O Agronegócio, a Fome e a Alienação Soberana
Por: Alexandre Mask via Jornal O MOMENTO (PCB da Bahia)
Chegamos à terceira e última parte do artigo “Agronegócio e a Fome: uma relação indissociável por trás da fantasia de uma falsa promessa”¹. Conforme vimos em artigo anterior², a ideologia do Agronegócio é constituída através de fortes e manipuladoras campanhas de propaganda. A ideia do conceito de comida foi totalmente ressignificada. Tornaram-se comuns distorções como “Brasil é o celeiro do mundo. Alimentamos nossos 212 milhões de habitantes e exportamos para alimentar mais de 1 bilhão de pessoas no mundo”³. Na sociedade dos processados e ultraprocessados, transgênicos e itens temperados com doses cavalares de veneno, o conceito de comida no imaginário social vem nos transformando em mega consumidores de produtos com baixa qualidade nutricional e alto poder destrutivo para nossa saúde. Na prática, remodelam todas as relações das pessoas com os alimentos que foram construídas no decorrer da história e das relações sociais entre seres humanos.
A construção dessa alienação perpassa pelo tempo cada vez mais escasso, desde intervalos em horário de trabalho para refeições em disputa com as atividades pessoais cotidianas necessárias, até os elevados tempos gastos em percursos residência-trabalho (IPEA, 2013). Os domicílios não ficam de fora. Refeições familiares foram inundadas pela sociabilidade digital individualizada, pela alimentação de preparo rápido e pelo pouco trabalho posterior de arrumação e lavagem de utensílios domésticos. Tudo isto em detrimento das relações de compartilhamento das vidas de cada pessoa em momentos de relações familiares, gradativamente mais escassos e fragmentados.
Os tradicionais armazéns, açougues, feiras e mercados municipais, acessíveis à camada mais pobre da população, deram lugar aos grandes supermercados. Os poucos que se mantiveram foram transformados pelo autosserviço4, com ofertas mais sofisticadas e preços mais elevados. Nesse sentido, o acesso foi reduzido ainda mais às classes de maior orçamento familiar. Por um lado, estes comem melhor e pagam menos; por outro lado, os mais pobres comem pior e pagam mais caro, quando comem.
O imaginário social moderno da produção de alimentos também foi completamente transformado. A visão que habitava os que cresceram entre as décadas de 1960 a 1990 de uma fazenda repleta de grande diversidade de animais e vegetais, de frutas e cores que dezenas de arco-íris não dariam conta em descrevê-las, foi substituída pela soja e pelo milho em quase todas as opções de alimentos que nos são ofertados. Estendido a algumas poucas variedades de legumes e frutas, que inclusive descolaram-se das épocas onde determinadas espécies estariam disponíveis. Onde estão as frutas da estação? As mangas e jabuticabas da primavera? Ou as deliciosas frutas do outono, como abacate, pêssego e romã? O inverno se tornava mais alegre com o aparecimento dos morangos vermelhos e suculentos, uvas e caju… O calor do verão nos trazia os também suculentos melões e melancias, além de acerola e ameixa. Além de suculentos, com altíssimo valor nutricional. Eram os gostos da estação, onde a ansiedade da espera pela época certa dava lugar ao prazer das suas degustações. Hoje em dia, a ideia de produção agrícola está encarcerada no pequeno universo finito da soja, do milho, da cana-de-açúcar e do eucalipto. Frutas são encontradas em qualquer estação, e suas aparências não diferem em nada das artificiais que ornamentavam as casas de nossos avós. Eram de mentira, viraram de verdade. As monoculturas, a pecuária extensiva bovina, e a produção de suínos e de aves em confinamento repousam em nossas mentes. O resultado: itens alimentícios de baixíssimo valor nutricional e ricos em produtos químicos nocivos à nossa saúde. A era da não comida.
A simplificação da cadeia alimentar reduziu drasticamente o número de espécies em nossas dietas, diante da oferta abundante de produtos que atravessaram as barreiras da distância e do clima, e alimentam a sensação de fartura, limitada às patentes do Agronegócio. Especialmente cereais oriundos das monoculturas que dissolveram as fazendas do passado, dando lugar a grandes campos monocromáticos produtores de solos inférteis. O tempo do nutricionismo industrial, segundo Michael Pollan5. O resultado não é outra coisa senão a insegurança alimentar generalizada, que por um lado conduz à fome, e por outro lado, conduz às deficiências nutricionais causadoras de problemas graves de saúde pública, a exemplo da obesidade. E o Agro? Vai muito bem, obrigado!
No ano de 1993, foi criada a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), com o principal objetivo de ser uma organização intersetorial, para elaborar e promover um projeto político e econômico para o Agrobiz. A instituição, na época, contou com um conselho administrativo formado por representantes de empresas como a Monsanto, Nestlé, Sadia, Sendas, dentre outras gigantes do setor (POMPEIA, 2021, p.111).
Vejamos essa passagem bastante interessante da ABAG, acerca do que se defendia ser o desafio e a principal responsabilidade social da inestimável entidade embrionária:
“A história dos países desenvolvidos revela que foi a adoção de uma política de segurança alimentar que lhes assegurou crescimento econômico com demanda sustentada, dando-lhes estabilidade e melhor distribuição dos frutos do progresso material e melhor qualidade de vida. Não se diga que eles o fizeram porque são ricos. A verdade é o contrário. Eles tornaram-se ricos porque assim o fizeram. (…) Não se implementa uma política de segurança alimentar sem alimentos” (ABAG APUD POMPEIA, 2021, p. 114).
Por outro lado, à medida que estratégias empresariais do setor buscam legitimar “agrocommodities” – escoradas em justificativas voltadas para alimentação, principalmente na falsa promessa de promover Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) -, não nos restam dúvidas que estas se colocam em relação direta com o aumento da obesidade e da insegurança alimentar grave.
AgroFOME, um amálgama indissociável e retroalimentar
Analisamos categoricamente, dentro dos limites do formato deste artigo em suas três partes6, as características do Agronegócio. Partindo da sua formação até sua constituição atual, atravessada pela modernização agrícola e pelo desenvolvimento das relações de produção e da dinâmica campo-cidade, sobredeterminada pelo setor. Também vimos como esse processo estruturalmente se contrapõe ao conceito de Segurança Alimentar e Nutricional.
O poder de morte do Agrobiz é uma amálgama de amálgamas de destruição, onde GUERRA, MORTE e FOME materializam-se em suas práticas através da expropriação e expulsão de camponeses e exploração das suas mãos-de-obra, acumulação e concentração de renda e de irreversíveis danos ambientais. A terra que resta é a terra arrasada. O Agronegócio se realiza como uma avalanche que engole e destrói tradições e culturas dos povos originários e locais, apaga suas histórias e memórias, reescrevendo uma modernidade sombria, por meio da imposição de práticas produtivas de não comida, condenando a maior parte da população a submoradias, subalimentação, doenças mórbidas e desnutrição.
Enfrentar e superar a fome e a insegurança alimentar só é possível atacando e destruindo as estruturas do sistema capitalista, modificando radicalmente as formas de relações de produção. É essa a razão pela qual o conceito de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) deu lugar ao que hoje chamamos de Soberania Alimentar. Essa superação foi proposta pela Via Campesina7, com base em uma luta pela construção do direito à liberdade de escolha pelos povos de como comer, como produzir sua comida e conhecer as origens do que comem. Uma transformação revolucionária do conceito para que os objetivos de enfrentamento à fome possam realmente efetivar-se, tornando possível ir além dos limites impostos pelo sistema capitalista.
É preciso unificar os movimentos sociais e reconstruir as relações da dinâmica campo-cidade, através da (re)formação ideológica e intensificação das lutas populares. Batalhar pela redistribuição das terras através da Reforma Agrária, ocupando as ruas, o campo, e todos os espaços necessários para a construção de um poder efetivamente popular e soberano, que defenda os interesses das classes trabalhadoras rural e urbana, em direção ao socialismo, para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, livre da exploração do ser humano e da natureza pelo próprio ser humano.
“Se saio, chego; se chego, entro; se entro, triunfo” – Fidel Castro
Notas:
¹ Artigo é composto por três partes: i) Modernização Agrícola; ii) Reprodução da Fome; iii) Segurança Alimentar e Nutricional. O texto presente tratará da parte III. Ver parte I em https://omomento.org/agronegocio-e-a-fome-uma-relacao-indissociavel-por-tras-da-fantasia-de-uma-falsa-promessa/ e parte II em https://omomento.org/agronegocio-e-a-fome-a-promessa-de-erradicacao-da-fome-que-radicaliza-sua-existencia/.
² Ver em https://omomento.org/agronegocios-x-natureza-a-sintese-da-morte-e-da-devastacao-ambiental/
³ Ver em: https://www.istoedinheiro.com.br/agronegocio-ajudou-a-segurar-pib-durante-a-pandemia-diz-ministra/
4 Lojas do varejo baseadas no autoatendimento, sem a necessidade de vendedores intermediando as compras onde o consumidor escolhe seus produtos em prateleiras e se dirige ao caixa para efetuar o pagamento.
5 Para um maior aprofundamento no tema, Michael Pollan, escritor estadunidense, possui duas obras muito interessantes e completas, traduzidas para o português pela Editora Intrínseca: O dilema do onívoro, de 2006 e Em defesa da comida de 2008.
6 Ver parte I em https://omomento.org/agronegocio-e-a-fome-uma-relacao-indissociavel-por-tras-da-fantasia-de-uma-falsa-promessa/ e parte II em [colocar link da Parte II]
7 Via Campesina é uma organização internacional de camponeses, formada por organizações e movimentos sociais de diversos países, com objetivo de articular os processos de mobilização social dos povos do campo ao redor do mundo. No Brasil é representada através da Via Campesina Brasil. Para maiores informações, ver: https://viacampesina.org/es/ e https://www.instagram.com/via_campesina_brasil/.
REFERÊNCIAS:
Abag – Associação Brasileira do Agronegócio. Segurança alimentar: uma abordagem de Agribusiness. São Paulo: Abag, 1993.
IPEA. Indicadores de mobilidade urbana da PNAD 2012. 2013. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10338/1/Comunicadoipea_n161.pdf. Acesso em: 21. Jul. 2022.
FAO. O estado da insegurança alimentar no mundo. Brasília, 2014.
POMPEIA, Caio. Formação política do agronegócio. São Paulo: Elefante, 2021.
POMPEIA, Caio; SCHNEIDER, Sergio. As diferentes narrativas alimentares do agronegócio. Desenvolvimento e Meio Ambiente. 57. 10.5380/dma.v57i0.77248. 2021.
Agronegócio e a Fome: Segurança Alimentar e Nutricional e a Alienação Soberana