Chile: a desconcertante votação que rejeitou uma nova Constituição

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Por Taroa Zúñiga Silva e Vijay Prashad | Globetrotter – Tradução de Pedro Marin para a Revista Opera
[Foto: Manifestante durante protestos de novembro de 2019 no Chile. (Foto: Fiorella Gonzaga)]

No dia 4 de setembro de 2022, mais de 13 milhões de pessoas que vivem no Chile, além dos chilenos e chilenas que vivem no exterior (de um total aproximado de 15 milhões de pessoas com direito a voto, incluindo migrantes) se pronunciaram sobre a proposta de uma nova Constituição para o país. Já em março, as pesquisas começavam a sinalizar que a Constituição poderia não ser aprovada. No entanto, as sondagens por meses insinuavam uma redução de vantagem ao grupo do Rechaço e um aumento do Aprovo, razão pela qual os defensores da nova Constituição seguiam confiando que sua campanha conseguiria convencer as grandes maiorias a descartar a Constituição de 1980, imposta ao país pela ditadura militar dirigida pelo general Augusto Pinochet. A data definida para essas eleições, o 4 de setembro, coincidia com a vitória de Salvador Allende nas eleições de 1970. Neste dia, aqueles que apoiavam o projeto de uma nova Constituição diziam que o fantasma de Pinochet, que derrubou Allende por meio de um golpe de Estado em 1973, seria exorcizado. E, no entanto, a Constituição de Pinochet segue vigente, com a rejeição de mais de 61% dos e das votantes à nova Constituição e somente 38% a aprovando.

Alguns dias antes da eleição, na comuna de Recoleta, em Santiago, o prefeito Daniel Jadue encabeçou uma imensa manifestação em apoio à opção Aprovo. Milhares de pessoas se reuniram nesta região majoritariamente trabalhadora com a esperança, como disse Jadue, de deixar para trás a “Constituição dos abusos”. Mas isso não ocorreu. Inclusive em Recoleta, onde Jadue é um prefeito bastante popular, a Constituição foi derrotada. A nova Constituição teve 23 mil votos a mais do que os recebidos por Jadue nas últimas eleições – um sinal de que o voto de esquerda havia aumentado – mas ainda assim o voto pelo rechaço à Constituição foi maior, o que significou que os novos e novas votantes tiveram um maior impacto no resultado geral.

No dia 7 de setembro, Jadue nos disse que se sentia “tranquilo”, que era um avanço significativo o fato de quase 5 milhões de pessoas terem votado pela mudança constitucional e que “pela primeira vez temos em nossas mãos um projeto constitucional que está escrito e que pode transformar-se em um programa político bastante concreto”. Não há “nem vitória definitiva nem derrota definitiva”, nos disse Jadue. O povo não só refletiu no voto sua opinião sobre a Constituição, como também sobre a situação econômica (a inflação no Chile superou 14,1% neste mês) e a gestão do governo frente a este cenário. Assim como no plebiscito de 2020 para redigir uma nova Constituição, o voto de castigo teve um papel contra o ex-presidente Sebastián Piñera, neste processo houve um voto de castigo ao governo Boric, por sua incapacidade de melhorar as condições materiais do povo. A “tranquilidade” de Jadue provém de sua confiança de que, se a esquerda conseguir se reconectar com a base social através de um programa de ação capaz de abordar as necessidades do povo, então estes cinco milhões que votaram a favor da Constituição verão seus números aumentarem significativamente.

Poucas horas após a divulgação do resultado final da votação, os analistas de todos os setores se puseram a analisar o que constituiu uma grande derrota para o governo. Francisca Fernández Droguett, membro do Movimento por Água e Territórios, escreveu num artigo para o El Ciudadano que a explicação da derrota estava na decisão do governo de fazer uma eleição obrigatória. “O voto obrigatório nos colocou frente a um setor da sociedade que desconhecíamos em termos de tendências, não só políticas, como também de valores”. Este setor foi precisamente aquele que determinou os resultados em Recoleta. Droguett destacou que havia um sentimento generalizado entre a classe política de que aqueles que historicamente não votavam tinham uma “radicalidade na sua leitura sobre a institucionalidade”, o que os aproximaria de certas formas de progressismo. Ficou demonstrado que não é bem assim. A campanha pelo Aprovo não priorizou temáticas econômicas e trabalhistas, que são fundamentais para as pessoas que vivem nos extremos mais duros da desigualdade social. De fato, nas reações midiáticas frente aos resultados – que consistiram em destacar e estigmatizar os setores empobrecidos (rotear, como se diz no Chile), atribuindo a eles a responsabilidade da derrota – se vê a política de mentalidade estreita que também esteve em evidência durante a campanha pelo Aprovo.

O ponto de Droguett sobre o voto obrigatório é compartilhado por todo o espectro político. Até 2012, o voto no Chile era obrigatório, mas a inscrição no recenseamento eleitoral era voluntária; depois, em 2012, com a aprovação de uma reforma da lei eleitoral, a inscrição se tornou automática, mas o voto passou a ser voluntário. Para uma eleição tão importante, o governo decidiu tornar todo o processo de votação obrigatório para todos os maiores de 18 anos que estivessem habilitados a votar, com a imposição de multas consideráveis para aqueles que não o fizessem. O resultado foi que 85,81% das pessoas inscritas no recenseamento votaram, o que supera em muito os 55,65% que votaram no que foi o segundo recorde de participação eleitoral no Chile, durante as eleições presidenciais de 2021.

Uma comparação entre o segundo turno da eleição presidencial de 2021 e a recente votação do plebiscito é bastante instrutiva. Em dezembro de 2021, o presidente do Chile, Gabriel Boric, liderando a coalizão de esquerda e centro-esquerda Apruebo Dignidad, obteve 4,6 milhões de votos. A mesma coalizão fez campanha a favor da Constituição, e teve 4,8 milhões de votos. Ou seja, o voto da Apruebo Dignidad em dezembro de 2021 e o voto a favor da nova Constituição foram praticamente iguais. O oponente de Boric, José Antonio Kast, que abertamente elogiou Pinochet, obteve 3,65 milhões de votos. Kast também fez campanha contra a nova Constituição, que foi derrotada por 7,88 milhões dos eleitores. Ou seja, os votos contra a Constituição foram duas vezes maiores que os votos com os quais Kast pôde contar em 2021. Esta cifra não pode ser interpretada, de acordo com Jadue, como uma virada à direita por parte do povo do Chile, mas sim como uma rejeição a todo o sistema político, incluindo a Convenção Constitucional.

Um dos elementos menos comentados da vida política no Chile – como em outras partes da América Latina – é o rápido crescimento das igrejas evangélicas (sobretudo pentecostais). Cerca de 20% da população chilena se identifica como evangélica. Em 2021, Kast participou do culto de ação de graças da igreja evangélica, sendo o único político convidado para o evento. Obrigados a ir às urnas pelo novo sistema de voto obrigatório, um amplo setor dos eleitores evangélicos rechaçou a proposta de uma nova Constituição pela agenda social-liberal que trazia. Jadue nos disse que a comunidade evangélica não analisou o fato de que a nova Constituição dava à igreja evangélica – pela primeira vez na história – “a igualdade de tratamento frente à igreja apostólica romana, porque assegurava a liberdade de culto e igualdade de tratamento”.

Os que não estavam a favor da nova Constituição começaram a fazer campanha logo depois que se instalou a Convenção Constitucional. Aqueles que favoreciam a nova Constituição, no entanto, esperaram até que o texto estivesse pronto, e não concentraram a campanha nos mesmos territórios nos quais as igrejas evangélicas têm influência e onde a oposição à Constituição era clara. A Constituição foi rejeitada como expressão do crescimento do descontentamento dos e das chilenas frente a direção geral do liberalismo social que muitos – inclusive a direção do Frente Amplio – assumiam como uma progressão inevitável da política do país. O distanciamento entre os evangélicos e a centro-esquerda é evidente não só no Chile, onde os resultados são visíveis, mas também no Brasil, que enfrenta eleições presidenciais importantíssimas em outubro.

Enquanto isso, dois dias depois das eleições, os estudantes secundários saíam às ruas. A faixa que levavam à frente de sua primeira marcha estava cheia de poesia: “Frente um povo sem memória, estudantes fazendo história: com luta e organização”. Todo este ciclo da nova Constituição e do governo de centro-esquerda de Boric começou em 2011-2013, quando o agora presidente e muitos dos membros de seu gabinete estavam na universidade e começavam suas carreiras políticas. Os estudantes secundaristas – que enfrentaram uma brutal repressão policial e agora confrontam Boric – querem abrir um novo caminho. Estão consternados por uma eleição que podia determinar seu futuro e na qual, por sua idade, não puderam participar.

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