Sobre a inflação dos alimentos e a taxa de juros
Por Eduardo de Oliveira da Costa – militante da UJC – SC
A perversidade do discurso liberal não é desconhecida. Buscando afirmar os interesses burgueses, a doutrina dos economistas da classe dominante falsifica a realidade e é capaz de mascarar o fundo político do discurso, se utilizando de uma roupagem que se pretende somente técnica, ainda que seus representantes possam muitas vezes ver alguma coerência nessas teorizações. A acumulação de capital é a lei irrevogável, e os princípios e formulações podem se transformar conforme exigir este imperativo, como nas crises estruturais do capitalismo, de sorte que a doutrina burguesa pode surgir com um novo caráter e uma nova verdade, com princípios que trazem uma certa novidade, mas cujo horizonte permanece o mesmo.
O processo de transformações e reformas neoliberais, enquanto resposta encontrada pelo capitalismo no interior da sua crise estrutural surgida a partir dos anos 70, estabeleceu a lógica do processo de acumulação de capital que define o capitalismo contemporâneo, ou seja, a forma específica assumida por esse modo de produção nas recentes décadas. Como comenta Carcanholo [1], o programa neoliberal define-se por “uma estabilização macroeconômica (controle inflacionário e fiscal) como pré condição, ora com políticas ortodoxas, e em alguns momentos até com políticas heterodoxas (de regime cambial fixo, ou “quase fixo”, por exemplo). Além disso, o programa afirma que a retomada dos investimentos e do crescimento só é possível após uma fase de reformas estruturais, que englobaria: abertura comercial e financeira, desregulamentação dos mercados (principalmente o de trabalho e o financeiro), amplo processo de privatização e liberalização dos preços”.
Com efeito, se num momento anterior havia algum tipo de estratégia desenvolvimentista nas economias periféricas – que, diga-se de passagem, nunca levou à superação da dependência – o novo padrão adotado elimina a noção de uma diversificação industrial para países “atrasados” e insere estas economias naquilo que Jaime Osório chamou de “el nuevo patrón exportador latinoamericano” [2], baseado num amplo processo de reprimarização de exportações que estabelece o novo modelo do capitalismo periférico. A partir das transformações contidas nas diretrizes neoliberais, portanto, é estabelecido um processo crescente de especialização produtiva que tem colocado cada vez mais a reprodução e acumulação de capital das economias capitalistas dependentes latino-americanas no setor primário. Podemos pegar como exemplo um processo de rigorosa abertura comercial que expõe setores da indústria nacional a condições desfavoráveis frente à concorrência internacional, desse modo participando da criação de um cenário de desindustrialização crescente e de reestruturação da produção interna que insere a economia no tão mencionado padrão primário-exportador. Veja que mais do que tendência, trata-se de um imperativo. Sendo ou não de caráter mais progressista ou comprometido com políticas sociais, todos os governos brasileiros das recentes décadas reproduziram e em certos momentos aprofundaram o padrão neoliberal de desenvolvimento, inclusive no período petista. Reinaldo Gonçalves cunhou o termo “nacional desenvolvimentismo às avessas” para se referir à “desindustrialização, dessubstituição de importações; reprimarização das exportações; maior dependência tecnológica; maior desnacionalização; […]” [3] ocorrida no governo Lula. Como dizia FHC, “É exportar ou morrer”. Aprofunda-se a dependência e a superexploração da força de trabalho.
Note, esta condição estrutural da economia brasileira e que a situa no interior da divisão internacional do trabalho está entre os elementos fundamentais que permitem a conformação do nocivo atual cenário da inflação dos alimentos de consumo popular. A especialização produtiva das economias periféricas, visto que significa, a rigor, um processo de ampla reprimarização da produção e internacionalização dos bens utilizados no processo produtivo, tem como efeito a dependência da importação de insumos e bens de capital em geral, e portanto uma dolarização do preço das mercadorias, o que por si já permite um processo inflacionário diante da alta dos preços internacionais, mesmo para os alimentos que são produzidos e vendidos em território nacional, indicador da nossa vulnerabilidade. É necessário, ainda, levar em conta a política de preços de combustíveis, adotada pelo governo Bolsonaro, que busca paridade em relação ao mercado internacional. Ao mesmo tempo, evidenciando a separação entre as capacidades produtivas nacionais e as necessidades da população, aspecto estrutural das economias dependentes, uma parte considerável dos alimentos produzidos em solo brasileiro é priorizado para exportação – fomentada pelo governo Bolsonaro através de incentivos tributários –, o que implica na necessidade da importação e, novamente, do pagamento de preços dolarizados pelo bolso dos brasileiros.
Não raro encontramos no discurso liberal a apologia do combate à inflação via elevação da taxa de juros. De acordo com parte do manual burguês – há discordância, mesmo dentro do pensamento liberal –, a inflação, que seria decorrente da demanda agregada, poderia vir a ser controlada pela elevação da taxa básica de juros pelo Banco Central, reduzindo a demanda, e finalmente não estourando o teto da meta inflacionária, se possível.
No final do ano passado a mídia destacava de forma positiva a previsão de superávit primário para o setor público e continuamente ouvimos falar da importância do teto de gastos, tanto por parte destes por meio de seus “especialistas”, quanto pelo ministro Paulo Guedes, que recentemente destacou os gastos públicos “descontrolados” como “maior inimigo da República” [4], causa de hiperinflações. Enquanto isso, no dia 08 de dezembro do último ano o COPOM decidiu, por unanimidade, a elevação da Selic para 9,25% ao ano devido em parte ao aumento constante dos preços, como consta no site do BC, e já antevendo outro aumento de mesmo peso para a reunião seguinte do Comitê como via de combate à escalada acelerada dos preços [5].
Ao afirmar como imperativo o regime de metas inflacionárias, considerando residir a principal determinação da inflação no excesso de demanda, e assim buscando a estabilidade dos preços através da elevação dos juros, bem como na busca pelo superávit das contas públicas, o falatório ideológico oculta as determinações essenciais para a compreensão das razões de certas movimentações no interior do jogo político burguês e das causas fundamentais da diminuição do poder de compra da classe trabalhadora e do aumento da miséria. Ocorre que são retirados do centro do debate os temas da dependência e do subdesenvolvimento, aprofundadas nas últimas décadas pela administração neoliberal da economia, cujas diretrizes fundamentais já eram encontradas claramente definidas no programa de medidas do Consenso de Washington (1989).
Seria curioso, na verdade, que o atual cenário crítico da inflação no preço dos alimentos estivesse atrelado fundamentalmente a um excesso de demanda por estas mercadorias. Pelo contrário, os indicadores sociais recentes mostram justamente o contrário: o empobrecimento das camadas populares e da sua capacidade de consumo, tanto no que se refere aos salários reduzidos quanto no tema do desemprego e da informalidade galopante.
Diante da questão da inflação, o BC sob comando da elite burguesa lança mão do aumento da taxa básica de juros (SELIC). Não é desconhecida a impotência que o mecanismo nos tem oferecido, vide a escalada dos preços. O que não tem sido comentado com tanta frequência, no entanto, é a relação desse expediente adorado no manual burguês com a explosão do pagamento da dívida pública, paga com o dinheiro do trabalhador brasileiro. A taxa de juros, como sabemos, remunera os títulos da dívida pública, em grandíssima parte adquiridos em operações nada inocentes por grandes capitais e investidores, como no caso dos bancos por meio das “operações compromissadas”, denunciadas pela ACD, numa verdadeira farra com a riqueza do povo, concretizando o que anteviu Marx: “A dívida pública torna-se uma das alavancas mais poderosas da acumulação” [6]. Na última reunião do COPOM (16/03), o Comitê decidiu, por unanimidade, pela elevação da SELIC para 11,75% a.a. Na ata da reunião chega a ser destacado o cenário externo desfavorável decorrente do conflito Rússia-Ucrânia e seus impactos nos processos inflacionários que já estavam se acumulando, especialmente devido à elevação do preço das commodities no mercado internacional [7]. Não obstante, os temas da vulnerabilidade estrutural, do subdesenvolvimento e da dependência, ainda que no âmago do problema da inflação no Brasil e dos impactos do cenário e da crise internacional em solo subdesenvolvido, são naturalmente excluídos no discurso burguês, de um lado, e contraditoriamente ignorados por parte da esquerda, de outro.
Referências:
[1] CARCANHOLO, Marcelo Dias. “Dialética do desenvolvimento periférico: dependência, superexploração da força de trabalho e alternativas de desenvolvimento”. In: R. Econ. contemp., Rio de Janeiro, 2008.
[2] OSÓRIO, Jaime. Crítica de la Economía Vulgar – Reproducción del Capital y Dependencia. México: Grupo Editorial Miguel Angel Porrúa, julho, 2004.
[3] GONÇALVES, Reinaldo. Governo Lula e o Nacional-desenvolvimentismo às Avessas. 2011.
[4] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/12/guedes-diz-que-entorno-de-bolsonaro-barrou-reforma-administrativa.shtml
[5] https://www.bcb.gov.br/publicacoes/atascopom/08122021
[6] MARX, K. O capital. Livro I. Cap. 24, p.826.
[7] https://www.bcb.gov.br/publicacoes/atascopom