Medicalização da sociedade e racismo no Brasil

imagem

Por Rômulo Caires

Nas últimas décadas, o conceito de medicalização vem sendo cada vez mais mobilizado para elucidar o avanço da medicina em direção ao corpo social, processo que mais do que produzir saúde tem contribuído para a individualização de problemas que encontram suas determinações fundamentais no próprio desenvolvimento da sociedade. Nesse sentido, a medicalização não é meramente o uso abusivo de medicações, ainda que este aspecto faça parte do fenômeno, mas pode ser compreendido como um processo mais abrangente que transforma questões de ordem econômica, política, cultural, educacional etc., em problemas médicos.

Desenvolvemos em texto anterior a importância das práticas de saúde e da medicina na garantia da reprodução da força de trabalho. Neste texto, aprofundaremos outro aspecto da relação entre medicina e capitalismo: seu papel no controle social e na normalização dos conflitos. Desde o surgimento da “questão social” após a Revolução Francesa, em que uma série de “reformadores” passaram a se preocupar com as condições de vida e saúde da massa da população, notou-se que a medicina tinha um papel importante em dirimir as insatisfações populares. O Estado Moderno emerge e incorpora em suas ações a realização de certas demandas advindas das classes trabalhadoras, especialmente no período de ascensão revolucionária da burguesia, que para destronar as classes feudais valeu-se de uma política de alianças com os setores plebeus.

Esse processo produziu uma série de teorias que advogavam pela igualdade e liberdade dos seres humanos e, com isso, alguns desses reformadores estavam realmente interessados em diminuir as injustiças sociais e melhorar a vida de amplos setores da população. Porém, esse período teve breve duração. A burguesia foi revolucionária até a tomada de poder e logo se assustou com a possibilidade de os setores populares utilizarem as armas que a burguesia utilizou contra o feudalismo contra o próprio modo de produção capitalista nascente. A Revolução Haitiana é um dos primeiros marcos da transformação da burguesia de classe revolucionária em classe conservadora. Os revolucionários haitianos logo compreenderam que a ideia de igualdade e liberdade propagandeada pela burguesia não valia para eles. A burguesia não aceitou que a população negra e formada essencialmente por ex-escravizados fizesse parte da “humanidade”.

Foi justamente no decorrer do século XIX que se generalizaram ideias que explicavam os conflitos e as desigualdades existentes a partir da teoria das raças e do racismo científico. A ciência foi convocada a explicar o objeto “raça” e construiu todo um arcabouço que justificava a exclusão a partir da suposta “inferioridade natural” das raças não-brancas. A medicina, enquanto prática reconhecida socialmente por estabelecer os parâmetros de normalidade, adentra essa seara e tem papel fundamental na consolidação das teorias racistas que emergiram durante o século XIX. Não será objeto desse texto uma análise ampla da relação da medicina com as teorias raciais, mas tomaremos o caso brasileiro como exemplo de valor pois julgamos que o Brasil foi um local no qual a medicina e a justificação ideológica do racismo operaram em máxima sintonia.

Como exposto anteriormente, cabe geralmente à medicina definir o que é normal e o que é patológico. Essa definição do que é doença não é neutra e depende diretamente das condições específicas de cada sociedade, do período histórico em questão etc. Justamente no período em que a burguesia se torna uma classe conservadora, o que Marx chamou de decadência ideológica da burguesia, amplia-se com mais força concepções naturalistas da história humana. Uma dessas concepções pode ser caracterizada como paradigma psicopatológico, no qual as lutas sociais são interpretadas não enquanto luta de classes mas enquanto luta daqueles bem nascidos e considerados autênticos humanos e aqueles considerados inferiores e condenados a perecerem. Tais teorias foram então utilizadas como máquina de guerra contra o proletariado como forma de justificar a superexploração de seus setores mais oprimidos, especialmente a classe trabalhadora negra.

Partindo do pressuposto de que o desenvolvimento do capitalismo ocorre de forma desigual ao redor do globo compreendemos que a via no qual o capitalismo emerge no Brasil terá relação direta com as condições específicas deste território. Antes de ser capitalista, o lugar que veio a ser chamado Brasil funcionou principalmente enquanto produtor de bens primários para exportação a partir principalmente da escravização, exploração e desumanização dos povos advindos de África. Os processos de desenvolvimento da sociedade foram marcados por seguidas “revoluções pelo alto” no qual as transformações ocorriam à revelia das demandas populares a partir da imposição de cima para baixo.

O capitalismo brasileiro desenvolveu-se a partir do fim do escravismo e de uma série de medidas que além de não garantirem a “inclusão” da população negra na nova sociedade em formação, construiu uma gama de mecanismos que impulsionaram a inferiorização do negro como forma de branquear a força de trabalho e expurgar seres considerados “inferiores” e não compatíveis com o progresso nacional. Desde pelo menos o fim da Revolução Haitiana, há um medo generalizado das classes dominantes brasileiras da ocorrência de rebeliões escravas e toda a formação estatal está determinada por este aspecto. O Estado brasileiro se formou como uma via de impedir a mobilização dos ex-escravizados e fixar o “lugar do negro” no país.

Nesse sentido, uma das principais armas ideológicas utilizadas pela burguesia interna foram as teorias raciais importadas da Europa e a medicina teve papel fundamental nessa importação e também pela construção de formas peculiares de racismo à brasileira. Lembremos do papel de alguns médicos como Nina Rodrigues na formulação da ideia de “criminoso” e na propaganda de concepções que tomavam as características do negro enquanto sinais de degeneração, como “fatores de risco” para o crime. Lembremos também das práticas higienistas que mais do que preocupadas com as condições sanitárias estavam preocupadas em expulsar os negros de seus locais de moradia para abrir espaço para as construções que embelezariam as cidades brasileiras e as colocariam mais próximas dos grandes centros europeus.

Não é menos importante o papel da eugenia, que teve na figura do médico Renato Kehl seu principal expoente. A eugenia foi mobilizada como uma via de impedir a reprodução do negro e garantir as condições da formação de uma suposta “raça superior” em nosso país. Mesmo que posteriormente algumas dessas teorias tenham sido deixadas de lada pelas classes dominantes, vários de seus aspectos fundamentais se mantiveram e se sofisticaram em teorias posteriores. No Brasil nunca tivemos uma democracia racial, mas muitos foram aqueles que insistiram e insistem nessa ideia. Seja pela via da patologização do negro, da expropriação de suas formas de autocuidado, da justificação do encarceramento em massa a partir da ideia de “guerra as drogas” ou a construção de verdadeiros campos de concentração nos manicômios, a medicina forneceu múltiplos argumentos “científicos” que contribuíram com a permanência do negro como passível de ser superexplorado e exterminado.

Desta forma, percebemos o papel que a medicina teve como prática justificadora do racismo no Brasil. A partir da especificidade da sociedade brasileira, marcada pelo sentido da colonização, a medicina operou como arma de controle social que não só deu uma suposta “motivação científica” para práticas de extermínio no passado como ainda hoje tem papel na reprodução de diversos mecanismos que inferiorizam a população negra. Construir práticas de saúde emancipatórias deve necessariamente passar pela crítica radical do processo de medicalização da sociedade e das diversas formas de construção de um suposto lugar “natural” que condena as pessoas não-brancas a terem sua existência subjugada.

Categoria
Tag