como a França, Alemanha, Holanda, Suécia e Noruega. O relatório incide sobre fatos passados entre 2012 e 2014, incluindo vigilância de telefones, celulares e tráfico de internet dos espiados, em nível público e privado.
Estranho hiato de cinco anos
As fontes revelam que o governo da Dinamarca tem conhecimento da situação pelo menos desde 2015. Porém, só demitiu a chefia do FE em 2020, um período de cinco anos que levanta, por si só, justificadas suspeições e interrogações. Foi precisamente no Outono de 2020 que a imprensa dinamarquesa começou a ventilar com alguma insistência a colaboração entre a NSA e o FE na espionagem de empresas públicas e militares do país, associando então a circunstância à OTAN e remetendo até para a sua rede clandestina Stay-Behind, conhecida também como Gládio – a designação do ramo italiano.
Para a OTAN, oficialmente esta estrutura terrorista clandestina criada originalmente pela CIA nunca existiu, apesar de ter sido desmontada publicamente pelo primeiro-ministro italiano, Giulio Andreotti, no Verão de 1990. Não será ilógico deduzir que o que «nunca existiu» para a OTAN, mas foi real em vários países da aliança, incluindo a Dinamarca, tenha continuado a existir depois de 1990, da mesma maneira que a própria Aliança Atlântica se manteve – duplicando até o número de membros – apesar de terminada a Guerra Fria.
As declarações escandalizadas proferidas agora por dirigentes como Merkel e Macron e nas quais exigem explicações à Dinamarca e aos Estados Unidos são atos inconsequentes para consumo público. Mais do que ninguém, os próprios conhecem a realidade, por inerência do sistema em que se movem e pelo menos desde que Edward Snowden, ex-consultor da NSA, explicou em 2013 como a agência trabalha na devassa das vidas de cidadãos, empresas e Estados, mesmo aqueles que são «amigos».
«Os Estados Unidos nunca espionaram os seus amigos», jurou – e mentiu – o presidente Barack Obama, em 2013, depois das denúncias feitas por Snowden. Ao que Merckel respondeu então – parecendo agora não se lembrar disso – que «os amigos não espionam amigos».
Naturalmente, comportamentos destes políticos não podem ser levados a sério quando o objetivo é tentar chegar tão fundo quanto possível na investigação do fenômeno. Mais do que vítimas, são sobretudo cúmplices de uma realidade podre e assustadora que o senador norte-americano Frank Church já denunciava em 1976: «O aumento dos abusos dos serviços secretos reflete o enorme fracasso das nossas instituições básicas».
Dinamarca, capital Washington
Abundam as situações ilustrando que a Dinamarca é um dos países-âncoras das estratégias norte-americanas para influenciar a União Europeia, frequentemente através de práticas divisionistas, e mantê-la ferreamente subordinada ao comando da OTAN. São muitos os países-satélites de Washington no Leste da Europa mas, fora daí, a Dinamarca é um dos que mais se submete a esse estatuto entre os membros antigos da Aliança Atlântica.
Há poucos dias terminou em Copenhagen uma das «cúpulas da democracia» promovidas pela Fundação Aliança para as Democracias, entidade constituída em 2017 com sede na capital dinamarquesa e dirigida pelo ex-secretário-geral da OTAN, o fundamentalista neoliberal e atlantista Anders Fogh Rasmussen. Tendo como patrono e uma das figuras de referência o atual presidente dos Estados Unidos, Joseph Biden, a Aliança para as Democracias é claramente um instrumento das guerras híbridas – e convencionais – promovidas pelo complexo militar-industrial norte-americano. Na sua recente cúpula a fundação convidou como oradores o ministro dinamarquês dos Negócios Estrangeiros, a presidente da Eslováquia, o ex-chefe de segurança nacional de Trump, Henry McMaster, a chefe do regime secessionista de Taiwan, agitadores «pró-democracia» de Hong Kong, o «presidente interino» da Venezuela, Juan Guaidó, e a chefe da oposição «pró-democracia» da Bielorrússia, Svetlana Tsikhanovskaia. A fina flor da conspiração terrorista montada em Washington.
A Dinamarca cedeu também o seu território autônomo da Gronelândia, para funcionamento de uma base militar norte-americana, estratégica para a pressão sobre a Rússia e o domínio de uma região cada vez mais inflamada como é o Ártico.
A estreita cooperação entre a NSA e os serviços secretos militares dinamarqueses faz todo o sentido nestes cenários de afirmação atlantista. A imprensa de Copenhagen situa o início da atual fase de colaboração no ano de 1992, através de um acordo estabelecido entre o presidente William Clinton e o então primeiro-ministro dinamarquês, o social-democrata Poul Nyrup Rasmussen.
Entre os efeitos conhecidos desta aliança avulta, por exemplo, o viciado concurso para aquisição de aviões de guerra pela Dinamarca, que terminou com a escolha dos norte-americanos F-35 em detrimento da indústria europeia. De notar que na lista das instituições espionadas pelos Estados Unidos através da Dinamarca se encontram a indústria militar deste país e também o setor militar da sueca Saab.
Gládio, Absalon e a mão escondida da OTAN
A circunstância de a imprensa dinamarquesa associar estes episódios de espionagem ao funcionamento da rede clandestina Stay-Behind da OTAN também segue a ordem natural das coisas, tanto no tempo como nos fatos.
Quando Rasmussen e Clinton estabeleceram as bases de subordinação dos serviços secretos militares dinamarqueses à NSA ainda estava bem vivo em Copenhagen o escândalo desencadeado em 1991 com a denúncia da existência de um ramo dinamarquês da rede terrorista clandestina da OTAN conhecida como Gládio. Segundo o Ministério da Defesa de Copenhagen, esse braço do Stay-Behind, designado Absalon, teria sido extinto em 1989, transitando a sua funcionalidade precisamente para os serviços militares Forsvarets Efterretningstjeneste (FE).
Não se tratou, portanto, de uma extinção, mas sim de uma transferência. Quanto ao significado operacional dessa mudança, o silêncio é total. O ministro dinamarquês da Defesa então em funções, Kund Engaard, afirmou que «parte da informação sobre a operação dos serviços secretos em caso de ocupação é material classificado, mesmo altamente classificado, e estou proibido de o revelar ao Parlamento».
Segundo a história não autorizada das redes terroristas clandestinas da OTAN, o seu objetivo era o de evitar as invasões soviéticas – actualmente substituídas pelas invasões russas – e também o de impedir partidos comunistas e outros da esquerda consequente de chegarem à esfera de poder em países da OTAN. Na concretização destes objetivos destaca-se o assassinato do primeiro-ministro italiano, o democrata-cristão Aldo Moro, em 1977, quando aceitou a integração do PCI na maioria parlamentar de apoio ao seu governo. Por outro lado, permanecem obscuras – o que é significativo ao cabo de 35 anos – as circunstâncias do assassinato do primeiro-ministro sueco Olof Palme em 28 de fevereiro de 1986, às vésperas de se deslocar a Moscou.
A história e o tratamento dos partidos comunistas e de esquerda nos países da OTAN e o crescimento gradual da extrema-direita em todo o espaço atlantista são compatíveis com a operacionalidade de serviços extremistas dentro da OTAN, clandestinos ou, no mínimo, secretos. Daniele Ganser, investigador do Centro de Estudos de Segurança de Zurique (Suíça) e autor de As Guerras Secretas da OTAN, explica neste livro, a propósito do braço dinamarquês Absalon da rede Stay-Behind, que «tal como em todos os países da Gládio, na Dinamarca também o exército secreto foi integrado nos serviços secretos militares, FE».
Perguntem a Biden
Um episódio, um país, um curto período de dois anos, um determinado grupo de alvos espiados. É o que temos do mais recente escândalo de espionagem, cujo destino é a perda de fulgor com o correr dos dias antes de se desvanecer… até ao próximo – que será de novo um caso tratado isoladamente, como se a espionagem de todos e cada um de nós pela NSA e as 16 gêmeas não fosse uma permanente razão de Estado norte-americano, portanto imperial.
Edward Snowden, com a sua experiência adquirida no terreno, sugere aos «escandalizados» dirigentes europeus que aproveitem a viagem de Joseph Biden à Europa, dentro de uma semana, para lhe pedirem explicações pessoalmente, porque o actual presidente norte-americano está perfeitamente dentro da matéria. O que restará então do «escândalo» de espionagem que possa ser consultado nas declarações finais da reunião do G-7 na Cornualha ou da Cimeira da OTAN em Bruxelas? Certamente nada, a não ser palavras de entendimento e compreensão: porque, tanto no caso presente como na espionagem em geral, estes espiões e estas suas «vítimas» específicas têm muito mais interesses em comum do que querelas, circunstância que impõe a conveniente cobertura de silêncio, e até de clandestinidade, se for caso disso.
Será a Dinamarca caso único, por muito que funcione como um dos países mais manipulados pelos Estados Unidos na Europa Ocidental?
Só os mais ingênuos poderão acreditar nisso. Trata-se apenas de mais uma via de atuação da espionagem global norte-americana e à qual outros governos «amigos», no interior e no exterior da OTAN, se submetem de bom grado. Quanto ao resto, há mil e uma maneiras de as agências norte-americanas espiarem universalmente, num processo que refina todos os dias. O canal dinamarquês é mais um a engrossar um rio caudaloso, cada um com sua missão e guiado por objetivos específicos. Formando assim uma teia indecifrável.
No caso da Dinamarca, como explica Thomas Wegener Friis, identificado como especialista dinamarquês em serviços secretos pela RDW (Radio Deutsche Welle) da Alemanha, o governo e os serviços secretos militares fizeram «uma escolha sobre quais os parceiros com quem trabalham mais proximamente e tomaram uma decisão clara de trabalhar com os norte-americanos contra os seus parceiros europeus». Mas sempre, acrescente-se, sob o chapéu da OTAN.
Patrick Sensburg, presidente da comissão para investigar o assunto criada no Parlamento alemão e membro da CDU de Merkel, seguiu pela mesma senda do pragmatismo: «Nada disto é sobre amizade ou sobre aspirações ético-morais – é apenas sobre interesses».
Interesses de alguns, uma pequena casta, que comandam os de todos nós.
José Goulão, Exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril
Imagem: Manifestação contra a espionagem global montada pela Agência Nacional de Segurança (NSA) dos Estados Unidos da América (EUA), denunciada pelo seu ex-funcionário Edward Snowden. Hanover, Alemanha, 29 de Junho de 2013.
Créditos: Peter Steffen / AP/dpa