Nós, eles e a formação da consciência crítica

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Por Ian Kelvin Mattos Costa

Em novembro de 2021 foram realizadas as provas do Enem. Após denúncias de tentativas de censura no Inep através do Ministério da Educação, semanas antes da aplicação do exame, 37 funcionários do órgão responsável pela elaboração da prova pediram exoneração. Alguns relataram que o Governo Federal mandou substituir mais de 20 questões da prova. Clara tentativa de censura ideológica nas questões que eram relacionadas a conteúdos sociopolíticos e socioeconômicos dos últimos cinquenta anos no país. Hoje, janeiro de 2022, o assunto parece que já foi esquecido. Considerando que a educação está umbilicalmente ligada aos processos políticos, fica explícito em tantos níveis que estamos presenciando a maior ofensiva contra a educação, a ciência e a pesquisa nas últimas três décadas, pelo menos.

Está em curso um ataque consciente e muito bem estruturado pelo controle da burguesia sobre a educação na sua totalidade, com seus conglomerados empresariais do ensino privado mandando e desmandando dentro do Ministério da Educação. Em resposta às críticas às alterações nas questões do exame, Bolsonaro disse que a prova teria “a cara do governo”, assumindo que interveio no processo, com o discurso de sempre dizendo que não quer uma prova ideológica, mas técnica. Discurso esse em que não se sustenta o argumento contra ideológico, pois ideológica é a sua defesa, ficando evidente a contradição do discurso.

Assim é aplicada com todas as forças essa reprodução ideológica disfarçada de natural, inata, contra “a ideologia que está aí”. É uma ideologia maquiada porque traz para si uma face naturalizada. Ao apontar que o “outro” é ideológico, o sentido que a burguesia toma para a sua própria ideologia é de: o que é ideologia é construído, se é construído é inventado, logo, não é natural. E a classe burguesa, com seu maior representante, coloca em prática a reprodução desta ideologia não ideológica, em um processo de legitimação. Se me coloco como oposto ao ideológico, ou seja, ao inventado, eu seria o “natural”. Nesse sentido, a intenção é naturalizar suas formas de pensamento, seus valores, crenças, comportamentos e, é claro, seu domínio. A ideologia necessita de legitimação para a ação, cobrindo um espaço variado e afirmando-se como sistema justificativo de dominação.

Lukács estabelece a relação da ideologia com a consciência de classe. Essa ideologia burguesa oculta a essência real da sociedade capitalista, oculta seus processos fundamentais de constituição das relações que lhe dão suporte, tornando-se também uma necessidade vital dessa classe e a sua reprodução enquanto tal porque, para a burguesia, devem ser cada vez menos nítidas as suas contradições. A ideologia burguesa também é expressão da luta de classes. Nesse caso, para não serem expostas suas vísceras e contradições criadas por ela mesma, as quais submetem a classe trabalhadora e as massas populares ao pauperismo cada vez mais aprofundado na dinâmica de concentração do poder político, concentração de terra e concentração de riquezas.

Quanto mais ocorre o aprofundamento do sistema capitalista, mais a burguesia precisa controlar as ferramentas de desenvolvimento do pensar da sociedade, o controle ideológico, pois as contradições estão cada vez mais expostas na realidade material e nas relações sociais. Assim, a dominação ideológica nunca é o suficiente para maquiar, disfarçar e iludir as massas por completo e, por isso, sempre se avança na dominação em todas as esferas sociais, sendo cada vez mais explícita e aprofundada, às vezes até de forma clara, tomada pelo desespero. O próprio exemplo disso é Bolsonaro e seu ciclo de incontáveis barbaridades sendo naturalizados e legitimados pela burguesia, a mídia e o Partido Fardado.

Assim, manipulando uma distorção do real, a burguesia age fazendo de tudo para garantir a manutenção e reprodução total de seus domínios, por meio dos quais suas expressões são impostas à sociedade, naturalizadas através das instituições sociais, deslegitimando e transformando todo valor, pensamento, produção intelectual, científico, artístico e qualquer outra expressão desenvolvida pelas relações sociais da classe trabalhadora e as massas. O que não pertence à burguesia é tomado para si através de um processo de apropriação de tudo, como discursos de diversidade, inclusão, veganismo, sustentabilidade etc. E os setores da esquerda acabam adotando os conceitos que na aparência são progressistas, mas na essência só servem para conduzir uma disputa limitada dentro do sistema e reproduzir um comportamento que não vá afetar o processo de desenvolvimento capitalista, pois muitas vezes acabam se dedicando a uma briga superficial e limitada, de pura aparência e perdendo o foco e a organização para a luta de classes real, pela produção da realidade material que condiciona todas as outras produções e determina a nossa vida. O argumento ideológico maquiado de natural, de “não ideologia”, só serve para promover a manutenção, reprodução da classe dominante no sistema capitalista e, assim, manter a dominação das mentes e dos corpos da classe trabalhadora e das massas.

Também é por isso que a educação no capitalismo é transformada em uma das principais ferramentas de controle ideológico, na busca incessante de garantir a manutenção da reprodução comportamental e ideológica que legitime a dominação dos meios fundamentais de produção. É por isso que o capitalismo e suas classe dominante têm a necessidade vital de garantir a força de trabalho empobrecida e alienada, no máximo com algumas qualificações técnicas para trabalhos mais específicos, mas sempre com a submissão à ideologia burguesa como meio de preservar as relações presentes. Como Althusser afirma, a educação é mais um aparelho repressivo do Estado e que hoje, cada vez mais, pertence aos grupos privados, material e ideologicamente, atuando como ferramenta de conservação da dominação e da coesão social para manter a ordem do capital e sua reprodução.

Voltando à questão do Enem, não me estenderei aqui sobre o quanto a prova é problemática. Já sabemos que é um processo injusto e que sua funcionalidade é precária para a classe trabalhadora e o acesso das massas à educação superior, perpetuando a reprodução da desigualdade. O fato é que não foi de muita efetividade a intervenção do Bolsonaro e seus lacaios nas provas. As questões foram substituídas por questões do mesmo Banco Nacional de Itens (BNI). Foi uma prova normal dentro dos padrões do exame. Nas Ciências Humanas caíram questões com Engels, Descartes, Vargas, Nietzsche, Platão, Questão Indígena, Impactos Climáticos etc. Na redação, o tema foi “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”. O tema promove uma discussão ótima e reforça ainda mais a urgente defesa do ensino de Ciências Sociais, pois não é possível estudar e entender minimamente conceitos como “cidadania” sem ter Sociologia na educação básica e no Ensino Médio.

A educação pauperizada é reflexo da ação da burguesia no controle do ensino brasileiro. É o apagamento do mínimo que resta de uma educação que busca a promoção da consciência crítica e reflexiva sobre os processos sócio-históricos que resultam na realidade na qual estamos inseridos. É inadmissível esse “Novo” Ensino Médio que, em alguns lugares, terá ensino como “projeto de vida” e “empreendedorismo”. Isso é um empobrecimento brutal do pensamento crítico. É preciso defender o campo de reflexão e da criticidade na educação. Só o ensino de História, Sociologia e Filosofia possibilita o estudo da realidade, promove a desnaturalização e desmistificação de questões impostas à sociedade de forma naturalizada, como a ideologia burguesa que vimos acima. (Sim, esse é o problema…)

Pois a educação sociológica, histórica e filosófica é extremamente ruim para a burguesia, pois quanto mais contraditório é seu sistema, mais expostas ficam suas vísceras e assim precisam se proteger cada vez mais, embrutecendo o ensino, empobrecendo os conteúdos e destruindo as instituições públicas de ensino. Legitimam-se os grandes setores privatistas da educação ao fortalecer os conteúdos que assegurem a limitação do pensar das crianças e jovens, reproduzindo com todas as forças a ideologia burguesa, através da ausência do ensino crítico, até o surgimento do ensino de “empreendedorismo” e “projetos de vida”, em um país onde parte das crianças e adolescentes vão para a escola de estômago vazio.

Este mesmo governo está na luta por abrir a possibilidade do ensino domiciliar infantil, no qual já apareceram empresas “especializadas em ensino domiciliar infantil” e logo tentará isso com o ensino dos adolescentes. O Enem é a maior expressão do “depósito bancário” do ensino brasileiro. Paulo Freire diz que essa é a educação conteudista formadora de seres passivos e adequada ao sistema vigente, sem expansão crítica da consciência nem reflexão sobre a sua realidade. Quanto mais adaptados à concepção bancária, mais educados e adequados a esse sistema explorador. Então é a luta da burguesia para cada vez mais promover a dominação e estagnação da classe trabalhadora e das massas, retirando toda possibilidade de transformação da sua realidade, transformando-nos em seres sociais apáticos, trabalhadores explorados, famintos, sem a chance de viver uma vida digna e explorar suas individualidades. Exterminando com qualquer perspectiva de futuro e qualquer chance de lutar por uma realidade igualitária de desenvolvimento humano para todos.

Nesse sentido, é urgente promover a consciência crítica sobre a realidade, gerar debates e questionamentos acerca dos assuntos que estão presentes na nossa vida, questões que fazem parte do nosso cotidiano, como o próprio acesso à cidadania, como caiu no tema da redação do Enem. Pensar a desigualdade que nos cerca e nos consome, a ausência dos direitos básicos como moradia, alimentação, direitos humanos e todas as questões presentes nas nossas relações sociais, históricas, as quais nos constituem e nos farão construir nosso futuro. E é tudo isso que a burguesia não quer que aconteça.

Por isso afirmo que as tentativas de “alterações” nessas provas do Enem são apenas uma expressão de uma disputa no interior do Estado burguês em dominar as ferramentas constitutivas da consciência social, a educação, que vem de anos sendo disputada por empresas privadas neoliberais e neoconservadoras com apoio até das Igrejas evangélicas, defendendo educação domiciliar, por exemplo. É mais uma das áreas dominadas e de mais importância para a burguesia. Por isso o Ministério da Educação do governo Bolsonaro é um setor importante para a dominação, manutenção e reprodução da ideologia burguesa difundida como normal, natural, não-ideológica. Os outros, os que não são reais, os diferentes são inventados, ilegítimos e por isso não devem ter nenhum tipo de autonomia ou controle sobre sua realidade, ou em último caso não devem existir.

É nossa obrigação repensar o processo da ação social de “educar”. Coloco entre aspas porque vejo como uma prática na qual não podemos transformar em atividade para depositar informações em uma “vasilha vazia”, como diz Freire. Como se apenas tivéssemos o trabalho de conscientizar a classe trabalhadora e, pronto, está preparada para assumir o seu “ser revolucionário” e se colocar em ação em busca da transformação da realidade.

O papel dos educadores, e o educar no qual me refiro está em conjunto da população, é criar possibilidades de trocas culturais e políticas mediadas por cidadãos inseridos na luta revolucionária, através de projetos pedagógicos em comunhão com cidadãos não inseridos na luta organizada. A diferença é apenas essa. A perspectiva mais aprofundada sobre o objeto real que estamos combatendo, e assim, em conjunto com as massas, lado a lado, promover esse autorreconhecimento, a partir desta troca. O educar não está limitado aos muros institucionais do Estado burguês. Educação e ensino não são apenas o que passa pelo Ministério da Educação. Existem e podem existir alternativas para desenvolver e aprimorar a consciência de classe.

Pois no Estado burguês esse controle da educação é legitimado através do discurso quase que missionário de setores privatistas. Humanitarismo deslavado com uma superioridade classista em que “nós” vamos humanizar os “outros”, como há tempos as mesmas noções se aplicavam aos civilizados e aos “bárbaros”, “nativos” e “selvagens”. Transformando-os em bons selvagens ou eliminando-os. A classe trabalhadora não precisa ser civilizada ou passar por processos de “humanização”. Não precisa ter um molde ideológico comportamental nas suas relações sociais nem nas suas expressões e ideologias.

O que a classe trabalhadora brasileira precisa é de consciência crítica sobre a sua realidade, coisa que o PT deixou de lado em mais de uma década de governança. A classe trabalhadora pode e deve ter o domínio sobre sua realidade, saber quais as categorias que a constituem. Por isso afirmo que é nosso dever promover e defender toda e qualquer chance de desenvolver um projeto educacional que possibilite esse processo de conscientização e que permita à classe trabalhadora e às massas tornarem-se atores e autores da sua própria história, conscientes e aptos a transformar e produzir sua realidade para si.

A educação tem um grande poder estratégico na luta contra a ideologia burguesa e contra o capitalismo. Através da ação educacional, cultural, crítica e política podemos promover o estranhamento e a desnaturalização do pensamento burguês e aqui, repito: não necessária e exclusivamente através do processo sistematizado de educação nas instituições de Estado. Podemos trabalhar nas possibilidades de construção de outras dinâmicas para fomentar a prática educacional com a classe trabalhadora, através de educação popular, círculos culturais, ações sociais etc.

De alguma forma precisamos nos dedicar a este processo mútuo de inserção e de acolhimento das massas, promover a troca cultural, a desnaturalização do estado de coisas presentes. Como Paulo Freire diz, “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho, os homens se libertam em comunhão”. O papel de uma educação revolucionária não é fazer uma propaganda da liberdade, não é depositar nas mentes das massas uma crença dessa tal liberdade, tampouco apenas conquistar sua confiança. Como Lênin apontou, para vencer a resistência dessas classes só há um meio: encontrar na própria sociedade que nos rodeia, educar e organizar para a luta, os elementos que possam — e, pela sua situação social, devam — formar a força capaz de varrer o velho e criar o novo.

Nosso papel, enquanto educadores revolucionários, é deslegitimar e desnaturalizar a ideologia burguesa, alavancando a consciência sobre a luta de classes e ao mesmo tempo promovendo, em conjunto, a consciência crítica da classe trabalhadora, visando um único processo: a superação da opressão e da exploração. Procurar formas de inserir as classes oprimidas na ação prática do processo de desenvolvimento da sua consciência, em que irá olhar para si, pensar em si e fazer para si. Não precisamos de uma educação que promova a incorporação ao sistema, mas sim uma educação que faça com que seja possível reconhecer-se e organizar-se.

É preciso mover-se em conjunto com a classe trabalhadora em direção ao reconhecimento enquanto classe social. É necessário elaborar processos práticos de construção da consciência de classe, das suas próprias ideologias e expressões, reconhecendo a ideologia burguesa e, assim, somente através de uma educação política sobre a realidade na qual estamos inseridos, é que vamos adquirir a consciência sobre todos os tipos de violência, mazelas e opressões e finalmente construir a possibilidade de obter uma ampla adesão e força para a luta em que iremos nos livrar da dominação ideológica burguesa sem depender das falsas generosidades de quem comanda a educação capitalista e de certos setores da esquerda que estão inseridos no processo de legitimação burguês. É necessário nos tornar conscientes e aptos para o autorreconhecimento e assim para a organização e a prática revolucionária. O pensamento revolucionário conscientizador e combativo contra a ideologia capitalista presente deve estar inserido em todas as esferas das relações sociais, lado a lado com o povo buscando a ampliação da percepção crítica e consciente das massas oprimidas.

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