O proletariado e as eleições

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Os Comunistas e as Eleições: A experiência do PCB e o Bloco Operário e Camponês, por Lucas Andreto

O debate sobre a participação da classe operária nas eleições

Na Europa, a classe operária iniciou seu processo de participação nas eleições e no Parlamento desde, ao menos, 1848, com a Primavera dos Povos, ocasião em que alguns nomes célebres do movimento operário tiveram a oportunidade de exercer cargos no legislativo, como por exemplo, Pierre Joseph Proudhon. Entre 1884 e 1896, este processo aumentou significativamente com a fundação dos partidos social-democratas e trabalhistas, que em geral, defendiam a participação eleitoral e parlamentar dos trabalhadores tanto para propagandear o socialismo quanto para conseguir medidas imediatas de bem-estar para a classe operária. Entretanto, o assunto sempre foi objeto de polêmica, dividindo posições dentro do movimento operário entre aqueles que viam no Parlamento um campo estratégico da luta política e aqueles que condenavam veementemente a participação no Parlamento burguês (PZEWORSKI, 1984, P. 44).

A participação da classe operária e seus quadros políticos nas eleições burguesas foram desde então objeto de dura polêmica no seio do movimento operário. Os anarquistas foram sempre irredutíveis nesta questão, apesar de a recusa da participação nas eleições e no Parlamento não ser um monopólio destes. Para os anarquistas não há espaço para utilidade do Estado ou da democracia representativa de nenhuma forma, a instituição é estruturalmente condenada a servir apenas à burguesia ou a qualquer outra classe que exercerá um poder autoritário. Kropotkin condena o uso do Estado em todos os sentidos, nenhum ganho para a classe operária ou para o povo em geral é fruto da democracia representativa, mas sim da pressão popular que conseguiu arrancar através da força algumas medidas de bem-estar social por parte do Parlamento (Ibidem, p. 53). Para o teórico anarquista, se esses direitos não são conquistados pela força, pouca diferença há entre um Estado burguês democrático e representativo e uma monarquia absoluta, de forma que independente de suas vantagens ou desvantagens para a população, o que determinou a substituição da monarquia pela república foi tão só o fato do parlamentarismo corresponder melhor à forma de exploração do trabalhador no capitalismo do século XIX.

As liberdades tem que ser arrancadas da mesma maneira que aos reis absolutos; e uma vez arrancadas é preciso defende-las contra o Parlamento da mesma maneira que outrora contra um monarca, dia a dia, palmo a palmo, sem nunca desarmar, o que não se consegue senão quando há no país uma classe forte, ciosa das suas liberdades e sempre pronta a defende-las pela agitação extra-parlamentar contra a menor usurpação. Onde essa classe não existe ou onde não tem unidade de defesa, as liberdades políticas não existem haja ou não uma representatividade nacional (Idem).

De nada adianta que esse Parlamento seja revolucionário ou proletário, pois “alimentar esses sonhos, é tão ingênuo como casar um rei com uma camponesa na esperança de uma geração de bons reis”, e

Quanto mais revolucionária for [uma assembleia parlamentar], mais tratará de se meter em tudo o que não é da sua competência. Legislar sobre todas as manifestações da atividade humana, intervir nas menores particularidades da vida de seus súditos (Ibidem, p. 55).

Dessa forma, também as eleições não passam de uma farsa para os anarquistas, “a eleição é a feira das vaidades e das consciências” (Ibidem, p. 51), todas as paixões mais vis do ser humano encontram terreno fértil nas eleições, a fraude, a calúnia, hipocrisia e a mentira seriam a essência do espetáculo eleitoral, que nas palavras, desta vez de Enrico Malatesta, tem como único objetivo ser “o direito de escolher os patrões” (MALATESTA, 1980, P. 86). Ou dizendo de forma completa

O regime do sufrágio universal, mentiroso como todo o sistema parlamentar, não é de modo algum governo da maioria – nem mesmo da maioria dos eleitores. É simplesmente um artifício com o qual o governo de uma classe toma as aparências de governo popular.

Com efeito, cada eleitor nomeia apenas um ou poucos deputados numa assembleia composta ordinariamente de algumas centenas de deputados. Portanto, ainda quando ele visse triunfar o seu candidato, a sua vontade, que já nas eleições entrava numa fração infinitesimal, seria representada só por um deputado, o qual por sua vez não é contado, na Câmara, senão por uma fração mínima. A Câmara, por conseguinte, tomada no seu conjunto, de nenhum modo representa a maioria dos eleitores. Cada deputado é o eleito dum certo número de eleitores, mas o corpo eleitoral como totalidade não é representado (Ibidem, p. 82).

Ao argumento de que o Parlamento poderia servir para a agitação e a propaganda revolucionária, Malatesta responde que apesar desta afirmação, os parlamentares socialistas sempre acabam corrompendo-se e caindo no reformismo (Ibidem, p. 90). Para Kropotkin, em concordância com Bakunin e Malatesta, a formação política de uma sociedade revolucionária “é a formação do simples para o complexo, de grupos que se constituem livremente para a satisfação de todas as múltiplas necessidades dos indivíduos nas sociedades”. Em outras palavras, tratava-se de uma forma de autogoverno não estatal, formada por livres agrupamentos regionais (Ibidem, p. 91).

A história da Revolução Russa trouxe grande contribuição para o debate sobre a participação dos revolucionários nas eleições burguesas, de tal maneira que é possível encontrar na trajetória do Partido Bolchevique posições que vão desde o boicote completo as eleições à ativa participação por meio de candidatos social-democratas e bolcheviques e apoios táticos aos políticos burgueses objetivando derrotas pontuais contra o czarismo. Posteriormente, quando da ocasião da construção do Estado soviético na Rússia em 1920, Lênin desenvolveu a questão em polêmica com os comunistas alemães, holandeses e ingleses, em seu Esquerdismo, doença infantil do comunismo. Na ocasião, preocupado com o desenvolvimento da revolução proletária na Europa, Lênin procurou analisar documentos e manifestos das correntes que ele chamava de “esquerdistas”, expressões de “revolucionarismo pequeno-burguês”, que seria “parecido com o anarquismo ou adquiriu dele alguma coisa” (LÊNIN, 2013, p. 59) para tecer sua crítica a recusa absoluta da participação operária nas eleições e no Parlamento burguês. Quanto ao anarquismo, Lênin o via como “uma espécie de castigo pelos pecados oportunistas do movimento operário” (Ibidem, p. 60). Na concepção do líder revolucionário russo, o oportunismo fortalece o anarquismo devido a revolta que a ação conciliadora do primeiro produz nas massas, bem como os atos de traição nos momentos decisivos da luta política, desencadeando um sectarismo purista que leva a posições como a recusa de participar de terrenos interpretados como tradicionalmente burgueses. Na Rússia, diz Lênin, o anarquismo foi vencido no movimento operário devido não somente ao combate sem tréguas que o Partido Bolchevique travou contra o oportunismo, mas principalmente pela “possibilidade que ele [o anarquismo] teve no passado de alcançar um desenvolvimento extraordinário e de revelar profundamente seu caráter falso e sua incapacidade de servir como teoria dirigente da classe revolucionária”(Idem).

À críticas muito parecidas com a de Kropotkin, que afirmam que “esse regime [parlamentar representativo] já caducou” (KROPOTKIN, 1980, P. 75), Lênin respondeu afirmando

O parlamentarismo “caducou historicamente”. Isso está certo do ponto de vista da propaganda. Mas ninguém ignora que daí à sua superação na prática há uma enorme distância. Há muitas décadas já se podia dizer, com toda razão, que o capitalismo havia “caducado historicamente”; mas isso não nos exime, nem um pouco, da obrigação de sustentar uma luta extremamente prolongada no terreno do capitalismo (LÊNIN, 2013, 93).

Para Lênin, em total oposição aos anarquistas, ainda que os momentos de ofensiva revolucionária das massas possa exigir a tática do boicote às eleições, principalmente nos momentos de refluxo e de defensiva do movimento revolucionário a participação nas eleições e na luta parlamentar é obrigatória para o partido do proletariado, sendo seu objetivo potencializar a propaganda política revolucionária para os setores desmobilizados da classe operária, bem como para os camponeses afastados das lutas políticas típicas do meio urbano, levar a discussão e instruir a massa aldeã. A participação num Parlamento democrático-burguês, também permitiria demonstrar com maior facilidade a limitação política e o caráter de classe desses próprios Parlamentos, evidenciando que eles devem ser dissolvidos, ou em outras palavras, a participação comunista operária no Parlamento burguês, além da propaganda, objetivava facilitar a “supressão política” do próprio Parlamento burguês (Ibidem, p. 96).

Há também em Lênin uma preocupação com o trabalho “ilegal” desenvolvido pelo movimento operário. Durante praticamente todo o século XIX até a Revolução Russa, muitos dos métodos e organizações de luta da classe operária não eram reconhecidas como legítimas pelos Estados burgueses ou monárquicos (como era o caso da Rússia), portanto, a greve, a organização sindical, a propaganda comunista eram “trabalho ilegal”, tomadas pelo poder legal do Estado como crime, e portanto, podendo ser combatidas através da força policial. Lênin argumenta que uma ala comunista atuante no Parlamento burguês pode facilitar e ajudar o trabalho ilegal, é necessário que haja políticos comunistas no Parlamento que facilitem a vitória sobre a política burguesa e seus meios de atuação (como por exemplo, o aparato jurídico-policial). Nesse sentido “se o proletariado quiser vencer a burguesia, deve formar seus políticos de classe, proletários, e de tal envergadura que não sejam inferiores aos políticos burgueses” (Ibidem, p. 125).

Uma política de tipo novo: o PCB e o Bloco Operário e Camponês.

No Brasil, os primeiros aspirantes a representantes do operariado brasileiro no Parlamento surgiram nas duas primeiras décadas da Primeira República. Aparecendo e desaparecendo após curto período de existência, partidos operários e socialistas, criados quase sempre em função da disputa eleitoral. São exemplares desse tipo, o Partido Operário, fundado em 11/05/1890, dirigido pelo tenente José Augusto Vinhaes, ele mesmo deputado pelo Distrito Federal, líder dos operários da estrada de ferro Central do Brasil que paralisaram as linhas férreas quando Deodoro da Fonseca declarou o fechamento do Congresso em 1891 (BATALHA, 2009, P. 231); e também os vários “Partido Socialista Brasileiro”, surgidos em 1906, depois de desaparecer no mesmo ano, em 1912, depois em 1917 e em 1925, sempre com um jornal de existência igualmente efêmera e alguns candidatos lançados ao Parlamento (Ibidem, 233).

Estes partidos não são formulados como partido de classe, como instrumento de transformação da sociedade, mas como siglas que deveriam possibilitar a eleição de representantes dos trabalhadores no poder legislativo. A ideia de um partido da classe operária, organizado e disciplinado, objetivando a conquista do poder e a transformação revolucionária da sociedade se materializa apenas com a fundação do PCB em 1922. Os partidos operários e socialistas das primeiras décadas da república brasileira, por outro lado, tinham programas nitidamente reformistas, assemelhando-se com o socialismo da II Internacional, que encarava a perspectiva da sociedade socialista como um futuro distante, de forma a ater seus principais esforços nas ações políticas de curto prazo, como eram justamente a obtenção de vitórias eleitorais.

O PCB foi o primeiro partido brasileiro a se declarar como “partido da classe operária”, dirigido por sua vanguarda mais consciente (ou seja, por aqueles mais convictos da necessidade da revolução socialista e mais aptos a levar a cabo esta tarefa, impulsionando para este objetivo as demais tendências e elementos do movimento operário), organizando-se pelo “centralismo democrático”, constituído pela elegibilidade das células superiores do partido por parte das células inferiores, pelo cumprimento em todas as células inferiores de todas as decisões tomadas em sua instância máxima, o Comitê Central Executivo. Seguindo este modelo organizativo, o Partido Comunista deveria constituir células em cada fábrica, sindicato, associação ou cooperativa de trabalhadores urbanos e rurais.

Este partido fortemente centralizado e disciplinado, tinha como pressuposto de seu reconhecimento e aceitação pelo movimento comunista mundial a aderência às 21 condições de filiação estabelecidas pela III Internacional Comunista (IC) para todos os partidos nacionais que desejassem fazer parte dela. Nessas condições, a participação dos comunistas nas eleições e no Parlamento constava como pressuposto em seu décimo primeiro item, quando este exigia “uma revisão na composição de suas [dos partidos comunistas] frações parlamentares”.

Desse modo, ao entrarem para a III Internacional, os comunistas brasileiros estabeleciam o compromisso de atuar nas eleições como partido da classe operária, o que não significa que a questão não tenha gerado resistência em ser aceita devido ao grande descrédito do sistema eleitoral brasileiro da República Velha e a tradição anarquista do qual haviam saído a maioria dos fundadores do partido. Segundo relato de Abílio de Nequete, um dos fundadores do partido, o Congresso de Fundação do PCB quase foi dissolvido porque Nequete foi o único entre os nove delegados que não se opusera a tese de participação das eleições (PEIXOTO, 2006, P. 54). Já em 1924, quando da visita de Rodolfo Ghioldi, representante da Internacional Comunista ao Brasil, com o objetivo de avaliar a estrutura organizativa do partido e decidir se o mesmo seria aceito ou não na Internacional, consta no sétimo item de seu relatório sobre o PCB para a IC “que só existe um ponto que poderia ocasionar uma discussão com o Partido: o da abstenção eleitoral nos estados”, completando em seguida que, contudo, “isso fica descartado […] o PCB aceita a tática parlamentar” (O processo… Apud CANALE, 2013, p. 250).

A discussão sobre a participação da classe operária nas eleições através de um partido de classe, que lance candidatos ao Parlamento só apareceu com maturidade por parte dos comunistas brasileiros no ano de 1927, quando da formação do Bloco Operário (BO), depois chamado Bloco Operário e Camponês (BOC). A formação de um Bloco Operário por parte dos comunistas veio atender a duas demandas básicas do momento em que estavam passando, uma demanda externa e outra interna. Fazia parte da política de “frente única” da III Internacional, que estabelecia que os partidos comunistas nacionais deveriam atuar em unidade com os partidos reformistas e social-democratas no sentido de manter a unidade do movimento operário, enquanto ao mesmo tempo conquistavam as massas operárias que faziam parte destes partidos para o comunismo para depois derrota-los (HAJEK, 1985, p. 188). Ao mesmo tempo, em razão do Estado de sítio que vigorava no país desde a revolta tenentista de 1922, a chamada revolta dos 18 do Forte de Copacabana, o PCB encontrava-se na ilegalidade, necessitando de uma legenda legal para lançar seus candidatos ao pleito.

O documento que marca a iniciativa de lançar candidatos operários ao Parlamento por parte dos comunistas é a “Carta Aberta” a Maurício de Lacerda, a Azevedo Lima, ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) e outras organizações operárias com o objetivo da formação de uma frente única eleitoral proletária, o Bloco Operário. A Carta foi publicada no jornal A Nação, pertencente ao professor de Direito oposicionista do regime da Primeira República, Leônidas de Rezende, que após aproximar-se das leituras das obras de Marx e Engels, converteu-se ao comunismo e ofereceu seu jornal ao PCB (BRANDÃO, 1978, p. 331-333)

A “Carta Aberta” inicia-se afirmando que

Pode-se dizer que pela primeira vez, entre nós, vê o proletariado brasileiro a possibilidade de sua intervenção direta e independente no pleito a travar-se. Com efeito, até aqui – salvo alguma ou outra exceção de caráter local ou pessoal – jamais o eleitorado operário no Brasil participou de uma campanha nacional eleitoral como força própria, como classe independente, apresentando um programa de reinvindicações ditadas por seus interesses e aspirações de classe (A NAÇÃO, 05 de janeiro de 1927, p. 1).

Entretanto, continua a Carta Aberta, no presente momento, “o proletariado já vai adquirindo uma consciência de classe” que “reflete-se e projeta-se igualmente sobre o terreno eleitoral”. Esta consciência de classe diz aos operários que eles “devem votar nos próprios candidatos, isto é, nos candidatos que representam realmente seus interesses de classe independente, ou seja, “não quer mais votar no candidato-patrão, ou no aliado e criatura do patrão-candidato” que será nas câmaras defensor dos interesses do patrão (A NAÇÃO, 05 de janeiro de 1927, p. 1). Constatando isto, o PCB se colocava no dever de participar das eleições de fevereiro de 1927 para os cargos de deputados federais, pois “o Partido Comunista é o único partido operário que verdadeiramente representa os reais interesses e aspirações totais da classe operária” (A NAÇÃO, 05 de janeiro de 1927, p. 1).

Prosseguindo com a “Carta Aberta”, os comunistas expõem o seu programa. O primeiro ponto, “política independente de classe”, merece maior atenção por expor a proposta de organização política dos comunistas na relação que a classe operária terá com os seus candidatos eleitos, e a relação destes com o Parlamento. Ao mesmo tempo, é uma proposta que se pretendeu a negação da democracia burguesa, principalmente do modo como se configurava no processo político da República Velha, e também a ruptura com o abstencionismo do movimento operário brasileiro de cunho anarquista ao afirmar e apresentar uma estrutura organizativa de participação da classe operária nas eleições e nos Parlamentos burgueses que visa ser estruturalmente montada para evitar o reformismo e o carreirismo, que são os males que os anarquistas sempre apontavam ao se referir aos partidos socialistas e social democratas.

Realizando uma política independente de classe, os candidatos do Bloco Operário manter-se-ão em contato permanente com a massa operária, por meio de seus órgãos representativos – sindicatos e partidos – e por meio dos comícios públicos. Representando a massa operária, cujos interesses reais defenderão a todo transe no Congresso, os candidatos do Bloco Operário tomam o prévio compromisso de subordinar sua atividade parlamentar ao controle da massa operária, cujo pensamento ouvirão em cada ocasião, através de seus órgãos de classe autorizados. Eleitos e sustentados pela massa operária, os candidatos do Bloco Operário são responsáveis perante a massa operária por toda a atividade política e legislativa que desenvolverem dentro e fora do Parlamento (A NAÇÃO, 05 de janeiro de 1927, p. 2).

Dessa forma, enquanto os políticos da Primeira República eram os políticos da lógica personalista, individualista, os políticos do Bloco Operário eram políticos submetidos ao controle de uma classe social, e que só podia expressar em suas palavras e ações as aspirações desta classe. Os instrumentos de controle do político proletário, que o deixariam afinado com os interesses do proletariado, eram o Partido do qual fazia parte, os sindicatos e os comícios públicos, para o qual devia prestar contas e utilizar para reatualizar constantemente sua política de acordo com as reivindicações da classe operária. Também aqui o Bloco Operário seguia Lênin, para quem

Os comunistas partidários da Terceira Internacional, existem em todos os países exatamente para transformar completamente, em todos os aspectos da vida, o antigo trabalho socialista, tradeunionista, sindicalista e parlamentar num trabalho novo, comunista. […] Os comunistas da Europa Ocidental e da América devem aprender a criar um parlamentarismo novo, incomum, não oportunista, sem arrivismo (LÊNIN, 2013, 147).

No programa do Bloco Operário, que se apresentava como a condensação das reinvindicações básicas do movimento proletário brasileiro e pela primeira vez extraído das lutas sindicais e lançado como plataforma política, somava-se ainda o combate ao imperialismo, que deveria ser levado a cabo através da oposição a todo o empréstimo externo, a revisão dos contratos das empresas estrangeiras de serviços no Brasil, da nacionalização das estradas de ferro, das minas e das usinas de energia elétrica, da extinção das missões militares estrangeiras, da aliança com os países da América Latina, com os países coloniais e com a União Soviética.

Constava ainda, o reconhecimento da União Soviética, a anistia aos presos políticos (militantes em geral do movimento operário e participantes nas revoltas tenentistas de 1922 e 1924). Havia também uma proposta de legislação social, que incluía a jornada de trabalho de 8 horas diárias e 44 semanais, proteção às mulheres operárias e aos menores, proibição do trabalho para menores de 14 anos, salário mínimo, contratos coletivos de trabalho, seguro social a cargo do Estado e do patronato contra o desemprego, a invalidez, a enfermidade e a velhice, licença às operárias grávidas de 60 dias antes e 60 dias depois do parto, com pagamento integral dos salários, água filtrada nas fábricas e oficinas, saneamento rural sistemático, fomento das cooperativas operárias e da pequena lavoura. Também haviam propostas de uma reforma tributária (só os ricos pagam impostos) construção de moradias operárias e voto secreto.

A política de frente única do Bloco Operário foi construída objetivando ter um alcance nacional, de forma que a partir de então, passou a existir em diversas cidades brasileiras: São Paulo, Santos, Sertãozinho, Cubatão, Ribeirão Preto, Porto Alegre, Pelotas, Caxias, Rio Grande, Santana do Livramento.

Durante o período de existência da política de “frente única” e do Bloco Operário e Camponês, o PCB defendeu através dos jornais que abriam espaço para publicações dos comunistas a participação operária nas eleições. Em todos estes textos encontramos como ponto em comum a chamada de atenção que a participação dos operários através do BOC não era uma participação individual, para escolher um representante fundamentando-se em moralismos ou idealismos, como era a lógica da democracia burguesa, mas sim uma participação de classe, através de uma organização de classe, e que encontraria em seu candidato um programa com as propostas para condições materiais mínimas de vida e bem-estar da classe trabalhadora. Para tanto, era necessário que a massa trabalhadora efetuasse “o trabalho de penetração no terreno da burguesia, minando-o, consequentemente” (O COMBATE, 24 de janeiro de 1928, p. 6).

Uma das principais características da “candidatura de classe” dos comunistas era o caráter engajado e militante que os eleitores deveriam tomar no processo eleitoral. Enquanto, em geral, o eleitor da democracia burguesa era visto como um indivíduo chamado a votar em um representante com o qual se identificasse a um determinado período de tempo, o eleitor proletário, era instigado e engajar-se ativamente no processo (O COMBATE, 24 de janeiro de 1928, p. 6). Aqui, o proletariado como eleitor, não iria ler passivamente a propaganda do BOC e votar em seu candidato no dia do pleito, ao contrário, o BOC incita os trabalhadores a “fazer uma propaganda tenaz e inteligente dos interesses de sua classe, consubstanciados no programa de reivindicações com que o Bloco Operário e Camponês se apresenta na luta eleitoral” (O COMBATE, 04 de fevereiro de 1928, p. 6), o que significa o chamado para um engajamento cotidiano na campanha do BOC, trabalhando para o estabelecimento de uma forte identificação entre o programa e o que os operários consideravam como interesses próprios de sua classe social.

O BOC, diziam os comunistas, tinha um programa que representava os interesses do proletariado, enquanto os candidatos burgueses, “qual é o programa dos candidatos burgueses?” Era respondido: “Nenhum!” Eram apenas “palavras ocas e promessas não cumpridas”, e não poderia ser diferente, uma vez que a burguesia está comprometida com seus negócios, com a propriedade privada que é a base de sua riqueza, dessa forma, jargões como “liberdade”, “democracia”, só poderiam valer de fato para o candidato proletário, cujos interesses de classes não estavam comprometidos com a propriedade privada dos meios de produção. Os interesses proletários, como dito em outro texto, se materializavam nas reivindicações programáticas do BOC: defesa das 8 horas diárias de trabalho e 44 horas semanais, proteção de trabalho às mulheres, principalmente as gravidas, inspeção sanitária das fábricas, salário mínimo. Para os comunistas, essas reivindicações não tem o caráter de interesses pessoais, como são os interesses da burguesia, é política de classe, a única forma de política que poderia combater os interesses burgueses (O COMBATE, 08 de fevereiro de 1928, p. 3).

De tal sorte, para os comunistas, o programa se constituía em documento fundamental e determinante para todo o processo de participação nas eleições burguesas evitando desvios oportunistas. O programa deveria condensar todas as reivindicações básicas e comuns da classe operária, solidificando numa plataforma política as pautas saídas da experiência do movimento operário. O político comunista estava sujeito ao programa, era seu contrato com os interesses da classe operária, portanto, não poderia defender no Parlamento nenhuma posição que entrasse em contradição com este programa. A fiscalização das ações do político comunista, para que não acontecesse nenhum desvio em relação ao programa, ficava por parte, principalmente, do Partido. O Bloco Operário e Camponês deveria cobrar seu parlamentar de todas as suas ações, sendo o responsável por repreendê-lo caso houvesse algum problema. A esse respeito, constava nos estatutos do BOC:

X- Os representantes do Bloco Operário e Camponês nas casas legislativas, toda vez que for necessário, serão chamados a prestar contas de sua atividade política, perante a Assembleia dos Delegados, e submeter-se-ão às deliberações adotadas pela mesma. Em caso de inobservância, serão passíveis das seguintes penas:

  1. À repreensão;

  2. À perda do mandato;

  3. À expulsão do Bloco Operário e Camponês.

Os motivos da expulsão serão tornados públicos (Programas e Estatutos…, 1928, p. 13).

Além do partido, esta fiscalização também ficava por parte dos sindicatos, e do vínculo contínuo que o parlamentar comunista deveria ter com o proletariado, a ser constantemente reafirmado e atualizado em reuniões sindicais, comícios, palestras públicas, comparecimento em instituições da classe trabalhadora. Tratava-se de criar uma estrutura, um sistema de operação politico que tornava impossível, ou ao menos muito difícil, a integração do político operário na lógica supostamente corruptora do Parlamento burguês, como alegavam os anarquistas. Isso porque o mesmo seria ali apenas instrumento de uma engrenagem maior, submetido a ela, e não um parlamentar individual e obedecendo a si mesmo, deixado a suas próprias ações individuais. Nas palavras de Astrojildo Pereira

Candidato dum partido, ligado a este partido por laços de disciplina, o candidato operário não vai fazer na Câmara Municipal uma política pessoal de arranjos e cambalachos mais ou menos inconfessáveis. Eleito, sujeito ao controle do partido, ele só poderá fazer, na C.M. [ Câmara Municipal], a política impessoal do partido a que pertence e que nele deposita sua confiança. Isto quer dizer que ele vai fazer a política do proletariado, política de classe, de franco e desassombrado combate em prol da classe operária.

Para isto, ele estará sempre em contato direto e cotidiano com a massa proletária. A esta prestará ele contas, em assembleias públicas, de seu mandato, de sua atividade na C.M. Por sua vez, a massa proletária estará sempre ao seu lado, prestando-lhe todo o apoio necessário nas campanhas empreendidas.

Por exemplo. Agita-se, na C.M., em dado momento, uma questão de interesse para a massa laboriosa. Que faz o representante operário? Ele irá ouvir diretamente a opinião da massa interessada, irá aos sindicatos e sociedades de resistência, e em assembleias especialmente convocadas debaterá o assunto, assentando, combinando e coordenando as medidas que forem tomadas. Irá aos lugares mesmos de trabalho, às oficinas, aos armazéns, ao cais, às obras em construção, etc, etc, e convocará os trabalhadores aos meetings da praça pública, onde a questão em foco sofrerá a discussão requerida. Ele será assim, na C.M., um verdadeiro representante das massas laboriosas, com as quais estará em contato permanente. Não a sua opinião pessoal, mas a opinião e a política da própria massa (PRAÇA DE SANTOS, 30 de janeiro de 1928, p. 3).

É necessário dizer, que enquanto o BOC existiu houve esforço para que esta estrutura fosse mantida. Dessa forma, Octávio Brandão e Minervino de Oliveira, eleitos a intendentes municipais da cidade do Rio de Janeiro em 1928, fizeram visitas e comícios nos locais de trabalho, nos bairros operários, discutiram as reivindicações da população, muitas das quais acabaram tomando a forma de proposta legislativa, denunciaram as condições de trabalho nas fábricas, que eram verificadas quando de suas visitas, bem como a ausência da aplicação da legislação trabalhista existente até aquele momento (KAREPOVS, 2001. P. 460-461). A respeito destas visitas, nos conta Octávio Brandão

[…] fizemos muito o trabalho que se chama extraparlamentar, nas fábricas, nos bairros operários. Chegava lá, era o vereador… Porque os operários têm aquela confiança: “Ah! Depois de eleito…” -, não conheci aquela massa? – “nunca mais virá aqui.” Porque sempre era assim. Diziam: “Todos são assim.” E nós fomos a primeira exceção. Chegávamos lá e falávamos: “Fulano de tal, vereador eleito pelo Bloco Operário e Camponês.” Abríamos aquela faixa vermelha com as letras brancas: “Parai! Assisti ao comício do Bloco Operário e Camponês.” Aquela massa parava. Então, muito trabalho extraparlamentar (BRANDÃO, 1993. P. 144).

Era o “parlamentarismo novo, incomum, não oportunista, sem arrivismo”, dito por Lênin, e era também a forma como os comunistas respondiam concretamente as críticas anarquistas sobre a participação da classe operária nas eleições e no Parlamento, diferenciando-se da forma como a mesma questão era levada a cabo pelos primeiros partidos operários e socialistas da primeira república (ditos reformistas ou amarelos).

A experiência do BOC e os dias atuais

Quase um século depois da campanha do Bloco Operário e Camponês é surpreendente constatar a pertinência de sua experiência política nos dias atuais. Inúmeras diferenças de contexto histórico a parte, também hoje encontramos uma quantidade significativa de pessoas no campo da esquerda que rejeitam absolutamente o processo eleitoral por seu caráter burguês e oportunista, sempre alimentado pelo oportunismo real que nunca perdeu oportunidade de mostrar sua incapacidade de defender denodadamente os interesses da classe operária. Depois de quatro anos de governo reacionário e seis anos de ofensiva de classe da burguesia sobre os trabalhadores, nossa classe deseja ansiosamente a recuperação de suas condições de vida, o que exige não apenas recuperar os direitos perdidos nos últimos seis ou sete anos, mas levar a cabo uma transformação estrutural da economia política de nosso país no próximo mandato, apontando para a superação da dominação do imperialismo norte-americano e da vil exploração capitalista. Não obstante, os políticos reformistas não fazem outra coisa que ceder nos pontos de seu programa que dizem respeito aos interesses mais pertinentes para a classe operária. Usam como trunfo o fato de que “o outro lado é o fascismo” para fazer as alianças mais traidoras, com elementos verdadeiramente odiáveis de inimigos do povo e sob justificativas as mais duvidosas. Comprometem de tal forma a possibilidade de vencer verdadeiramente nossos inimigos, e trilham o caminho em que a manutenção das condições da tragédia atual podem fortalecer mais uma vez as forças da reação.

Também a ideia de um eleitor passivo, chamado a votar a cada quatro anos no “melhor candidato” e então voltar para sua casa, submeter-se ao massacrante cotidiano da vida sob o capitalismo é ainda hoje típica tanto entre os políticos oportunistas do campo político da esquerda como é natural entre direita e os políticos burgueses é um geral. A experiência do BOC nos mostra a importância de fazer uma política de pessoas ativas, que não apenas sabem o que estão defendendo, mas que engajam-se no processo político antes, durante e depois do período eleitoral.

O tipo político do parlamentar comunista, não individualista, submetido a disciplina partidária, com ligação orgânica com as massas e obrigado a defender necessariamente o programa pelo qual foi eleito é uma figura praticamente extinta nos dias de hoje. Estes elementos tão ausentes durante o período da Nova República cuidaram para que nossa democracia se tornasse uma espécie de regime oligárquico não declarado. Não devemos subestimar o papel que teve a incapacidade de nossa democracia burguesa em internalizar e realizar pautas populares, bem como garantir representações políticas não oportunistas, lutando por uma eterna passividade política da maior parte da população na política por criar um dos elementos fundamentais para o surgimento e crescimento do fascismo em nosso país.

Assim, a experiência do BOC nos deixa um exemplo emancipatório e capaz de nos impulsionar para uma real política de transformação. Precisamos de candidatos comprometidos com um programa que sintetize e traduza os interesses das classes subalternas de nosso país, que leve a cabo uma campanha de sujeitos políticos ativos e que eleja parlamentares que terão uma ligação orgânica com as massas, fazendo uma política que supere os padrões típicos da democracia burguesa, que faça uma política de classe e não individualista e mesquinha. Sem dúvidas, esse é o caminho correto para derrotar o fascismo, para trilhar o caminho de vitórias para a classe operária e será mais uma vez o caminho do Partido Comunista Brasileiro (PCB) no ano de 2022.

Fontes:

A Nação. Rio de Janeiro, 1927.

A Plebe. São Paulo, 1927.

O Combate. São Paulo, 1928.

Praça de Santos. Santos, 1928.

Bloco Operário e Camponês. Programa e estatutos. Rio de janeiro, Comitê Central do BOC, 1928, p. 11- 15.

BRANDÃO, O. Otávio Brandão (depoimento, 1977). Rio de Janeiro, CPDOC, 1993.

Condições de adesão a Internacional Comunista. Edições SAP, Ano I, N° 2, 1971.

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Bibliografia:

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