O desejo, a conjuntura e a luta de classes

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Por Mauro Luis Iasi

Blog da Boitempo

Fazer análise de conjuntura é algo arriscado. Mao Tsé-Tung nos dizia que há, pelo menos, três riscos comuns ao analisar uma determinada situação: a unilateralidade, o subjetivismo e a superficialidade. Uma conjuntura é um quadro complexo, uma síntese de múltiplas determinações. Desta maneira, o analista pode se ater a um dos aspectos (a unilateralidade) e não perceber as contradições, ou ainda, fixar-se naquilo que se torna mais visível (a superficialidade). Tanto em um como em outro desvio está presente o subjetivismo: escolher destacar uma vertente da conjuntura porque ela nos interessa ou nos seria benéfica, deixando de aprofundar a análise por temer que, das determinações mais profundas, revele-se um quadro distinto daquele que desejamos e que parecia se confirmar na superfície.

A conjuntura é uma totalidade inserida em totalidades mais determinantes: o período histórico, a particularidade histórica de uma formação social e as características de um modo de produção. É difícil captar a totalidade no momento de sua concretização, de sua mediação histórica na conjuntura. Estamos convencidos que essa mediação está na luta de classes, uma vez que é nela que se encontram concretizadas as determinações mais profundas da formação sócio-histórica e do modo de produção.

É impossível que o desejo não se apresente, pois não acreditamos em análises neutras ou no falacioso pressuposto da sociologia compreensiva da neutralidade axiológica. Somos militantes e nossa análise é um instrumento de nossa intenção na luta de classes e não um exercício diletante. A melhor forma não é negar o desejo, mas confrontá-lo com a objetividade do real, como na famosa síntese gramsciana que afirma a necessidade do pessimismo do intelecto e o otimismo da vontade.

Uma forma de procurar evitar esses desvios é traçar cenários, isto é, considerando a correlação de forças e as contradições presentes, indagar quais seriam as principais vertentes para onde pode se dirigir uma determinada conjuntura.

Ao analisar a conjuntura atual temos um bom exemplo disso. O personagem principal de muitas das análises que se apresentam é o desejo, o que nos leva à predominância do subjetivismo. Portanto, devemos indagar sobre o que deixamos de lado ou o que se esconde nas determinações mais profundas. Todos nós queremos que esta página infeliz de nossa história seja definitivamente virada. O bolsonarismo não é o pior governo da história brasileira, isto é um exemplo de superficialidade. O governo miliciano é, sem dúvida, o pior governo desde o chamado período da democratização, portanto, é natural que todos nós desejemos sua superação. Este princípio pode cegar a análise levando a crer que qualquer solução que tire da pauta o genocida miliciano é boa.

Lembremos que um setor das classes dominantes, que encontrou na Rede Globo seu porta-voz, já havia chegado à conclusão do caráter deletério do governo atual e pregado explicitamente seu afastamento. Seria bom que o miserável sofresse impedimento por qualquer um de seus crimes. No entanto, qual seria a alternativa naquele momento? Mourão? Rodrigo Maia?

Agora, no contexto das eleições que se aproximam, creio que se apresentam três cenários mais visíveis e um quarto que todos preferem não acreditar que seja possível. Os três cenários para o desfecho eleitoral seriam: uma vitória de Lula, uma virada de Bolsonaro ou a chamada terceira via. Ao contrário da maioria das análises que têm se apresentado, acredito que as três são possíveis e têm recursos de poder para se viabilizar, o que não impede que uma seja mais possível que as outras.

Evidente que analisando o quadro atual a vitória de Lula parece mais provável (hoje mais no segundo do que no primeiro turno), no entanto, se enganam aqueles que creem que a fatura já está liquidada. O miliciano, com toda a operação política, midiática e jurídica que foi desfechada contra ele, segue em pé e vem diminuindo a distância para o candidato do PT, apontando para um segundo turno.

Vivemos em um país fraturado e isso leva ao fato que as instituições não são capazes de conter movimentos que se dão na base da sociedade e que não se expressam como de costume, nem nas preferências eleitorais, nem na ação visível – algo como as correntes sociais que Durkheim imaginou, que quando emergem acabam virando o jogo.

Mesmo a terceira via, que no momento parece um naufrágio eminente, pode se reapresentar no curso do processo eleitoral, talvez com uma unificação de candidaturas ou suas inviabilizações, levando o descontentamento com a polarização a se concentrar em alguém. Este é o desejo explícito de Ciro Gomes. Estou convencido que a possibilidade de uma terceira via é mais um desejo de um bloco das classes dominantes do que uma verdadeira possibilidade, mas não devemos desconsiderar o poder destes segmentos, seja midiático, seja econômico.

Aqui começa a superficialidade. Alguns adorariam parar por aí para justificar suas escolhas e começar a pensar na distribuição de cargos no novo governo. As coisas não são tão lineares quando pensamos cenários. A polarização entre o petismo e o bolsonarismo pode provocar um deslocamento em direções opostas, isto é, tanto uma opção pelo retorno seguro à conciliação de classes do petismo, quanto para a segurança da manutenção da pauta do capital pelo bolsonarismo. O que nos parece provável é que tal movimento sangre até a inanição a terceira via, ao contrário de fortalecê-la. Mesmo enfraquecida, a insistência em manter essas candidaturas joga um papel importante na definição dos cenários, uma vez que a pulverização dos votos nestes candidatos, ou sua concentração em um deles, acaba forçando o segundo turno. Esta indicação nos leva a crer que dificilmente a eleição se resolva no primeiro turno e que a polarização se radicalize durante o processo eleitoral, o que favorece as intenções do bolsonarismo.

O desejo se apresenta em todos os protagonistas. O desejo petista é que seja uma questão apenas entre primeiro ou segundo turno, mas acredita que sua volta ao governo estaria garantida por dois motivos principais: o profundo desgaste de um governo desastroso e uma ampla frente de alianças eleitorais que já visam a governabilidade. Essa frente é, na substância, de centro e deve se desenvolver para uma governabilidade de centro-direita.

O desejo de segmentos de esquerda e de centro-esquerda que se somam a essa frente se resume na intenção louvável de tirar Bolsonaro da disputa. Do ponto de vista programático e em relação ao caráter do governo, parece muito pouco provável uma inclinação mais popular ou à esquerda. Pelo contrário, tudo indica um governo ainda mais acorrentado ao pacto e à conciliação com o grande capital. Esses setores parecem não ter aprendido nada das experiências passadas e da profunda diferença entre promessas e situação real de governo.

O desejo da direita é que, como dissemos, a polarização leve ao fortalecimento da terceira via, mas isto é só aparência. O bloco dominante joga com três alternativas e não com uma. Aposta na sua almejada terceira via (não importa quem), mas tem planos tanto para o cenário petista como para a sobrevivência do bolsonarismo. Provavelmente se dividirá na eleição para se unificar diante do futuro governo, seja ele quem for.

O quarto cenário é aquele que ninguém ousa pronunciar por medo de sua concretização. Quando avaliamos o conjunto dos fatores, uma eleição disputada e marcada por tensões e manipulações do poder econômico e dos esquemas criminosos de massificação de mentiras, um país fraturado, uma indefinição das classes dominantes, um agravamento profundo da crise econômica, social e política, temos que levar em conta, inclusive por evidentes indicativos do período que se encerra, uma outra possibilidade.

O bolsonarismo não joga exclusivamente no cenário institucional, inclusive quando esteve no governo. O miliciano passou mais tempo conspirando do que governando. Acredito que o bolsonarismo trabalha com duas possibilidades: virar o jogo e ganhar as eleições no segundo turno aprofundando a fratura e adiando o seu intento golpista, como fez em 2018; ou, em caso de derrota, desfechar uma tentativa golpista. Todos nós, inclusive eu, não acreditamos que essa tentativa tenha condições de se consolidar, principalmente pelo que parecem ser os interesses do grande capital monopolista e do imperialismo e que podem com mais segurança e estabilidade se manifestar na manutenção da institucionalidade pretensamente democrática. No entanto, esta pode ser uma zona cinzenta determinada pelo desejo, que pode obscurecer uma vertente objetiva que se apresenta na luta de classes.

Um golpe que não tenha como se consolidar pode ser tentado e, uma vez colocado em movimento, alterar a correlação de forças e se apresentar como alternativa para o capital e o imperialismo. Só para ilustrar, acredito que o golpe de 2016 não era o cenário em que primeiramente o grande capital apostava, mas uma vez colocado em marcha acabou se consolidando com sua bênção. Ao lado das condições desfavoráveis para consolidar uma intervenção desta natureza, existem indicativos objetivos que nos levam a crer na possibilidade do bolsonarismo tentar este caminho. Primeiro, que o bolsonarismo não é um partido no sentido clássico, mas um movimento de extrema direita profundamente heterogêneo que capitaliza o descontentamento e o ressentimento de amplos setores que vão de setores médios até porções da massa. Apoia-se em mediações institucionais como as igrejas S/A, as milícias, grupos de extrema direita e parcelas dispersas não organizadas que encontram a mediação em redes sociais dirigidas por esquemas profissionais e criminosos de massificação dirigida por algoritmos. Soma-se a isso uma dúvida, mas uma dúvida essencial que, exatamente por não sabermos se real ou blefe, funciona como recurso de poder que tem sido eficaz na sustentação do bolsonarismo no governo: o apoio de setores das forças armadas e das corporações policiais.

O bolsonarismo se preparou para as eleições, principalmente com o controle da máquina de governo e a aliança política com o centrão, mas tem se preparado para a ruptura institucional durante todo este tempo. O crescimento do armamento a partir da liberação do acesso à compra de armas, os supostos clubes de colecionadores e de agremiações de tiro foram a fachada para a ampla distribuição de armas, para não falar do tráfico de armas como o enorme arsenal na casa do vizinho do miliciano.

Tudo isso pode ser somente um recurso de persuasão, que ao que parece tem sido muito eficiente. O desejo de muitos analistas é de que seja somente isso, para que assim a disputa ocorra nos limites da legalidade institucional no qual petistas, o capital e o imperialismo acreditam que podem vencer e governar com melhores condições de estabilidade e legalidade. Esse desejo revela uma coisa, principalmente por parte dos petistas e de uma parte da esquerda que optou pela institucionalidade: não estão de forma alguma preparados para o cenário da ruptura institucional e não têm nenhum meio de se contrapor ao golpe caso este ocorra. Já vimos isto em 2016, em um cenário muito menos dramático. O mesmo não é verdade para as classes dominantes e o imperialismo, esses sim têm meios e recursos para usar a força, seja pelos aparatos de defesa do próprio Estado, seja para apoiar as aventuras golpistas como normalmente ocorre.

O que resta a certos protagonistas é somente isso: desejar.

Este quadro conjuntural e os cenários possíveis de seu desdobramento têm ainda uma função importante em esconder determinações que seriam essenciais que fossem reveladas. Uma formação social como a nossa, de capitalismo dependente e subordinada ao imperialismo, com um Estado burguês de tipo autocrático que no máximo chega a uma democracia de cooptação, com um tipo particular de capitalismo que produz uma profunda disparidade econômica, social, cultural e política fraturando a sociedade brasileira em interesses antagônicos, um país que passou por uma longa transição tutelada, lenta gradual e segura para desembocar numa reversão política abrindo espaço para um governo de extrema direita com tendências fascistas e que durante todo o último período reforçou o domínio do grande capital monopolista (na indústria, no agronegócio, nos bancos, no comércio externo e interno, nos serviços e na comunicação), que no máximo de democracia não superou esta subordinação e serviu de capa legitimadora do desmonte de direitos, privatizações e precarização de políticas públicas, massacre nas condições contratuais dos trabalhadores, que chega às eleições com a alternativa de voltar à conciliação de classes ou seguir com o bolsonarismo.

O grande sucesso da ordem é lograr uma esfera política e uma consciência social dominada pela ideologia que limita sua discussão a quem será a pessoa que vai governar, se as alianças serão suficientes para garantir uma governabilidade, se a economia encontrará o caminho para crescer (junto com os lucros), se a forma democrática será rompida ou mantida ou se quem ficar na oposição vai respeitar os limites da ordem institucional. Enquanto isso, seguem sem respostas a urgente necessidade de uma reforma agrária e uma nova política agrícola, o modelo urbano fracassado a serviço do capital, a constante destruição ecológica, a violência sistêmica nas mais diferentes formas de expressão, no aparato policial, no racismo, na homofobia, no machismo, uma resposta categórica ao sistema financeiro e a superação definitiva do sequestro do fundo público pela mecanismo de expropriação operada pelo capital financeiro e a ditadura da dívida, a reversão imediata do desmonte do Estado pela lógica neoliberal, ultraliberal ou social liberal em nome das necessidades do grande capital, a urgente desmercantilização da vida em nome da saúde, da educação, da moradia, do saneamento, da cultura e da vida. Principalmente, a urgente discussão sobre a necessidade inadiável de superar a ordem do capital na direção da emancipação humana e do socialismo. É a vitória da pequena política sobre a grande política, da possibilidade pragmática contra a ação transformadora e revolucionária.

No fundo, o “Fora Bolsonaro” e o “Volta Lula” não respondem categoricamente essas questões, por mais que o “Fora Bolsonaro” una a todos deste lado da fratura, não pode significar por si mesmo a reversão da reforma trabalhista, dos ataques à previdência e a subalternidade em relação aos ditames do capital financeiro, a prioridade ao agronegócio e a sacrossanta lei de responsabilidade fiscal e irresponsabilidade social, uma vez que os governos anteriores ao golpe de 2016 já caminhavam nesta direção.

A esquerda, porque existe uma esquerda, está fragmentada, dividida e derrotada. Espalha-se por partidos que cursaram o difícil caminho da oposição à conciliação de classes, mas também na saudável resistência dentro do PT e outras siglas que endossaram, direta ou indiretamente, o pacto e uma estratégia que nos conduziu à derrota e ao atual impasse. Diante dos cenários, mais uma vez nos dividimos sobre a melhor tática a ser adotada. Neste momento é inevitável. No entanto, o que se cobra de uma esquerda que ainda queira ser identificada como tal é não embarcar no autoengano, identificar os interesses de classe e fazer uma profunda autocrítica da experiência recente, seja diante do fracasso da conciliação e da crença infundada na possibilidade de uma melhoria aquém de reformas sob o manto do Estado burguês e sua institucionalidade, seja diante da ameaça do desenvolvimento de uma extrema direita e o risco do fascismo. Há uma clara diferença entre apoio tático e rendição incondicional que apaga erros, soterra equívocos e traições, impedindo o que de mais positivo podemos tirar de nossa experiência, ou seja, o aprendizado do que não fazer.

Sartre dizia que “o ato de imaginação […] é um ato mágico”, completando: “É um encantamento destinado a fazer aparecer o objeto no qual pensamos, a coisa que desejamos, de modo que dela possamos tomar posse. Neste ato, há sempre algo de imperioso e infantil, uma recusa de dar conta da distância, das dificuldades” (SARTRE, 1996, p. 165).

Sabemos que estamos distante de nossos objetivos estratégicos, mas nunca os alcançaremos se ficarmos justificando todo tipo de desvio como genialidade tática, o que na prática nos distancia ainda mais dos verdadeiros interesses dos trabalhadores e da humanidade. A esquerda pode e deve se unir, mas para isto é preciso balizar muito claramente o que se constitui como tática rebaixada e ataque direto à classe trabalhadora, superando o servilismo governista e se dispondo a organizar a classe e suas lutas, mesmo que essas se choquem com o governo de plantão. Um projeto de esquerda que rompa a defensiva precisa definir uma estratégia diante do que sabemos que é o Estado burguês no Brasil e dos meios necessários para uma superação revolucionária. Podemos nos dividir sobre as melhores táticas e a forma de implementar nossas estratégias, mas temos que abdicar de uma vez por todas da crença ingênua e infantil de que poderemos avançar de qualquer forma nos aliando aos nossos inimigos de classe sob o manto protetor de seu Estado.

Referência bibliográfica
SARTRE, J. P. O imaginário. São Paulo: Ática, 1996.

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB.

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