Entrevista do Momento: Mauro Iasi

imagemPor Milton Pinheiro

Jornal O Momento – PCB da Bahia

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB.

O MOMENTO – A presença de amplos setores populares e de esquerda nas ruas pode modificar a relação de forças na conjuntura brasileira?

MAURO IASI – Na correlação de forças em uma conjuntura um fator fundamental é a capacidade de determinar o cenário no qual se desenvolverão os fatos. Quando o cenário é o Parlamento ou a CPI, os segmentos populares já saem em desvantagem. Trazer para as ruas a contradição, expressar nossos interesses é muito importante, nem que seja para diminuir o espaço de ação dos inimigos.

Acredito que a força dos atos de rua que temos visto já produzem um efeito na correlação de forças, no entanto, precisamos ver os outros atores envolvidos e seus recursos de poder, como a grande mídia, os militares, o bolsonarismo, para realizarmos uma análise objetiva. A força dos atos ainda não foi suficiente para deslocar o eixo da contradição para fora dos espaços institucionais, sejam eles a CPI ou as eleições de 2022.

O MOMENTO – Como podemos analisar o papel do bolsonarismo na luta política em curso?

MAURO IASI – O bolsonarismo não pode ser reduzido à figura patética do miliciano no poder, ele expressa algo mais profundo na sociedade brasileira, o caráter da burguesia em nosso país, os setores médios reacionários, os interesses do grande capital. Se não fosse por estas bases o miliciano já teria caído faz tempo.

A extrema direita, que encontrou um porta voz e uma personificação no triste personagem, apoia sua força em um grande ressentimento que se apresenta em um duplo sentido. De um lado temos uma classe dominante subordinada aos interesses do imperialismo, uma ridícula minoria em um oceano de miséria que teme a revolta do povo. De outro, uma massa de explorados que deixou de se ver como classe, manipulada por uma ideologia de livre concorrência na qual está condenada a perder sempre e tem que culpar alguém. No meio uma classe média inculta e instável que inveja a minoria rica e teme os pobres.

O bolsonarismo é a expressão política deste ressentimento que se apresenta obscurantista, irracional, preconceituoso e violento. O elogio da força, seja do mito militar ou dos aparatos policiais, são representativos desta impotência ressentida e a da busca de uma solução golpista para os impasses que em grande medida o bolsonarismo não compreende.

O MOMENTO – Os testes de força que o agitador fascista, Jair Bolsonaro, realiza em suas aparições nos cercadinhos da política confirmam o caminho da ruptura institucional?

MAURO IASI – Bolsonaro sempre desejou uma ruptura e deixou claro isso em inúmeras oportunidades, tanto antes das eleições como no governo. Ele alimenta um desejo de repetir o golpe de 1964 porque o julga, como a ideologia militar que o impregnou, salvador. Sua tática é a provocação e o tencionar dos limites para provocar uma reação. É um provocador. Entretanto, toda ideologia implica em uma dose de autoengano. Ele realmente se acredita como um salvador, um messias, mas o golpe não é apenas a expressão delirante de um personagem autoritário e desclassificado, é um recurso a serviço de interesses muito precisos na luta de classes.

Em 1964, por exemplo, enquanto a ideologia agitava o fantasma do perigo vermelho e vociferava um anticomunismo típico da guerra fria, o que vimos foi um alinhamento da burguesia brasileira, do latifúndio e do imperialismo para manter o modelo econômico e seus privilégios. Hoje o grande capital, que apoia e sustenta o governo do miliciano, não aposta em uma solução de força que rompa com a institucionalidade.

Fundamentalmente por dois motivos: primeiro esta institucionalidade lhe serve e está longe de colocar em risco seus interesses, segundo que o golpe bolsonarista não traria estabilidade institucional, mas pode abrir um cenário imprevisível que não interessa aos setores dominantes.

O MOMENTO – O avanço da CPI da Covid 19 na identificação de crimes cometidos pelos dois eixos da pequena política brasileira, Centrão e Forças Armadas, pode gerar um movimento político mais forte na perspectiva do impedimento do presidente?

MAURO IASI – Acredito que o que prevalece hoje é a intenção dos segmentos dominantes em desgastar o governo com vistas a produzir uma alternativa eleitoral em 2022. Entretanto, a gravidade dos crimes, a reação das ruas e a queda vertiginosa da popularidade do miliciano podem criar uma situação onde o impedimento acabe por se impor. O problema é o calendário e as alternativas. Afastar o criminoso exige, por parte das camadas dominantes, a certeza de uma transição sob controle, seja com Mourão ou outra alternativa. Não se sabe qual a reação de Bolsonaro se ficar claro que será afastado, uma vez que mesmo sem condições políticas de consolidar seus planos (exatamente pela posição do grande capital e das próprias forças armadas), o miliciano pode tentar reagir com as forças que dispõe e isso é imponderável.

Outro fator é o tempo, uma vez que, chegando claramente a um crime de responsabilidade (e nem precisávamos da CPI para isso), deve-se apresentar denúncia, abrir um processo de impeachment, aprová-lo no parlamento e levá-lo adiante. Mesmo supondo a boa vontade de fazê-lo, este processo leva um tempo e já estaríamos em ano eleitoral, ou mesmo durante o processo eleitoral. Parece-me que prevalece a tese da fritura lenta para inviabilizar o bolsonarismo eleitoralmente enquanto se busca uma alternativa.

O MOMENTO – A ameaça de golpe dos militares e do presidente pode se efetuar no sentido tradicional, ou seja, com possibilidade de fechamento institucional e um Estado de exceção?

MAURO IASI – Não creio, pelos motivos que apresentei. O golpe de 1964 foi apoiado diretamente pelo imperialismo e teve respaldo da grande burguesia e do latifúndio, além do apoio de amplos setores médios assustados com a propaganda anticomunista. O principal fator que faz com os cenários sejam diferentes são, ao meu ver, que em 1964 a institucionalidade e seu funcionamento normal colocavam em risco os interesses dominantes e hoje não. O grande capital precisa muito mais de estabilidade institucional para impor seus interesses do que uma ruptura.

O MOMENTO – Tem um setor da esquerda que se movimenta na luta política tendo como horizonte as eleições de 2022. Essa postura pode comprometer as tarefas atuais da classe trabalhadora?

MAURO IASI – Considero esta postura um equívoco. Estamos em um momento no qual há uma disputa no seio dos segmentos dominantes provocada pelo caráter do atual governo que aposta na radicalização do conflito visando uma ruptura institucional. Entretanto, esta divergência não é a respeito da pauta do grande capital (a reforma administrativa e tributária, a reforma da previdência, o arrocho sobre os trabalhadores, o saneamento financeiro do Estado, desmonte das políticas públicas etc) e sim sobre os delírios rupturistas e sua grossa incompetência em exercer de forma civilizada o papel de presidente da República.

Para nós não se trata de encontrar uma figura mais civilizada para executar a mesma pauta, seja na direita ou na centro-esquerda, mas de criar as condições para combatê-la e procurar reverter as medidas tomadas contra os trabalhadores e o país.

Este é o momento de radicalizar as lutas e colocar as demandas das massas populares na pauta, diminuindo o espaço para acordos e negociações de governabilidade em qualquer eventual futuro governo. As eleições serão um cenário de luta importante em 2022, mas sua qualidade depende em grande medida das lutas que formos capazes de empreender ainda este ano.

O MOMENTO – Quais são os cenários possíveis diante das fortes tensões do atual cenário da luta de classes, o que fazer?

MAURO IASI – Os cenários que se abrem na atual conjuntura política brasileira poderiam ser resumidos assim. No primeiro cenário os segmentos das classes dominantes que apostam no esvaziamento de Bolsonaro, conseguiram neutralizar seus arroubos golpistas e lograriam constituir uma terceira via. Neste cenário, inicia-se um ataque à candidatura da centro-esquerda, hoje favorita, buscando reunificar a direita, a extrema direita e o centro pelo apelo antipetista.

Este cenário pressupõe que a direita brasileira pactue o isolamento do atual presidente retirando deste a capacidade de reação diante de sua possível punição ou desidratação eleitoral. O problema é que Bolsonaro se prepara para este cenário ameaçando uma ruptura, resta saber se de fato tem apoio em aparatos militares e policiais para tanto, assim como respaldo de segmentos de massa, ou estamos diante de um blefe.

O segundo cenário é que o desgaste não é suficiente para retirar o atual presidente da disputa eleitoral, nem a ofensiva jurídico e política resulta em impedimento, ao mesmo tempo em que a esperada terceira via não se efetiva. Este cenário abre duas possibilidades: de um lado uma blocagem da reação em torno de Bolsonaro (como em 2018) para evitar a volta do petismo, ou um pacto com Lula para que este seja de fato a “terceira via” (coisa que ao que tudo indica o líder petista parece estar disposto).

Seja qual for o cenário, o papel das manifestações de massa é essencial. Não estamos preparados para enfrentar uma ruptura, assim como a esquerda tem mais dificuldades em se apresentar como alternativa eleitoral do que a própria terceira via. Nesta direção é essencial que o processo de luta neste ano encurte o espaço das manobras e acordos e coloque com clareza os interesses populares na pauta política. As lutas nos fortalecem para o enfrentamento contra a extrema direita, nos ajudam a precaver das manipulações da direita que tentará se apresentar com novo roupagem para passar a mesma pauta reacionária, da mesma forma que colocam as massas e os trabalhadores como força política que não pode ser ignorada pela centro-esquerda em seus anseios conciliatórios.

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